1. Introdução
O Espiritismo não
pode considerar crítico sério senão aquele
que tudo tenha visto, estudado e aprofundado com a paciência
e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto
saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte,
haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances
da ciência; aquele a quem não se possa opor fato algum
que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não
tenha cogitado e cuja refutação faça, não
por mera negação, mas por meio de outros argumentos
mais peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar,
para os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que
lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por
aparecer.
Allan
Kardec, Le Livre des Médiuns, § 14, n. 8. [nota
1]
Ao procurarmos aplicar esses critérios para a caracterização
de um crítico legítimo do Espiritismo a cada um daquele
que o têm pretendido ser durante os mais de cento e vinte anos
que se passaram desde que Allan Kardec os enumerou, verificamos, facilmente
e sem possibilidade de erro, que mesmo hoje tal crítico "ainda
está para aparecer", em patente demonstração
da excelência metodológica do Espiritismo, da solidez
de seus fundamentos, de sua superioridade relativamente aos demais
sistemas, doutrinas, teorias que com ele têm em comum o mesmo
objeto de estudo, ou seja, a existência e a natureza do elemento
espiritual.
Essa tese foi tão lucidamente
defendida pelo próprio Kardec em várias de usas obras
que acreditamos redundantes quaisquer argumentações
posteriores. Nosso propósito aqui será, portanto, tão
unicamente o de relembrar alguns dos aspectos já considerados
pelo Codificador da Doutrina Espírita, comentando-os dentro
do contexto de certas dificuldades encontradas por alguns espíritas
quando da análise comparativa do Espiritismo com "sistemas"
alternativos.
Não é inexpressivo o
número de indivíduos e instituições ditos
espíritas empenhados na busca de "novidades" que
possam, segundo pensam, "atualizar" a Doutrina, dar-lhe
"fundamentação científica", "harmonizá-la
às conquistas da Ciência". Nesse sentido, procuram
ressaltar e dar cobertura - inclusive através de periódicos
espíritas, ciclos de palestras, etc - a pesquisadores das chamadas
"ciências psi", notadamente aqueles detentores de
títulos acadêmicos. Tentaremos, dentro das limitações
de espaço de um artigo, mostrar que tais atitudes decorrem
de uma injustificável inversão de valores, prejudicial
tanto ao Movimento Espírita como ao próprio desenvolvimento
da Doutrina e do conhecimento humano em geral.
2. O Espiritismo é científico
O Espiritismo
é uma ciência que trata da natureza, origem e destino
dos Espíritos, bem como de suas relações com
o mundo corporal.
Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme,
Preâmbulo.
Evidentemente, o estatuto científico de uma teoria não
pode ser decidido através da mera deliberação
de se definir como uma "ciência". Esse atributo é
inerente à natureza intrínseca da teoria, e não
à denominação que se lhe dê.
A tarefa de determinar quais as características
de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu enquadramento
na categoria de ciência cabe à sub-área da Filosofia
intitulada Filosofia da Ciência. Essa disciplina,
assim como outros ramos do saber, vem evoluindo constantemente. Em
seu caso específico, progressos essenciais ocorreram no século
XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os trabalhos
de vários filósofos, entre os quais Karl Popper,
Willard Quine, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos,
evidenciaram graves problemas na concepção de ciência
que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito
freqüente encontrar-se entre os não são filósofos.
A compreensão dessa visão
"antiga" de ciência, de suas várias dificuldades,
dos argumentos avançados por esses filósofos e das novas
concepções que propuseram requer estudos especializados
de muitos anos, não podendo pois ser avançada dentro
de um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho
anterior tivemos ocasião de tentar fornecer uma tosca idéia
dessas questões. Procuraremos aqui relembrar algo do que ali
foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente
argumentação. [nota
2]
Muito simplificadamente, poderíamos
dizer que pelo menos desde o surgimento da ciência moderna,
por volta do século XVII, acreditava-se que a Ciência
consistia na catalogação neutra de um grande número
de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira
"espontânea", certa e infalível, as leis gerais
que o regem; a reunião de tais leis constituiria então
uma teoria científica.
Conforme mencionamos, essa visão
"clássica" de ciência mostrou-se insustentável.
Percebeu-se que a descrição, busca e classificação
dos fatos necessariamente envolve pressuposições teóricas
de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode resultar
lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que
ele seja; que uma teoria científica não é um
simples amontoado de leis, sendo, antes, uma estrutura dinâmica
complexa, na qual participam elementos de diversas naturezas, como
resultados observacionais, hipóteses livremente concebidas,
regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões metodológicas,
fragmentos de outras teorias etc.
