1.
Introdução
Como todo estudioso do Espiritismo sabe, o título do presente
artigo é o título dado por Allan Kardec ao capítulo
20 de O Evangelho Segundo o Espiritismo. O que poucos talvez tenham
notado é que esse é o único capítulo
do livro que não possui comentários do próprio
Kardec: à transcrição da passagem evangélica
– a intrigante parábola dos trabalhadores da última
hora – seguem-se imediatamente as Instruções
dos Espíritos, em número de quatro. Isso, porém,
não passa de detalhe curioso, já que os textos de
Kardec e os dos Espíritos expressam um pensamento uno, não
sendo raro que os primeiros superem os segundos em alcance, clareza
e precisão. O que mais importa são os ensinamentos
contidos no capítulo. Iremos, por economia de espaço,
restringir nossa análise à parábola e ao primeiro
texto escolhido por Kardec para comentá-la, de autoria de
Constantino, Espírito Protetor, recebida em Bordeaux em 1863.
2. A parábola
Para comodidade do leitor, transcreveremos agora todo o texto da
parábola citado por Kardec. Notemos, desde já, que
se trata de uma das muitas ocasiões em que Jesus procura
ensinar algo sobre Deus e as leis divinas – “o reino
dos céus” – por meio de uma comparação
com uma estória envolvendo coisas e situações
ordinárias. Eis a parábola, registrada em Mateus 20:1-16:
O reino dos céus é
semelhante a um pai de família que saiu de madrugada, a
fim de assalariar trabalhadores para a sua vinha. – Tendo
convencionado com os trabalhadores que pagaria um denário
a cada um por dia, mandou-os para a vinha. – Saiu de novo
à terceira hora do dia e, vendo outros que se conservavam
na praça sem fazer coisa alguma, – disse-lhes: Ide
também vós outros para a minha vinha e vos pagarei
o que for razoável. Eles foram. – Saiu novamente
à hora sexta e à hora nona do dia e fez o mesmo.
– Saindo mais uma vez à hora undécima, encontrou
ainda outros que estavam desocupados, aos quais disse: Por que
permaneceis aí o dia inteiro sem trabalhar? – É,
disseram eles, que ninguém nos assalariou. Ele então
lhes disse: Ide vós também para a minha vinha. –
Ao cair da tarde disse o dono da vinha àquele que cuidava
dos seus negócios: Chama os trabalhadores e paga-lhes,
começando pelos últimos e indo até aos primeiros.
– Aproximando-se então os que só à
undécima hora haviam chegado, receberam um denário
cada um. – Vindo a seu turno os que tinham sido encontrados
em primeiro lugar, julgaram que iam receber mais; porém,
receberam apenas um denário cada um. – Recebendo-o,
queixaram-se ao pai de família, – dizendo: Estes
últimos trabalharam apenas uma hora e lhes dás tanto
quanto a nós que suportamos o peso do dia e do calor. –
Mas, respondendo, disse o dono da vinha a um deles: Meu amigo,
não te causo dano algum; não convencionaste comigo
receber um denário pelo teu dia? – Toma o que te
pertence e vai-te; apraz-me a mim dar a este último tanto
quanto a ti. – Não me é então lícito
fazer o que quero? Tens mau olho, porque sou bom? – Assim,
os últimos serão os primeiros e os primeiros serão
os últimos, porque muitos são os chamados e poucos
os escolhidos.
3. Começando a entender...
Das parábolas evangélicas, algumas são de compreensão
relativamente fácil, como a do bom samaritano (Lc 10:25-37)
e a dos talentos (Mt 25:14-30). Outras, porém, trazem dificuldades
interpretativas consideráveis, exigindo mais meditação
e maior familiaridade com o conjunto da doutrina cristã para
que um sentido razoável seja alcançado. Dissemos um
sentido, porque a riqueza alegórica dessas estórias
contadas pelo Mestre em geral deixa aberta a possibilidade de diversas
interpretações.
