O estigma não é
da pessoa, mas chega antes dela. Em hanseníase associamos
a persistência da doença ao leproestigma, que interfere
na manutenção da enfermidade por trazer dificuldades
para o seu tratamento.
O preconceito começa na
linguagem, transfere-se para a atitude e aparecem os níveis
de afastamento. Surge o ato de evitar; a discriminação
e a segregação. Arthur Ashe, atleta do tênis
mundial, escondeu sua condição porque "tinha
medo do estigma que é insuportável" (1).
"Espertinhos" usam o
preconceito, o estigma, em proveito próprio. Por isso temos
que desconfiar, pois nem sempre os interesses são tão
nobres. Alguns "sadios" encaram o leproestigma como
excelente fonte de rendimentos divulgando cartas, anúncios,
etc (os chamados bate-gatos) que apelam para a caridade alheia.
Não se importam com o doente, com a doença, com
os preconceitos que a envolvem e muito menos com as perspectivas
futuras (2).
Essas pessoas e aquele que se
apresenta como "pobre leproso" são menos evoluídas
que Nicolau, marido de Norberta.
Nicolau era um fariseu. Amava
apenas a família consangüínea. Nascera numa
época de constantes crises. Passou pelo período
infanto-juvenil cercado por problemas financeiros. Assim, "aprendeu"
observar comportamentos. Ficou-lhe clara a idéia de que
a natureza humana é egoísta, malvada, sem remédio
e que a sociedade nunca superará a fase Caim & Abel.
Com a idade madura consolidou-se a idéia de que o fim justifica
os meios (3).
Uma pessoa recebe uma carta de
um pobre leproso que passando por necessidades solicita ajuda
em dinheiro. Há endereço, em outro estado, e um
número de Caixa Postal. Posteriormente descobre-se que
se passa de um golpe, nem sempre em dezembro. No Natal os corações
e a bolsa se abrem com mais facilidade. Será que no futuro
os "espertinhos" irão aperfeiçoar o bate-gato
na mídia criando o 171 religioso? Uma coisa é certa,
vai ser difícil enquadrá-los no código penal.
Os adeptos de religiões,
que se originaram na África, devem sentir profunda dor
na alma diante das agressões verbais via rádio e
TV. Este tipo de comportamento que produz marcas infamantes aponta
para o desconhecimento do universo do império da lei. Com
a liberdade divorciada da responsabilidade pode-se atacar pessoas
e/ou religiões, com a "demonização"
(4) como técnica. Não
é necessário doutoramento em Ciências Jurídicas
para perceber que se trata de manobra perigosa, principalmente
porque atenta contra a paz e desrespeita direito fundamental.
No dia 07 de Janeiro, comemorou-se
o dia da Liberdade de Culto. A religião é uma forma
de preservar a identidade. Ela pode sofrer transformação
parcial, incorporando elementos de outras religiões. Isto
aconteceu com a Umbanda e o Candomblé, que fazem hoje parte
da cultura brasileira. Sabemos que Gilberto Gil, compositor, ministro
na área da cultura, possui profundo respeito pelas religiões
afro-brasileiras. É ele quem nos adverte: "Se eu quiser
falar com Deus, tenho que calar a voz. Tenho que encontrar a paz".
Em 1988, no preâmbulo da
Constituição da República Federativa do Brasil
(CRFB 88) o constituinte original permitiu interpretar que o Estado
é laico, mas não é ateu: "Promulgamos,
sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição
da Republica Federativa do Brasil".
Nossa Constituição consagra como direito fundamental
a liberdade de religião. Assim, o Estado deve proporcionar
a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão
religiosa sem intolerância e fanatismo. Apesar da norma,
as agressões parecem não ter fim.
Monteiro - em Deus não
Sobe em Palanque (5) - alerta:
"no fundamentalismo religioso
e político residem os maiores perigos. Isto porque os
seus líderes procuram fundamentar-se apenas em algumas
partes ou interpretações convenientes, geralmente
de suas doutrinas religiosas ou idéias políticas
de modo exacerbado, alimentando o fanatismo. E podemos constatar
no mundo atual que o fundamentalismo está sempre aliado
à intolerância e ao desrespeito ao cidadão,
pois seus fomentadores, na tentativa de conseguirem seus objetivos,
passam por cima da ética e da moral sem nenhuma cerimônia".
