Docente-Pesquisador na Faculdade de
Medicina, você também é responsável pelos
valores ético-morais deles! Quase no final da aula teórica,
já terminando a estatística da Sífilis congênita,
você abre para perguntas. Terminar a aula um pouco mais cedo
não fará nenhuma diferença e ganhará a
pesquisa experimental, que já reclama a sua insubstituível
presença física, no laboratório.
Como nenhum aluno faz uso imediato da palavra, e iniciam a debandada,
você desconfia do seu desempenho didático.
Olha o relógio e verifica que há tempo disponível.
Como é pesquisador sente-se seguro e faz incentivação:
- “Podem perguntar qualquer coisa relacionada ao Treponema”.
Lá do fundo da sala, como que querendo testá-lo, aquele
aluno “problema” faz a pergunta sobre a anencefalia e
o aborto. Contra ou a favor? A turma incentivada retoma os lugares
e você, que fora requisitado como educador recebe outra questão.
Uma aluna interessada na saúde da mulher dá a sua contribuição:
Professor, e a gravidez após o estupro? O Senhor é contra
ou a favor do aborto?
De forma sistemática ou não, verbal ou não, consciente
ou inconsciente, intencional ou não, todos somos responsáveis,
quando transmitimos valores, atitudes, tabus, preconceitos e esteriótipos.
Nessa hora você se lembra daquele antigo e paciente professor
que se recusava, ao sair de sala, a discutir “o melhor ataque
da seleção brasileira”. Lembra quando dizia que
“o médico interfere no campo do sujeito, no seu corpo
e, por vias indiretas não apenas contingentes, em sua vida
pessoal, suas emoções, sua socialidade, suas economias.
Por isso é a medicina uma profissão moral.”
Na hora de responder aos alunos você percebe que fez a dissociação
entre ensino e pesquisa, que não deveria ser uma questão
legal, mas visão de mundo.
Algumas questões parecem deixar o pesquisador desnorteado.
E, você pensa. Uma pessoa-em-potencial ainda não é
uma pessoa para a ética? E se fosse nossa filha? Talvez seja
a próxima pergunta daquela aluna chatinha da gineco! Será
que ela vai voltar a perguntar se devemos alongar uma gravidez evidentemente
inconseqüente como nos fetos anencefálicos?
Uma sensação, de que o diploma e os trabalhos científicos
publicados no exterior não formam o docente, começa
a incomodar. Aquele outro aluno, religioso e tímido, que senta
na turma do gargarejo, e que também foi fisgado pela incentivação
, encontra coragem e pergunta: Professor, o Mestre acha que devemos
distinguir os campos da ética e da religião?
Querendo ganhar tempo, você pergunta se há mais alguma
pergunta. E ela surge fatalmente, do outro lado, fazendo a turma virar
para a esquerda. Professor, você (alguns alunos não usam
mais o “Sr”) não acha que a religião é
sempre a expressão das convicções da fé
de um grupo humano restrito e que a ética é muito mais
abrangente?
Você começa a sentir vontade de fugir! No entanto, lembra
da frase acima:
“De forma sistemática ou não, verbal ou não,
consciente ou inconsciente, todos somos responsáveis, quando
...”
Relembrando que também somos biocomputadores você procura
nos arquivos suas primeiras noções de religião
e percebe que delas não se lembra. São arquivos apagados
ou colocados no diretório “Lixo”. Numa última
tentativa, desesperada, você vai ao diretório e constata
que, ao contrário dos alunos da Universidade de Columbia, no
seu curso não havia a disciplina de Religiões Comparadas.
Como entender aquela recusa dos religiosos que pareciam suspeitar
do problema das transfusões e a Aids? Como fazer para respeitar
o universo cultural de um país católico, mas que acredita
em reencarnação?
Quando o aluno tímido fala nos antigos gnósticos - Clemente
de Alexandria, Orígenes, São Jerônimo e outros
- você desconfia dos seus créditos de mestrado e doutorado.
Sentindo-se evidentemente mal você encontra um arquivo da época
de diretório acadêmico, quando o “santo”
era outro! Mas nem aí você escapa!
Um aluno protestante lembra “ser muito revelador que Marx, para
destruir os hegelianos de esquerda, que também acreditavam
que as palavras entram na argamassa com que a sociedade é construída,
o tivesse feito justamente com o auxílio de palavras: a Ideologia
Alemã.” Como bom protestante ele faz você lembrar
que, na Bíblia , “No Princípio era a Palavra...”
Você parece não entender muito bem a colocação
do aluno, que é filho de uma professora de didática.
De repente, você descobre que o educador trabalha com a palavra
e o microbiologista com o micróbio. E, justamente nesta hora
é que elas, as palavras, parecem atropelar-se respondendo ao
aluno que insiste.
Professor, a ética avalia os comportamentos do ser humano enquanto
ser humano, independente de qualquer convicção religiosa
ou política?
Muitas vezes os alunos não perguntam porque já avaliaram
a condição do docente-pesquisador!
Permite outra questão mestre! E continua, sedento, querendo
beber na fonte dos conhecimentos de quem já possui alguns cabelos
brancos. Você recorda que na sua época não se
podia confiar em ninguém com mais de trinta anos. Mas, só
agora começa a entender . Sente-se envelhecer sem amadurecer.
Mestre! A essa altura, mesmo após o doutorado você já
não se sente diminuído, quando o chamam apenas de mestre.
Mestre, você não acha que o estupro é uma grande
injustiça por ser uma violação física
e moral da dignidade da pessoa?