A parábola dos trabalhadores
da última hora seguramente pertence à classe das parábolas
“difíceis”, já que compara o reino dos
céus, onde tudo é justiça, com uma situação
aparentemente injusta: a remuneração igual a jornadas
de trabalho desiguais.
Não obstante essa dificuldade
central, a parábola contém, felizmente, alguns pontos
mais ou menos claros, com os quais devemos principiar nossos esforços
interpretativos. Trata-se de várias “pontes”
que ligam os elementos da estória com o reino dos céus:
o pai de família – Deus
a vinha – o Universo
os trabalhadores – os seres humanos
o trabalho na vinha – o trabalho no bem
as horas – qualquer período de tempo
o salário – a felicidade
Embora nem todas as ligações sugeridas sejam triviais,
acreditamos que sejam as que mais naturalmente ocorrem a quem se
dedique a entender o texto evangélico. O sentido geral do
ensinamento é que é difícil de apreender, dado
o aparente conflito da idéia de um Deus justo com o modo
pelo qual o senhor da vinha remunerou os trabalhadores. Logicamente,
só temos duas opções para eliminar o conflito:
ou supomos que Jesus de fato pretendeu caracterizar Deus como injusto;
ou revemos nossa impressão inicial, de que o comportamento
do senhor da vinha foi injusto. Ora, como a primeira alternativa
é insustentável, face ao conjunto dos ensinamentos
cristãos, temos de desenvolver a segunda opção.
Para tanto, comecemos atentando para o seguinte:
a) O pai de família pagou aos trabalhadores da primeira hora
exatamente o valor combinado, de modo que não os prejudicou,
como ele mesmo lembrou quando eles se queixaram;
b) Quanto aos demais, a parábola nada diz sobre acerto de
salário, sugerindo-nos que os trabalhadores aceitaram a oferta
de trabalho sem pré-condições;
c) O próprio senhor da vinha justifica sua ação,
dizendo que foi um ato de bondade: o denário que mandou dar
aos que foram convocados mais tarde seria, pois, parte remuneração
pelas horas que trabalharam e parte auxílio espontâneo.
Assim, quando consideramos os casos separadamente vemos que em suas
relações com cada grupo de obreiros o senhor nada
fez de errado.
Mas mesmo nos termos em que a questão é colocada no
item (c), ficamos incomodados com o fato de que o senhor distribuiu
o benefício-extra desigualmente: quanto mais tarde chegaram,
menor a parcela do denário correspondente à remuneração,
e portanto maior a que representaria o auxílio.
Talvez seja útil transpor a questão para situações
de nosso dia-a-dia. Quando saímos pela rua e damos esmolas
desiguais a dois pedintes estaremos sendo injustos? Quando contribuímos,
em trabalho ou dinheiro, com duas instituições de
caridade, porém em maior medida a uma do que à outra,
é injustiça?
Nossas reflexões sobre esse problema podem ser auxiliadas
pelas considerações expendidas por Constantino na
mencionada instrução. Passemos, pois, a ela.
4. Recorrendo a Constantino...
O texto de Constantino compõe-se de quatro parágrafos,
que passam gradativamente aos níveis interpretativos mais
alegóricos da parábola. O curto parágrafo inicial
atém-se ainda de forma quase que exclusiva ao sentido literal
do texto evangélico:
[§ 1] O obreiro da última hora tem direito ao salário,
mas é preciso que a sua boa-vontade o haja conservado à
disposição daquele que o tinha de empregar e que o
seu retardamento não seja fruto da preguiça ou da
má-vontade. Tem ele direito ao salário, porque desde
a alvorada esperava com impaciência aquele que por fim o chamaria
para o trabalho. Laborioso, apenas lhe faltava o labor.
Vemos que o Espírito destaca alguns aspectos importantes
que ainda não havíamos considerado. Há uma
condição para o recebimento do denário: a disposição
permanente para o trabalho. Aqueles que foram contratados à
terceira, sexta, nona e undécima hora tinham boa-vontade,
ansiavam por trabalhar. Faltou-lhes, porém, a oportunidade.