Devemos enfatizar que "o
Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará
e incentivará a valorização e a difusão
das manifestações culturais" (CRFB 88, art
215).
Almeida (4) lembra que a mídia
tem sido amplamente utilizada pelas religiões com o intuito
de arrebanhar mais fiéis e de levar a espiritualidade a
pessoas que não possam ir às igrejas, sinagogas,
templos e etc. Entretanto, o espetáculo de religiosidade
e de amor ao próximo vem se transformando num circo de
horrores, onde os ataques às outras religiões são
marca comum. Isto extrapola o direito de manifestação
religiosa. Em nome da liberdade de expressão, as garantias
constitucionais estão sendo distorcidas. Impossível
negar a influência da mídia. (6,
7)
Médicos estudaram a variação
do número de óbitos em adolescentes na grande área
de Nova Iorque duas semanas após a projeção
de quatro filmes de suicídios. Publicaram os resultados
em setembro de 1986 no New England Journal of Medicine. O número
estatisticamente significativo de suicídios foi maior no
período que sucedeu à projeção de
tais filmes, do que no período que o antecedeu.
O aparecimento de uma informação
inadequada na televisão pode destruir o trabalho de muitos
anos de investimentos e esforços dirigidos à educação.
Com a mídia muitos acabam confundindo amor e sexo.
Os que assistem aos programas
podem não ter a intenção de aprender, mas
aprendem, e acabam sendo manipulados.
O Jornal de Pediatria (1995) discutiu o papel do erotismo na televisão,
como fator disfuncional na educação sexual da juventude.
Na televisão os adolescentes encontram informações
que satisfazem a sua curiosidade acerca do mundo sexual dos adultos.
Isso ocorre por um processo de erotização cada vez
mais explícito, que abusa de uma liberdade de expressão
e veicula informações sexuais de todos os tipos.
Almeida (4)
recorda que a lei 7.716 de 1989 trata do preconceito de cor e
de raça, mas em seu art. 20 torna punível a conduta
de "praticar, induzir ou incitar a discriminação
ou preconceito de religião". O mesmo autor não
faz por menos e nos traz de outra esfera o tipo descrito no art.
208 do Código Penal Brasileiro. O artigo trata do escarnecimento
de qualquer pessoa por motivo de crença ou função
religiosa, e ainda o tratamento vilipendioso de ato ou objeto
de culto religioso (como a destruição da imagem
da Santa católica). Tudo isto, culmina para a completa
compreensão de que o Estado deve localizar-se na função
de protetor das religiões e mediar os conflitos existentes
entre elas.
A tentativa de transformar as
religiões afro-brasileiras em "seitas diabólicas"
cria um estigma. Este ato favorece o preconceito e constitui ofensa
ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Com o estigma, surge o ato de evitar, como ocorreu com a integrante
da Casa Legislativa Municipal no Rio de Janeiro que afastou uma
imagem. A vereadora mandou retirar, da sala por ela ocupada, o
retrato do deputado Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, sob o fundamento
de que era “evangélica” e não poderia
ter em “sua” sala o retrato de um “espírita”.
No Plano Nacional de Direitos
Humanos o Brasil tem como meta o combate a intolerância
religiosa, favorecendo o respeito às religiões que
são minoritárias e cultos afro-brasileiros. Os direitos
humanos são o mínimo existencial, no qual se fundam
todas as convenções e tratados internacionais, por
serem valores amplamente aceitos no mundo.
O Brasil é país
laico e o Estado não interfere nem mesmo na liberdade de
descrença (4, 13, 14) dizendo
que "todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza. É inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".
(Art. 5º, VI, da CRFB 88).
No entanto, a liberdade religiosa,
de crença ou de culto não é um valor absoluto,
nem tampouco um direito absoluto. Há limitações
sobre este direito/valor social. O Estado e a sociedade têm
o dever de procurar uma convivência harmoniosa entre as
religiões, de modo que não haja tratamento desigual
entre as formas de religião e nem o fomento de discriminação
e/ou preconceito de uma religião pela outra.
Lembramos do princípio
da proporcionalidade (9) em sentido
amplo, também conhecido por princípio da proibição
de excesso, uma vez que vem atender aos reclames da sociedade
brasileira por uma ordem social e política equânime.