Imre Lakatos sistematizou
as novas idéias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo
que a atividade científica desenvolve-se em torno do que denominou
"programa científico de pesquisa". [nota
3] Um tal programa de pesquisa consiste, em termos simplificados,
de um "núcleo rígido" de hipóteses
teóricas básicas, suplementado por um "cinturão
protetor" de hipóteses auxiliares, que serve para ligar
e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a ciência
trata. A cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas",
uma "negativa", que é a decisão metodológica
de se manter inalteradas as hipóteses do núcleo, e outra
"positiva", que é um conjunto de sugestões
ou idéias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor
de modo que o programa dê conta de novos fenômenos e explique
os já conhecidos de maneira mais precisa. Um programa de pesquisa
é dito "progressivo" caso leve sistematicamente à
descoberta de novos fatos, que sejam por ele explicados; caso contrário,
será dito "degenerante".
Tomando o exemplo de um dos mais bem
sucedidos programas de pesquisa da Física, a Mecânica
Newtoniana, vemos que possui um núcleo rígido formado
pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da gravitação
universal, que a heurística negativa do programa recomenda
sejam mantidas inalteradas: eventuais discrepâncias com a experiência
devem ser eliminadas através de ajustes nas hipóteses
auxiliares do cinturão protetor. Esse processo ocorreu várias
vezes durante o desenvolvimento do programa, como quando, no século
XIX, se verificou que as previsões teóricas para a trajetória
do planeta Urano conflitavam com os dados da observação
astronômica; ao invés de imputar esse desvio a possível
falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se que
deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória
do planeta; mais tarde, foi, de fato, observada a existência
desse corpo, o planeta Netuno. Assim como nesse episódio, a
conjunção das heurísticas negativa e positiva
do programa newtoniano levou à inúmeros desenvolvimentos:
novas teorias ópticas, novos aparelhos e técnicas de
observação, criação de novos ramos da
Matemática etc. A partir do início de nosso século,
porém, o programa tornou-se degenerante, por motivos vários
que não cabe expor aqui, vindo a ser substituído pelos
programas das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica.
Olhando agora para o Espiritismo,
vemos que traz em si todas as características de um programa
de pesquisa progressivo, sendo, portanto, genuinamente científico,
segundo o critério lakatosiano.
Possui um núcleo rígido
formado pelo princípio da existência de uma "inteligência
suprema, causa primária de todas as coisas", dotada da
suprema justiça e bondade; pela lei de causa e feito; pela
imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada;
pela existência do livre arbítrio, a partir de determinado
estágio evolutivo. Desse núcleo pode-se, com o auxílio
da lógica ("raciocínio") e de assunções
auxiliares, deduzir ("explicar") a infinidade de fenômenos
de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e
anímicos, a evolução dos seres, seus estados
psicológicos, sua condição após a morte
etc. Todos esses fato, analisados extensiva e objetivamente pelo Espiritismo,
embasam e sancionam o corpo de seus princípios teóricos;
este, a seu turno, concatena, torna inteligíveis, explica aqueles
fatos.
Allan Kardec percebeu, em admirável
antecipação às conquistas recentes da Filosofia
da Ciência, a importância fundamental dessa "simbiose"
entre fenômeno e teoria, e expendeu extensos comentários
sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos
iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns,
por exemplo, são uma obra prima de argumentação
filosófica que, embora visando à elucidação
de uma questão ligeiramente diferente, contém valiosos
elementos relevantes ao assunto que estamos analisando. Comecemos
por estas considerações do Parágrafo 19:
É crença
geral que, para convencer, basta apresentar fatos. Esse, com efeito,
parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a experiência
que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo se encontram
pessoas que os mais patentes fatos absolutamente não convenceram.
A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.
No Parágrafo 29 Kardec volta
ao ponto:
Podemos dizer
que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio,
os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto
mais extraordinários são esses fenômenos, quanto
mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição
encontram e isto por uma razão muito simples: é que
todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem
sanção racional. Cada um a considera de seu ponto
de vista e a explica a seu modo [...].
Essa "sanção racional"
é a que advém da explicação dos fatos
através da teoria. No Parágrafo 34, após ressaltar
a importância dos fatos na fundamentação da teoria,
Kardec considera, por outro lado, que de dez pessoas novatas que assistam
a uma sessão de experimentação espírita
"nove sairão sem estar convencidas e algumas mais incrédulas
do que antes, por não terem as experiências correspondido
ao que esperavam".