Quando o senhor da vinha os convocou, aceitaram pressurosamente
e, segundo se depreende, sem sequer inquirir pela remuneração.
Visando a realçar esse ponto, no segundo parágrafo
Constantino estende a parábola para uma hipotética
situação contrastante:
[§ 2] Se, porém,
se houvesse negado ao trabalho a qualquer hora do dia; se houvesse
dito: “tenhamos paciência, o repouso me é agradável;
quando soar a última hora é que será tempo
de pensar no salário do dia; que necessidade tenho de me
incomodar por um patrão a quem não conheço
e não estimo! quanto mais tarde, melhor”; esse tal,
meus amigos, não teria tido o salário do obreiro,
mas o da preguiça.
As disposições
positivas dos trabalhadores da última hora podem, assim,
ser entendidas como fatores que sensibilizaram o pai de família,
induzindo-o ao gesto de generosidade.
Ademais, vale lembra que ao perguntar, no item 930 de O Livro dos
Espíritos, acerca da situação das pessoas que
se vêm impossibilitadas de trabalhar por causas independentes
de sua vontade, Kardec obtém a observação de
que “Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém
deve morrer de fome”. E, explicando o ponto, os Espíritos
acrescentam: “Com uma organização social criteriosa
e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o necessário.”
É, pois, uma clara alusão à solidariedade que
os homens devem se esforçar por implantar no mundo.
Felizmente, notamos que esse pensamento, de vanguarda para a época,
já vem se difundindo entre as lideranças mais lúcidas
de nossa sociedade, tanto assim que em muitos países já
existe o seguro-desemprego, para acudir aos trabalhadores que contingencialmente
se encontrem sem oportunidade de emprego. Nenhuma pessoa sensata
classificaria de injusto esse dispositivo, muito pelo contrário.
Ora, nessa perspectiva o senhor da parábola seria alguém
que, mesmo naqueles tempos primitivos, teria sido tocado pela dificuldade
daqueles homens que impacientemente esperavam pela oportunidade
de ganhar seu pão, solidarizando-se com eles por meio, primeiro,
da oferta de trabalho e, depois, pelo auxílio pecuniário
adicional.
Afastando-nos agora um pouco do sentido literal da estória,
ensaiemos a sua interpretação em termos do “reino
dos céus”. Com base no que foi visto até aqui,
infere-se que com a parábola Jesus procurou salientar a virtude
da boa-vontade e da disposição para o trabalho. Num
plano mais amplo, o trabalho não deve, é claro, ser
entendido unicamente como o trabalho ordinariamente assim considerado,
as atividades braçais e intelectuais passíveis de
remuneração. “Toda ocupação útil
é trabalho”, conforme a resposta à questão
675 de O Livro dos Espíritos. Tudo o que concorra para o
desenvolvimento próprio, do semelhante e, em geral, da criação,
é trabalho, nessa conceituação estendida.
A mensagem mais evidente da parábola é, pois, a importância
de nosso engajamento nas atividades da “vinha” universal.
Ele traz para nós o “salário” da felicidade:
o bem-estar físico, a satisfação intelectual,
o prazer do cultivo do Belo, a tranqüilidade moral.
A diversidade dos grupos de trabalhadores da parábola indica
a diversidade dos seres criados e das tarefas a desempenhar em cada
estágio de sua evolução. Deus reconhece essa
diversidade, convocando cada um a seu tempo para as tarefas adequadas
ao momento. E contanto que haja disposição para o
trabalho, todos recebem o fruto de seus labores, por mais modestos
que sejam. Não espera o Senhor que, num dado “dia”
todos desempenhem as mesmas tarefas. A meta de todos deve ser a
de colaborar cada vez mais na obra divina, mas a convocação
divina leva em conta a capacidade presente de cada um. A nós
cabe estar permanentemente dispostos ao labor, para que não
sejamos como os servos imaginados por Constantino, que receberam
somente o “salário da preguiça”, ou seja,
a estagnação evolutiva.