Proíbe nomeadamente as restrições desnecessárias,
inaptas ou excessivas de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais
só podem ser restringidos quando tal se torne indispensável,
e no mínimo necessário, para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Este princípio da razoabilidade,
como prefere o direito norte-americano; ou da proibição
de excesso como também é denominado pelos alemães
tem aplicação na aferição da constitucionalidade
das leis, quando nos deparamos com a colisão de direitos
e garantias constitucionais. Estabelece que deve haver uma razoável
correspondência entre a intensidade da sanção
que se pretende aplicar e a ação que se objetiva
punir. É um parâmetro de valoração
dos atos do poder público para aferir se eles estão
informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico:
a justiça.
Seria Razoável, justo, que se encerrassem os ataques às
religiões afro-brasileiras?
Vamos reler o preâmbulo da CRFB 88.
"Nós, representantes
do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte
para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar
o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte Constituição da República
Federativa do Brasil".
As religiões afro-brasileiras, em verdade, constituem minoria
em quantidade de fiéis e justamente por isso toda a sociedade
deve lutar para que seja respeitado o seu direito. Ademais, as
minorias têm o seu valor histórico/cultural. Seu
desaparecimento acarretaria prejuízo imenso para a nação.
A conquista constitucional da
liberdade religiosa é verdadeira consagração
de maturidade de um povo. É verdadeiro desdobramento da
liberdade de pensamento e manifestação. O constrangimento
feito de modo a conduzir à renúncia de uma fé
representa, dentre outros, desrespeito à diversidade espiritual.(4)
Muitos estão desconfiados,
com o bate-gato, com a produção das identidades
perversas (10) dos "leprosos
da religião" e devemos recordar os interesses subalternos
materiais que acompanhavam alguns religiosos na época de
Jesus.
Em Mateus, V, encontramos:
"Eu vos asseguro que se
a vossa justiça não exceder as dos escribas e
dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus".
Jesus lecionou lembrando a justiça
dos escribas e dos fariseus. Escribas faziam causa comum com os
fariseus, de cujos princípios partilhavam. Daí sua
inclusão na reprovação que lançava
aos fariseus. Eram servis cumpridores das práticas exteriores
do culto e das cerimônias. Sob as aparências de meticulosa
devoção, céticos, eles ocultavam costumes
dissolutos, muito orgulho e, acima de tudo, excessiva ânsia
de dominação política. Os fariseus tinham
a religião como meio para chegarem a seus fins e não
como objeto de fé sincera. Da virtude nada possuíam,
mas exerciam grande influência sobre o povo, a cujos olhos
passavam por santas criaturas.
Religião é poder. Nossos candidatos a cargos
eletivos deveriam demonstrar respeito pela autoridade, pela manutenção
da ordem social, pelos direitos individuais. Deveriam ser guiados
por princípios éticos, como justiça, reciprocidade,
igualdade e respeito pela dignidade do ser humano (11).
Sem essas condições não deveriam ser eleitos,
mesmo que se apresentassem como religiosos.
Vejamos novamente o artigo (5)
"Deus Não Sobe em Palanque": "Como o nosso
país está contextualizado dentro de uma sociedade
Cristã, não podemos esquecer que Jesus cumpriu a
sua missão sem necessidade de portarias ou decretos, e
não fundou nenhum partido político para exercê-la.
Mesmo assim, com essa prudente forma de agir, acabou morrendo
na cruz, devido à ambição política
de Judas, a pretexto de acelerar a vitória do Evangelho".
Enfatizamos, até os direitos fundamentais devem sofrer
"restrições" quando ultrapassem e colidam,
ainda que aparentemente, com outros direitos fundamentais.
Se o Estado tem o dever de tratar
igualmente as religiões, quando há desequilíbrio
surge o dever de restabelecer a igualdade, tratando desigualmente
os desiguais de forma a equilibrá-los novamente. As religiões
afro-brasileiras têm sido alvo de ataques que não
deram causa, nem tampouco se pode atribuir a elas qualquer atitude
agressiva a outras religiões, de forma que a agressão
sofrida é injusta (4).
Como preservar os direitos
fundamentais?
O princípio da proporcionalidade estabelece que deve haver
uma razoável correspondência entre a intensidade
da sanção que se pretende aplicar e a ação
que se objetiva punir.
Em que condições seria razoável o cancelamento
da concessão outorgada?
Como fazer cessar os ataques às religiões afro-brasileiras?