Prossegue então Kardec:
O inverso se dará com as
que puderem compreender os fatos, mediante antecipado conhecimento
teórico. Paras estas pessoas, a teoria constitui um meio
de verificação, sem que coisa alguma as surpreenda,
nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições
os fenômenos se produzem e que não se lhes deve pedir
o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia
dos fatos não só as coloca em condições
de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem
um sem número de particularidades, de matizes, às
vezes muito delicados, que escapam ao observador ignorante.
Considerações interessantes
nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o
Espiritismo. No diálogo com o Crítico (Cap. I, Primeiro
Diálogo) Kardec pondera, em resposta à solicitação
que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:
E julgais que isto vos baste para
poder, ex professo, falar de Espiritismo? Como poderíeis
compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las,
quando não estudaste os princípios em que elas se
baseiam? Como apreciaríeis o resultado, satisfatório
ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não
conhecendo a fundo a metalurgia?
Mais adiante, no diálogo com
o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo,
seção "Elementos de convicção")
Kardec coloca a questão em termos explícitos:
Há duas coisas no Espiritismo:
a parte experimental das manifestações e a doutrina
filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas
que ainda nada viram e crêem tão firmemente como eu,
pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para
elas o fenômeno das manifestações é acessório;
o fundo é a doutrina, a ciência; eles a vêem
tão grande, tão racional, que nela encontram tudo
quanto possa satisfazer às suas aspirações
interiores, à parte o fato das manifestações;
do que concluem que, supondo não existissem as manifestações,
a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve
uma multidão de problemas reputados insolúveis. Quantos
me disseram que essas idéias estavam em germe no seu cérebro,
conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las,
dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o
que explica o número de adeptos que a simples leitura de
O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número
seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado das
mesas girantes e falantes ?
A primeira sentença que destacamos
revela uma vez mais que Kardec localizava o caráter científico
do Espiritismo na "doutrina", na sua "parte filosófica",
que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido como
aquilo a que vimos denominando "teoria". Os fatos em si
não constituem a ciência.
Nosso segundo destaque mostra que Kardec já
entendia o papel da teoria como dando "corpo", ou seja,
coesão, inteligibilidade, aos fenômenos, que é
a tarefa que Lakatos atribui aos princípios teóricos
do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo rígido.
No decorrer das próximas seções
a tese da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando
receberá indiretamente mais elementos de comprovação.
3. "O Espiritismo não é
da alçada da Ciência"
A frase que serve de título a esta seção
foi extraída do Item VII da magnífica peça "Introdução
ao Estudo da Doutrina Espírita", que Kardec fez figurar
como introdução de O Livro dos Espíritos. Esse
item trata especificamente da relações entre a Doutrina
Espírita e a Ciência, devendo esta ser entendida aqui
como o conjunto das ciências ordinárias, "oficiais",
das academias, tal como a Física, a Química e a Biologia.
[nota 4]
Apesar da clareza
e da robustez argumentativa com que Allan Kardec abordou esse assunto,
não somente nessa seção de O Livro dos Espíritos,
mas também em outras de suas obras, especialmente em O que
é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns e A Gênese,
Os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, curiosamente
observam-se ainda hoje muitos equívocos em sua apresentação,
mesmo por parte de espíritas. Destarte, mais uma vez repetimos
que não acrescentando nada ao que já disse o preclaro
Codificador, mas apenas relembrando seus argumentos. [nota
5]
Começaremos notando que a afirmação
de Kardec em consideração vem, no texto, precedida pela
palavra portanto, o que mostra que, seguindo a regra que invariavelmente
adotou, Kardec ofereceu um argumento à assertiva, que, dada
a sua importância, não poderia ser postulada dogmaticamente.
Esse argumento encontra-se no próprio
parágrafo que contém a assertiva em discussão:
As ciências ordinárias
assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar
e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam
na ação de inteligências dotadas de vontade
própria e que nos provam a cada instante não se acharem
subordinadas aos nossos caprichos. As observações
não podem, portanto, ser feitas de mesma forma; requerem
condições especiais e outro ponto de partida. Querer
submetê-la aos processos comuns de investigações
é estabelecer analogias que não existem. A Ciência,
propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente
para pronunciar na questão do Espiritismo: não tem
que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, favorável
ou não, nenhum peso poderá ter.
É admirável a simplicidade
do argumento: o Espiritismo e a Ciência tratam de domínios
diferentes de fenômenos: o primeiro dos relativos ao elemento
espiritual, a segunda daqueles concernentes ao elemento material.
Têm, portanto, métodos específicos e objetivos
distintos, não cabendo, pois, julgamentos recíprocos.
Notemos que não se pode confundir o fato de
o Espiritismo ser uma ciência - o que procuramos mostrar na
seção anterior - com a assunção falsa
de que ele pertence ao domínio da Ciência (ou seja, da
Física, da Química e da Biologia).