Não somente a preguiça e a indiferença têm
de ser evitadas, mas também a afoiteza e a precipitação.
Por falta de bom-senso, arriscamo-nos freqüentemente em tarefas
para as quais não estamos, presentemente, preparados. Pior
ainda: movidos pelo orgulho lançamo-nos em empreendimentos
que se nos afiguram “grandes”, não pelo bem que
deles decorra, mas pela evidência em que nos coloquem. O malogro
parcial ou total, e a dura decepção de nossa vaidade
é o resultado inevitável de tais iniciativas.
A igualdade dos “pagamentos” que cada trabalhador de
boa-vontade recebe reflete a bondade divina, que valoriza tudo aquilo
que venhamos a fazer na obra do bem. Não ressaltou Jesus
esse ponto na expressiva passagem do óbolo da viúva?
(Ver Mc 12:41-44 e Lc 21:1-4, bem como os comentários de
Kardec a essa passagem no item 6 do capítulo 13 de O Evangelho
Segundo o Espiritismo.)
Outra virtude veladamente evocada pela parábola é
o desinteresse. Conforme já notamos, os trabalhadores da
última hora e todos os demais que foram convocados depois
do início do dia aceitaram a oferta de trabalho sem perguntar
quanto ganhariam. Do mesmo modo, nossa meta é fazer o bem
pelo bem, tão logo a ocasião apareça, e não
“por cálculo”, contabilizando os benefícios
que dele nos advenham. Kardec sabiamente inseriu um estudo sobre
esse ponto logo após o referente ao óbolo da viúva,
nos itens 7 e 8 do capítulo 13 de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Todo esse capítulo, aliás, contém reflexões
valiosas sobre o assunto, complementando as fundamentais elucidações
contidas na seção inicial do capítulo “Da
perfeição moral” de O Livro dos Espíritos.
Por fim, além da indolência e do interesse, mais um
vício parece ser exprobrado na parábola: a inveja
(“Tens mau olho, porque sou bom?”). Vendo o gesto de
generosidade do pai de família, os trabalhadores da primeira
hora queixaram-se, muito embora no que lhes dissesse respeito ele
houvesse agido com correção. Aproveitando uma sugestão
interpretativa feita anteriormente, seria mais ou menos como se
nos queixássemos do governo por conceder auxílio-desemprego
a um colega provisoriamente desempregado. Além de injustificável
inveja, faltaríamos com a solidariedade, que deve reinar
entre os homens em geral. (Questão deixada para o leitor:
Quem os trabalhadores da primeira hora poderiam simbolizar?)
5. Ainda com Constantino...
Após ter comentado, assim, a situação dos preguiçosos
e indiferentes, Constantino prossegue, penúltimo parágrafo
da mensagem:
[§ 3] Que dizer, então,
daquele que, em vez de apenas se conservar inativo, haja empregado
as horas destinadas ao labor do dia em praticar atos culposos;
que haja blasfemado de Deus, derramado o sangue de seus irmãos,
lançado a perturbação nas famílias,
arruinado os que nele confiaram, abusado da inocência, que,
enfim, se haja cevado em todas as ignomínias da Humanidade?
Que será desse? Bastar-lhe-á dizer à última
hora: Senhor, empreguei mal o meu tempo; toma-me até ao
fim do dia, para que eu execute um pouco, embora bem pouco, da
minha tarefa, e dá-me o salário do trabalhador de
boa vontade? Não, não; o Senhor lhe dirá:
“Não tenho presentemente trabalho para te dar; malbarataste
o teu tempo; esqueceste o que havias aprendido; já não
sabes trabalhar na minha vinha. Recomeça, portanto, a aprender
e, quando te achares mais bem disposto, vem ter comigo e eu te
franquearei o meu vasto campo, onde poderás trabalhar a
qualquer hora do dia.”