Há meios legais?
Almeida (4)
responde que "o Poder Público pode utilizar-se do
Decreto Presidencial 52.795/63 que regula os Serviços de
Radiodifusão aplicando as sanções previstas
no art. 133". Pode-se utilizar o que preceitua a Carta Magna,
artigos. 220, §3º, inciso I e 223, § 4º. A
norma fala na possibilidade da perda da concessão outorgada,
em caso de reincidência na violação.
O decreto supracitado ainda prevê
expressamente a responsabilidade da emissora pela programação
exibida, ainda que a cessão seja parcial, de acordo com
os artigos 124, § 1º; 67; 75 e 77 do Decreto Presidencial
52.795/63 e art. 10 do Dec. Lei 236/67, ensejando o dever de indenizar
pelos danos sofridos e ainda deferir o direito de resposta proporcional
ao agravo sofrido.
O Ministério Público
Federal ajuizou ação civil pública, em São
Paulo, face às emissoras religiosas que estão promovendo
a demonização das religiões afro-brasileiras.
Exigiu que cessem as agressões, representando os interesses
difusos das entidades de classe afro-descendentes.
"Ao veicular em sua programação
atos atentatórios à cidadania, à dignidade
da pessoa humana, bem como à liberdade de crença
religiosa, e, sob a égide da consagrada "liberdade
de expressão" distorcem as garantias constitucionais,
causando um dano coletivo".
Este é um trecho da petição
inicial apresentada.
O que está faltando? Precisamos
relembrar Pasteur (12).
"Não se considerem os únicos donos da verdade
e do conhecimento, pois um diploma não faz o cientista.
Somente assim poderão cumprir sua missão, ser úteis
ao próximo. E façam tudo com amor, pois será
um dia esplêndido aquele em que, dos progressos da ciência,
participará também o coração”.
Pasteur repetiu que "pouca ciência afasta o homem de
Deus e que os verdadeiros cientistas acabam dele se aproximando".
A ignorância religiosa afasta o homem de Deus (que é
Amor) e da tolerância.
No NEU da UFRJ, escrevemos um
texto que designamos como "A Ética da Tolerância"
(8). Eis um trecho.
"Nessa questão
do aperfeiçoamento da prática sócio-afetiva
lembramos que Jesus afirmou: Os meus discípulos serão
conhecidos por muito se amarem. É a lição
de que o progresso do conhecimento é estimulado pelo
regime de diálogo franco e aberto. É convite à
fraternidade, ao amor em ação, na aceitação
da diversidade e no relacionamento pacífico entre os
diferentes".
"Uma civilização
jurídica, um Estado de Direito, uma democracia digna
deste nome qualificam-se, por conseguinte, não só
por uma eficaz estruturação do ordenamento, mas,
sobretudo, pela sua ancoragem nas razões do bem comum
e dos princípios morais universais, inscritos por Deus
no coração do homem".
Trecho do discurso à
Associação Nacional dos Magistrados da Itália,
31/3/2000, proferido por João Paulo II (13).
Quando desenvolvemos o intelecto
somos capazes de saber se uma ação é boa
ou má, mas a escolha do caminho a tomar depende do desenvolvimento
de outro domínio (afetivo). As duas asas simbólicas
já são bem conhecidas. Sem uma delas, sociedade
alguma poderá voar, atingir níveis de consciência
mais altos, e ser considerada evoluída.
Impossível não lembrar
as palavras de Bacurau enfatizadas pelo Secretário Nacional
do Morhan(10).
"O amor ainda é
o melhor remédio para todos os males do mundo desde que
seja traduzido em trabalho, em humildade, em ética, em
compromisso, em justiça".
O verdadeiro religioso não
propõe a conversão à força. A obrigação
de conversão sustentada pela doutrina da Igreja católica
é moral, e, mesmo quando traduzida em normas positivadas
em seu corpo canônico, nunca pode gerar a quebra da sadia
tolerância aos cultos que dela divergem e que não
causam transtorno à sociedade e ao Estado (13).
O Ministro da Cultura e o povo
brasileiro não podem concordar com a perseguição
aos adeptos das religiões afro-brasileiras.
Se a intolerância à minoria é ruim a intolerância
à maioria é perigosa, principalmente se são
politicamente influentes ou/e ainda capazes de, na mídia,
carregarem explosivos junto ao corpo, em nome de Deus