Um pouco adiante, Kardec enfatiza:
Repetimos mais uma vez que, se
os fatos a que aludimos se houvessem reduzido ao movimento mecânico
dos corpos, a indagação da causa física desse
fenômeno caberia no domínio da Ciência; porém,
desde que se trata de uma manifestação que se produz
com exclusão das leis de Humanidade, ela escapa à
competência da ciência material, visto não poder
exprimir-se nem por algarismos, nem pela força mecânica.
Estudando domínios diferentes e complementares,
"O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente",
conforme destacadamente exarou Kardec no Parágrafo 16 do Capítulo
I de A Gênese.
Antes de prosseguirmos, vejamos como Kardec reapresenta
o argumento em estudo em O que é Espiritismo.
Ali, o assunto é tratado extensivamente. Na décima quinta
resposta ao Crítico (Cap. I, Primeiro
Diálogo), Kardec lembra uma vez que:
os fenômenos espíritas
diferem essencialmente dos das ciências exatas: não
se produzem à vontade; é preciso que os colhamos de
passagem; é observando muito e por muito tempo que se descobre
uma porção de provas que escapam à primeira
vista, sobretudo, quando não se está familiarizado
com as condições em que se pode encontrá-las,
e ainda mais quando se vem com o espírito prevenido.
E, na resposta seguinte, enfatiza:
Não se pode fazer um
curso de Espiritismo experimental como se faz um de Física
ou de Química, visto que nunca se é senhor de produzir
os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências
que lhe são o agente fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas
as nossas previsões.
No diálogo com o Céptico
(Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Oposição
da Ciência") Kardec enfoca outro aspecto da questão,
igualmente já tratado no referido Item VII da Introdução
de O Livro dos Espíritos. Estabelecida a independência
da Ciência e do Espiritismo, resta ver se estariam os cientistas
mais autorizados que as demais pessoas a se pronunciar sobre o Espiritismo.
Tal questão é ainda atual, já que vemos muitos
espíritas na posição em que Kardec situa o Céptico
do diálogo: afligem-se por buscar o apoio dos cientistas. "Admito
perfeitamente", diz o Céptico, "que eles não
são infalíveis; mas não é menos verdade
que, em virtude do seu saber, sua opinião vale alguma coisa,
e que, se ela estivesse do vosso lado, daria grande peso ao vosso
sistema".
A réplica de Kardec vem, como sempre, vazada
no bom senso e na lógica:
Concordai, também, que ninguém
pode ser bom juiz naquilo que está fora da sua competência.
Se quiserdes edificar uma casa, confiaríeis esse trabalho
a um músico?
Se estiverdes enfermo, far-vos-ei tratar por um arquiteto?
Quando estais a braços com um processo, ides consultar um
dançarino?
Finalmente, quando se trata de uma questão de teologia, alguém
irá pedir solução a um químico ou a
um astrônomo?
Não, cada um em sua especialidade.
As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria,
que se pode, à vontade, manipular.; os fenômenos que
ela produz têm por agentes forças materiais.
Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que
possuem independência, livre-arbítrio e não
estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam
aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos,
e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência
propriamente dita.
A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos
como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia
ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe;
e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação,
juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando
diariamente, como já fez com tantos outros [...].
As corporações científicas não devem,
nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão; ela
está tão fora dos limites do seu domínio como
a de decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro
tomá-las aqui por juiz.
Kardec mostrou que nem o estudo do
Espiritismo cabe à Ciência, nem estão os cientistas
em posição privilegiada para sobre ele opinar. Foi mesmo
além: dada a freqüente distorção que o envolvimento
com sua especialidade impões à sua maneira de apreciar
as coisas, suas opiniões podem até mesmo estar mais
sujeitas a equívocos. No referido item de O Livro dos
Espíritos Kardec considera:
Aquele que se fez especialista
prende todas as suas idéias à especialidade que adotou.
Tirai-o daí e o vereis sempre desarrazoar, por querer submeter
tudo ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana.
Nada obsta, evidentemente, a que os
cientistas se interessem, enquanto homens, pelo Espiritismo, e o estudem
e avaliem nessa condição. Um pouco abaixo do trecho
que acabamos de transcrever, Kardec pronuncia-se nesse sentido:
O Espiritismo é o resultado
de uma convicção pessoal, que os cientistas, como
indivíduos, podem adquirir, abstração feita
de sua qualidade de cientistas [...].