Agora não se trata
mais da indolência do servo que despreza o trabalho, mas da
ação destrutiva daquele que, ao invés de ajudar,
atrapalha a obra divina. A extensão dos comentários
de Constantino para esse tópico é particularmente
relevante para nós, Espíritos ligados à Terra.
A observação dos fatos confirma a classificação
de Kardec na seção “Destinação
da Terra – Causas das misérias humanas”, do capítulo
3 de O Evangelho Segundo o Espiritismo, da Terra como planeta especialmente
destinado ao abrigo de Espíritos desajustados com as leis
divinas. Como reafirmaria depois Emmanuel, “todas as entidades
espirituais encarnadas no orbe terrestre são Espíritos
que se resgatam ou aprendem nas experiências humanas, após
as quedas do passado, com exceção de Jesus-Cristo...”
(O Consolador, questão 243).
Também sabemos, à luz dos ensinos cristãos
e espíritas, que nossa interferência indébita
na harmonia universal traz para nós conseqüências
negativas, sofrimentos e tribulações que visam a impor
limites à nossa ação maléfica, despertando-nos
para o bem. Não desenvolveremos esse tema aqui, por sobejamente
explorado na boa literatura espírita.
Centremos nossa atenção nas singulares palavras de
Constantino. Como entender a reação atribuída
ao Senhor, diante do servo mau: “Não tenho presentemente
trabalho para te dar...” ? Tolher-nos-ia Deus a oportunidade
do trabalho depois que falimos? Sabemos, por outro lado, que é
somente pelo trabalho no bem que repararemos nossos erros, apagando
suas repercussões. (Ver o “Código penal da vida
futura”, no capítulo 7 da primeira parte de O Céu
e o Inferno.)
Inspecionando mais atentamente o texto, vemos que o Senhor não
impede para sempre o servo “cevado em todas as ignomínias”
de trabalhar em sua vinha. Depois que reaprender a trabalhar construtivamente,
ser-lhe-á novamente franqueado o vasto campo de ação
na vinha.
Mas por que esse impedimento temporário? É que a prática
do mal pode de tal forma destrambelhar-nos que, por algum tempo,
naturais limitações nos advirão. Seria como
um motorista insensato, que provoca um acidente e vai hospitalizado.
Enquanto permanecer internado, não poderá desenvolver
todas as atividades para as quais estaria em princípio capacitado.
É um período de recomposição.
Do mesmo modo, aos nossos desatinos espirituais sobrevém
um estágio de reequilíbrio, de aprendizado pela dor,
de reflexão. Se, porém, esse estágio no “hospital”
divino nos limita em alguns aspectos – as idiotias, as paralisias,
as enfermidades degenerativas incuráveis, a miséria
extrema, etc. – sempre resta-nos a possibilidade de agir no
bem pela paciência e resignação, pelos esforços
para corrigir-nos, pela gratidão a quem nos auxilie, pelo
sorriso de esperança, e por tantas outras formas.
6. Seriam os espíritas os trabalhadores da última
hora?
Concluindo este nosso estudo, vejamos agora o último parágrafo
do texto de Constantino. Com base nele, bem como numa passagem da
Instrução que o segue, de Henri Heine, difundiu-se
no meio espírita a idéia de que “os espíritas
são os trabalhadores da última hora”. Não
é raro vermos esse pensamento exposto até mesmo com
uma certa ponta de orgulho. Afinal, na parábola os trabalhadores
da undécima hora são aqueles que mais se beneficiaram
da magnanimidade do senhor. Estaríamos todos, então,
admitidos à vinha, com salário integral e tudo.