Você é obrigado a parar para refletir na pergunta do
aluno e parece confundir, como sinônimos, a ética e a
moral. Como o dicionário está distante você começa
a pensar que o ar condicionado está desligado. A questão
é reforçada por outro aluno que opinando que “a
injúria agrava-se quando é seguida de gravidez imposta
à força.”
O seu desespero parece avaliar que o binômio ensino-pesquisa
está desequilibrado, tendendo para um lado. Você conclui
que a culpa não é sua porque sempre desejou fazer apenas
pesquisa, mas no Brasil ela é principalmente feita nas universidades
do governo. O remédio foi dar algumas aulas sem grande esforço,
afinal, no ensino “moderno” o aluno tem que se virar!
Por um descuido, ou ato falho, na tela do computador surge a inesquecível
figura de Ítalo Suassuna, de quem a Microbiologia brasileira
vai sempre se lembrar!
-“Muitos poderão aprender
a metrificar ou fazer versos, mas poucos produzirão poesia;
muitos estudarão ciências, mas poucos contribuirão
para o conhecimento científico.”
“Como a informação é a tarefa inicial
para treinar e disciplinar a mente, um desenvolvimento desarmônico
com o exagero dessa etapa, tende a produzir o erudito, de quem já
se disse; homens capazes de repetir o que já se sabe, todavia
incapazes de criar. No campo científico, estes promovem ou
criticam resultados, mas ignoram por completo, ou pior ainda, estimulam
de modo negativo a lógica ou a logística de sua aquisição.”
“Outros, encantam-se com a técnica e a execução
e tornam-se mecanólatras ou ritualistas, reproduzindo esterilmente
os mesmos processos ou métodos que outros produziram ou descreveram.”
“Em relação a tais enganos, enquanto os primeiros
repetem e repetem, os segundos confirmam e confirmam. Ambos deseducam
ou desorientam para a atividade criadora. São figuras perniciosas
e enganadoras em países como o nosso.”
Nesse momento você se lembra
de Zeferino Vaz e faz um passeio mental pelo laboratório. Está
uma graça, todo reformado! Mas, o Zeferino continua a incomodar
lecionando como fundou a Universidade de São Paulo. Primeiro
precisamos de cérebros, depois de cérebros e depois
ainda de cérebros. Em seguida vem a biblioteca , só
depois então os equipamentos.
Estaria certo o Zeferino?
Estaria certo o Suassuna?
Recordo-me que em “Educação para a Pesquisa”,
em 1970-71, o nosso Microbiologista asseverava :
“Que a nossa ciência
cultive essa atitude, responda ao que em torno de nós desafia
a nossa capacidade, evite a moda ocasional ditada por interesses
de outros povos, e realize assim uma contribuição
brasileira, que possa ser somada e não confundida, destacada
e não ignorada, no edifício da Ciência que é
comum a todos os povos.”
Aos jovens estudantes gostaria de
lembrar que falo sem interesses subalternos. Que homenageio professores
que já não detêm o poder e mesmo que o tivessem
já não me adiantariam muito, sou professor aposentado.
Hoje dependo de outro professor - o Fernando!
Perdoem-me a digressão. Vamos voltar à sala de aula.
Você pensa numa saída estratégica, lembra do “Você
Decide” e resolve fazê-los votar no contra ou a favor
do aborto, só para ter uma idéia da opinião da
turma.
É importante ganhar tempo, adiar uma discussão para
a qual, com todos os trabalhos publicados, não se sente competente.
No fundo ficam algumas interrogações!
Problemas éticos podem ser resolvidos pela estatística,
como a questão da adesividade de bactérias às
células do hospedeiro? Ou, será a ética de ordem
qualitativa? A base da legislação para todos os cidadãos
é a ética? Estado é apenas o centro legislador
para todos os cidadãos? O aborto situa-se no campo ético
que é competência do Estado?
Se uma pessoa-em-potencial (feto) ainda não é uma pessoa
podemos desta forma recomendar o aborto? uma pessoa-sem-potencial
(paciente terminal) não é mais uma pessoa, então
podemos pensar em eutanásia?
E se os espíritas, chamados “científicos ou kardecistas“,
estiverem com a razão? Eles advogam que são inúmeras
as evidências científicas sugestivas de imortalidade
e reencarnação e que devemos estudá-las para
não sermos considerados indigentes culturais, diante dos alunos
de graduação da universidade de Colúmbia ou da
Georgia.
Microbiologista não trabalha apenas com o micróbio.
Há sempre um paciente, um aluno, enfim uma pessoa por traz
deste exame ou aula.
A responsabilidade do docente pesquisador não está apenas
na pesquisa e de ponta. O binômio é indissociável.
Você conseguiu gastar o tempo e a sala deve ser deixada para
que o outro professor entre.
Surge uma dúvida cruel. E se eles continuarem a me acompanhar
pelos corredores?
Alguns usam a estratégia de esconder-se no banheiro ou correm
para o experimento inadiável.
A síndrome de aversão ao aluno tem cura, mas é
como na Hanseníase, sempre fica o leproestígma.
Outra saída é o autocratismo. Aqui a parábola
do bom pastor é tomada ao pé da letra. O pesquisador-professor
guia ovelhas inconscientes. Devem obedecer o traçado do caminho
e comer a pastagem escolhida. Mas, os alunos e colegas desconfiam
deste pastor.
Um bom Pastor é ético. As ovelhas adultas são
inteligentes e responsáveis por suas decisões e atos,
sempre dispostas ao diálogo com “Seu Pastor” para
juntos descobrirem os melhores caminhos.