Quando as crenças espíritas se houverem difundido,
quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se
dará com o que tem acontecido com todas as idéias
novas que hão encontrado oposição: os cientistas
se renderão à evidência. Lá chegarão,
individualmente, pela força das coisas. Até então
será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais,
para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não
lhes está nem nas atribuições, nem no programa.
Enquanto isso não se verifica, os que, sem assunto prévio
e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem
de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo
se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra
à Humanidade.
Ainda um último aspecto está
envolvido nas relações entre o Espiritismo e a Ciência:
a necessidade que ele tem de não entrar em descompasso com
o progresso científico.
O local clássico onde Kardec
tratou desse ponto é o Parágrafo 55 do Capítulo
I de A Gênese. Começa considerando que "apoiando-se
em fatos [a revelação espírita] tem que ser,
e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva".
Esse caráter essencial do Espiritismo resulta de sua natureza
genuinamente científica: embora o núcleo de seus princípios
básicos permaneça inalterado, complementações
e ajustes nas assunções auxiliares do cinturão
protetor o colocam sempre em concordância com as novas descobertas.
É isso que se tem verificado ao longo da história do
Espiritismo. O núcleo doutrinário fundamental contido
em O Livro dos Espíritos foi, nas mãos equilibradas
do próprio Kardec, desdobrado e ampliado nos estudos que resultaram
nas demais obras da Codificação. Hoje em dia, a vasta
literatura mediúnica legitimamente espírita ampliou,
por exemplo, os informes sobre o mundo espiritual. E isso, repetimos,
sem confronto com os princípios básicos.
No entanto, é preciso cautela
no entendimento da progressividade do Espiritismo.
Primeiro, ela deve ocorrer de acordo
com a heurística positiva do próprio programa espírita,
sem recurso a elementos estranhos, venham de onde vierem, sob o risco
de este perder sua consistência.
Depois, a harmonia com as conquistas
da Ciência não deve ser buscada irrestritamente e a qualquer
preço, visto estar ela, em suas proposições abstratas,
constantemente sujeita a enganos e retificações. Kardec
percebeu isso de maneira clara, mesmo tendo vivido antes das grandes
revoluções científicas do início de nosso
século. No item de O Livro dos Espíritos
de que estamos tratando encontramos este trecho:
Desde que a Ciência sai da
observação material dos fatos, para os apreciar e
explicar, o campo está aberto às conjecturas [...].
Não vemos todos os dias as mais opostas opiniões serem
alternadamente preconizadas e rejeitadas, ora repelidas como erros
absurdos, para logo depois aparecerem proclamadas como verdades
incontestáveis?
Aliás, é interessante
notar que se Kardec não tivesse imprimido ao programa espírita
a independência e autonomia que lhe imprimiu, ajustando-o, ao
invés, de modo irrestrito agraves teorias científicas
da época, ele teria, como conseqüência das aludidas
revoluções, soçobrado irremediavelmente.
Aparentemente, os que em nossos dias
advogam a tese do "ajuste à Ciência" ainda
não se deram conta desse fato, nem perceberam que no referido
parágrafo de A Gênese Kardec deixou
clara uma ressalva vital, ao falar desse ajuste:
Entendendo com todos os ramos
da economia social, aos quais dá apoio das suas próprias
descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas
progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam atingido
o estado de verdades práticas e abandonado o domínio
da utopia, sem o que ele suicidaria.
Notemos que o "suicídio"
do Espiritismo adviria, segundo Kardec, não só de sua
estagnação (aspecto esse sempre lembrado), mas também
de sua assimilação de doutrinas que não hajam
atingido o estado de "verdades práticas"(o que em
geral passa despercebido, por ter ficado implícito no texto).
Agora é certo que não
há nenhum princípio científico estável,
nenhuma "verdade prática", que o Espiritismo não
tenha ou assimilado, ou mesmo antecipado, sendo, portanto, improcedente
os pruridos de reforma e atualização da Doutrina.
4. As deficiências das chamadas
"ciências psi"
Todas
as teorias que pretendem elucidar os fenômenos mediúnicos,
alheias à Doutrina Espiritista, pecam pela sua insuficiência
e falsidade.
Emmanuel
Essa assertiva de Emmanuel, que abre
o Capítulo XIV do primeiro livro que nos legou por via mediúnica
(Emmanuel, psicografado por Francisco Cândido Xavier.), há
mais de cinqüenta anos, pode, a alguns, parecer demasiadamente
forte. No entanto, assim como tudo o que nos tem dito o iluminado
Espírito, decorre de uma análise isenta e racional dos
fatos. As conquistas recentes da Filosofia da Ciência, ainda
não alcançadas àquela época, evidenciam
inequivocamente a correção desse juízo. É
o que tentaremos resumidamente mostrar nesta seção.