Será isso o que os Espíritos escreveram, ou deram
a entender? Examinaremos aqui apenas o que diz Constantino, pois
a mensagem de Heine parte de uma perspectiva diferente e requereria
outro artigo. Eis o parágrafo:
[§ 4] Bons espíritas,
meus bem-amados, sois todos obreiros da última hora. Bem
orgulhoso seria aquele que dissesse: Comecei o trabalho ao alvorecer
do dia e só o terminarei ao anoitecer. Todos viestes quando
fostes chamados, um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, para
a encarnação cujos grilhões arrastais; mas
há quantos séculos e séculos o Senhor vos
chamava para a sua vinha, sem que quisésseis penetrar nela!
Eis-vos no momento de embolsar o salário; empregai bem
a hora que vos resta e não esqueçais nunca que a
vossa existência, por longa que vos pareça, mais
não é do que um instante fugitivo na imensidade
dos tempos que formam para vós a eternidade.
A leitura atenta deste trecho
não parece corroborar a referida interpretação.
Primeiro, a frase inicial qualifica os espíritas: “Bons
espíritas...”. O adjetivo ‘bons’ em geral
passa despercebido! Logo, a frase não diz respeito aos espíritas
em geral, mas aos bons espíritas. E todos conhecemos a impressionante
lista de qualidades dos bons espíritas, que Kardec registrou
no capítulo 17 do Evangelho Segundo o Espiritismo, seções
“O homem de bem” e “Os bons espíritas”.
Além disso, a frase não tem o artigo definido ‘os’
antes de ‘obreiros da última hora’, como normalmente
se diz. A inclusão do artigo emprestaria ao pensamento um
ar de sectarismo e orgulho incompatível com a índole
da doutrina espírita. Os bons espíritas não
são os obreiros da última hora, com a implícita
exclusão dos outros homens, mas simplesmente obreiros da
última hora. Eles são aqueles que passaram, numa “hora”
relativamente recente da história da humanidade, a trabalhar,
ao lado de tantos outros, na vinha do Senhor.
E mais: nem mesmo entendida corretamente a comparação
de Constantino serviria de fundamento a qualquer sentimento ufanista
no meio espírita. Afinal, os trabalhadores da última
hora não tiveram nenhum mérito relativamente aos da
primeira hora. Simplesmente são aqueles para quem, por uma
razão ou por outra, a tarefa chegou um pouco mais tarde.
Prosseguindo, o Espírito modifica um pouco a alegoria, ao
salientar que mesmo estes em geral ignoraram durante séculos
os apelos do Senhor para o trabalho na vinha! A rigor, então,
os bons espíritas não deveriam se orgulhar nem mesmo
de terem sempre estado aguardando ansiosamente o chamado para a
obra divina. Estão, via de regra, na condição
geral da humanidade terrena, de Espíritos que fizeram mau
uso de seu livre-arbítrio em passado próximo ou distante.
No entanto, o que os caracteriza – sem a exclusão de
outros, repetimos – é que agora já superaram
aquele período de “hospitalização”,
e reaprenderam a trabalhar no bem. Esse o seu maior salário:
a bênção de já poderem trabalhar na construção
de sua felicidade, mediante o amor ativo ao próximo e a si
mesmos.
Que dizer agora dos espíritas que ainda não podem
ser ditos bons? Esses são os que, não obstante terem
as luzes dos princípios espíritas ao seu alcance,
ainda resistem indolentemente a trabalhar, ou a trabalhar tanto
quanto sua condição permitiria; ou aqueles, em condição
mais lastimável ainda, que ainda se “cevam nas ignomínias”
morais, sem envidar esforços para emendar-se.
É claro que essa classificação não é
nítida, ou seja, não há apenas dois grupos
de espíritas. Há uma gradação contínua,
começando naqueles francamente retardatários e terminando
nos que já entendem e vivenciam plenamente as diretrizes
divinas para os homens. Caberá a nós determinar, pelo
exame isento de nossos pensamentos e atos, nossa posição
nessa escala, e incessantemente procurar galgar posições
cada vez mais avançadas, pela reparação de
nossos erros, pela superação de vícios e conquista
de virtudes.