A primeira linha de pesquisa não
espírita dos fenômenos espíritas (anímicos
e mediúnicos) que chegou a constituir uma "escola"
foi a Metapsíquica, que se desenvolveu nas
duas primeiras décadas desse século e culminou com a
publicação em Paris em 1922 do clássico Traité
de Métapsychique, de Charles Richet. Logo após, essa
escola foi cedendo lugar à Parapsicologia, cujo pioneiro foi
o norte-americano J. B. Rhine, que em 1937 publicou seu New Frontiers
of the Mind. De lá para cá, sob a inspiração
dessa disciplina, surgiram e continuam surgindo, em vertiginosa multiplicação,
várias outras linhas de investigação dos chamados
"fenômenos paranormais". Talvez não
seja exagero afirmar que elas são quase tão numerosas
quanto os pesquisadores, cada um com seu "sistema" próprio.
Denominaremos aqui, por simplicidade, de ciências psi o conjunto
de tais sistemas, muito embora, como veremos, não sejam ciências
genuínas.
Entre os traços comuns dessas
disciplinas, destacaríamos a pretensão à cientificidade,
a suposição de que aderem ao "método científico",
o emprego de métodos quantitativos e de aparelhos, uma certa
aversão a "teorias" etc.
Ocorre que à época do
nascimento da Parapsicologia, ou seja, nas décadas
de 20 e 30, a Filosofia da Ciência vivia o apogeu do Positivismo
Lógico. Essa doutrina filosófica representou,
por assim dizer, a tentativa suprema de articulação
da visão clássica de ciência, que mencionamos
anteriormente. Em que pese o empenho dos maiores filósofos
da época, porém, tal programa malogrou de forma espetacular
e definitiva, diante dos argumentos contra ele levantados, principalmente
pelos filósofos que citamos na seção 2 (Reformador,
novembro de 1988, págs. 328-331).
Apesar disso, tal foi a intensidade
desse movimento filosófico, que exerceu uma influência
sem precedentes sobre os cientistas, a qual sobreviveu ao seu fracasso,
perdurando até nossos dias, com conseqüências funestas
para a Ciência.
Inevitavelmente, a Parapsicologia,
que nascia àquela época com pretensões à
cientificidade, procurou seguir de forma estrita os cânones
preconizados pelo Positivismo Lógico para a caracterização
de uma ciência. (Esse fenômeno ocorreu também com
a Sociologia e com a Psicologia, que também andavam à
procura de cientificidade. A propósito, é significativo
o fato de Rhine e outros pioneiros da Parapsicologia terem sido psicólogos.)
A conseqüência não
poderia ser outra: essa nova disciplina carregou consigo, desde a
sua concepção, as deficiências graves da visão
lógico-positivista de ciência, vindo a adotar métodos
incompatíveis com os fins a que se propõe, perseguindo
um ideal de cientificidade completamente ilusório. E atrás
dela vieram as demais, a despeito da louvável boa intenção
da maioria de seus profitentes.
Para ilustrar essa situação,
consideremos agora alguns exemplos concretos dos equívocos
em que incorrem essas pretensas ciências.
a) Seguindo a velha
"receita", procuram acumular fatos sobre fatos, sem o auxílio
de um corpo teórico ordenador. Vimos acima quão inócuo
e anti-científico é esse procedimento, e quão
bem Kardec compreendeu tal realidade.
b) Quando explicações são dadas,
são-no fragmentariamente, cada fato sendo "explicado"
por uma hipótese isolada. Desse modo, mesmo se artificialmente
agruparmos essas hipóteses, não formaremos senão
um todo inconsistente, o que viola a própria Lógica.
A moderna Filosofia nem mesmo considera explicações
genuínas "explicações" isoladas de
fatos.
c) As explicações são, via de
regra, ainda mais fantásticas do que os fatos a que se propõem
explicar. Nas admiráveis refutações aos contraditores
do Espiritismo contidas em várias de suas obras, notadamente
em O que é o Espiritismo (Cap. I), O Livro dos Médiuns
(Primeira Parte, Cap. IV), ,O Céu e o Inferno (Primeira Parte)
e O Livro dos Espíritos (Introdução, Item XVI),
Allan Kardec, com a agudeza de espírito que o caracterizava,
já apontava esse tipo de problema. Na seção "Falsas
explicações dos fenômenos", do primeiro desses
livros, Kardec pergunta:
Como podem
pretender dar conta dos fenômenos espíritas [através
da hipótese da alucinação] sem serem antes
capazes de explicar sua explicação?
E mais adiante acrescenta:
É realmente curioso
observar os contraditores empenharem-se na busca de causas cem vezes
mais extraordinárias e difíceis de compreender do
que aquelas que lhes apresenta o Espiritismo.
Outro tipo de pseudo-explicação
comumente encontrada são as explicações puramente
nominais: carecem de qualquer substância, consistindo unicamente
do emprego de fraseologia excêntrica na descrição
dos fenômenos. Emmanuel profliga semelhante vício filosófico
no parágrafo que segue imediatamente ao que abre esta seção:
Em vão, procura-se complicar
a questão com termos rebuscados, apresentando-se as hipóteses
mais descabidas e absurdas [...].
d) Quando "teorias"
são fornecidas, não dão conta de todos os fatos.
Aqui também Kardec já alertou (O Livro dos Médiuns,
parágrafo 42):
O que caracteriza uma teoria verdadeira
é poder dar razão de tudo. Se, porém, um só
fato que seja a contradiz, é que ela é falsa, incompleta,
ou por demais absoluta.
e) Muitos fatos relevantes
simplesmente não são reconhecidos. Isso pode resultar:
i de idéias preconcebidas, como no caso daquelas que negam
a priori a possibilidade de sobrevivência do ser, e portanto
não investigam uma vasta quantidade de fenômenos relativos
a ela. (Esse problema atinge as raias do absurdo no horror que alguns
investigadores têm pelos médiuns - exatamente o manancial
mais abundante de fenômenos de que se dispõe!); ou ii.
da falta de uma teoria que guie na busca e análise dos fatos.
Vimos acima com Kardec quão longe está o Espiritismo
de incorrer em semelhantes enganos.
f) Emprego de técnicas de investigação
inadequadas. O caso típico e mais importante é o recurso
ao "método quantitativo". Como se sabe, tal método
constitui uma das maiores bandeiras da Parapsicologia e demais "ciências
psi", que julgam assim estar seguindo os afortunados caminhos
da Física e da Química. Ora, se indubitavelmente a análise
das quantidades desempenha nessas ciências um papel importante
(embora não exclusivo!), não se segue daí que
deva ser igualmente frutífero no estudo de uma ordem de fenômenos
completamente diferente. De fato, são, neste caso, de todo
dispensáveis (para dizermos pouco). É até mesmo
ridículo querer substituir a prova cabal fornecida por uma
manifestação inteligente (como por exemplo uma carta
que contém informações detalhadas de episódios
e coisas desconhecidas) por medidas de desvios estatísticos
em experimentos de identificação de cartas de baralho,
ou similares. Não que estas últimas sejam irrelevantes;
mas a evidência que podem dar é imensamente mais fraca
e duvidosa do que a que resulta das manifestações inteligentes,
e mesmo de efeitos físicos extraordinários produzidos
através de um médium possante. (Parece estarmos aqui
na situação de guerreiro que, dispondo de um moderno
canhão, prefira servir-se de um tosco estilingue...)
Essa situação foi, como sempre, percebida e combatida
por Allan Kardec, que não só enfatizou repetidamente
a importância crucial e a superioridade dos fenômenos
mediúnicos de efeitos inteligentes, como também explicitamente
referiu-se à inadequação dos métodos quantitativos,
conforme se observa nas citações que fizemos na seção
3, em especial neste trecho de O que é o Espiritismo
(destacamos):
[Os fenômenos espíritas]
têm, como agentes, inteligências que têm independência,
livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos
caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório
e aos nossos cálculos [...]. A Ciência enganou-se quando
quis experimentar os Espíritos, como o faz com uma pilha
voltaica; foi mal sucedida como devia ser, porque agiu pressupondo
uma analogia que não existe.
Também no Item de O
Livro dos Espíritos que vimos analisando Kardec alerta
(destacamos):
[As manifestações
espíritas] escapam à competência da ciência
material, visto não poder expressar-se por algarismos, nem
pela força mecânica.
g) Recurso desnecessário
e perigoso a aparelhos sofisticados. Não obstante de inegável
valor nas investigações da matéria, como mostram
os notáveis avanços da Física e da Química,
a prescindibilidade de aparelhos no estudo dos fenômenos espíritas
ficou evidenciada pelas considerações expendidas no
item anterior. Além disso, há mesmo riscos em sua utilização.
Primeiro, tal utilização pode encobrir deficiências
metodológicas profundas, produzindo uma ilusória impressão
de rigor, de cientificidade. Depois, e mais importante, do ponto de
vista epistemológico (ou seja, da teoria do conhecimento),
as observações por meio de aparelhos ocupam um nível
bem mais baixo na escala da confiabilidade do que aquelas que podem
ser alcançadas de modo imediato. (Assim, uma das mais difundidas
vertentes da Epistemologia chega mesmo a negar que entidades teóricas
não diretamente observáveis possuam "referentes",
ou seja, contrapartes reais.) A razão disso é simples:
quando se utiliza um aparelho para fazer certa observação,
o resultado da mesma pressuporá a validade das teorias envolvidas
na construção e no funcionamento do aparelho, introduzindo-se,
desse modo, mais elementos de incerteza.
Essas considerações epistemológicas explicam,
por sinal, a grande estabilidade do núcleo de princípios
fundamentais do Espiritismo, quando comparado aos das teorias
científicas, pois repousam em fenômenos extremamente
básicos do ponto de vista epistêmico, com o mesmo grau
de certeza, quanto, por exemplo, as proposições de que
temos agora uma folha de papel diante de nós, de que há
nela algo escrito, de que nos achamos sentados etc. Medeia vasta distância
conceitual entre proposições desse tipo e, por exemplo,
aquelas sobre a estrutura dos átomos, dos buracos negros, sobre
o mecanismo das mutações genéticas etc.
h) Referência
a conceitos e teorias científicas obsoletos. A Física
deste século introduziu, como já dissemos, alterações
radicais em suas teorias, e conseguintemente em nossa visão
do mundo. Conceitos que faziam parte da Física Clássica,
como os de espaço e tempo absolutos, partículas, campos
etc., foram ou totalmente abandonados, ou revistos profundamente,
por não mais servirem às novas teorias, não dando
conta dos fenômenos observados. Assim, é inacreditável
que haja pesquisadores das "ciências psi" tentando
elaborar "teorias" e "modelos" para o Espírito
baseados em noções de partículas e campos, e
ainda mais, com a pretensão de estarem seguindo a Ciência!
Vemos aqui uma vez mais a lucidez de Kardec e dos Espíritos
que o auxiliavam, ao não vincularem os princípios centrais
do Espiritismo a nenhuma dessas noções. Assentaram-no,
antes, em proposições básicas, "fenomenológicas",
como dizem os filósofos, exatamente por serem estáveis.
i) Desprezo pelo passado: cada pesquisador em geral
reinicia as investigações a partir do "nada",
como se outros já não tivessem efetuado constatações
dignas de confiança. Se a dúvida equilibrada representa
prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se
à presunção e ao orgulho, inviabiliza o conhecimento.
Se na Ciência se tivesse adotado semelhante atitude, não
se teria saído de sua pré-história.
j) Ignorância da relevância dos fatores
"morais" na produção de certos fenômenos.
Kardec não tardou reconhecer, em seus estudos, a influências
por vezes crucial de fatores ligados à harmonia de pensamento
dos médiuns, experimentadores e assistentes, aos objetivos
a que se propõem, à sua condição moral
etc. O assunto é abordado, entre outros lugares, no Capítulo
XXI de O Livro dos Médiuns, onde Kardec ressalta
a "enorme influência do meio sobre a natureza das manifestações
inteligentes" (parágrafo 233). Essa influência vem
sendo também ilustrada e enfatizada na boa literatura mediúnica,
que nos mostra em detalhe a complexidade do trabalho dos Espíritos
na produção dos fenômenos. Assim, apenas para
tomar um dos inúmeros exemplos, lembremos a descrição
que André Luiz dá em Missionários
da Luz (Cap. X) da profunda perturbação causada
nos trabalhos de materialização a que presenciava pelo
simples ingresso no recinto de um homem interiormente desequilibrado,
e, depois, pelos pensamentos descontrolados dos participantes da reunião.
Diante da surpresa, o Instrutor Alexandre elucida
(destacamos):
Nestes fenômenos,
André, os fatores morais constituem elementos decisivo de
organização. Não estamos diante de mecanismos
de menor esforço e, sim, ante manifestações
sagradas da vida, em que não se pode prescindir dos elementos
superiores e da sintonia vibratória.
Também Emmanuel expende considerações
desse mesmo teor no Capítulo XIII de seu já citado livro
Emmanuel (destacamos):
Não são poucos os
estudiosos que procuram investigar os domínios da ciência
psíquica, na sede de encontrar o lado verdadeiro da vida;
porém, se muitas vezes acham apenas o malogro das suas expectativas
, o soçobro dos seus ideais, é que se entregam a estudos
arriscados sem preparação prévia para resolver
tão altas questões, errando voluntariamente com espírito
de criticismo, muitas vezes injustificável, já que
não é filho do raciocínio acurado, profundo.
O êxito no estudo de problemas tão transcendentais
demanda a utilização de fatores morais, raramente
encontrados; daí a improdutividade de entusiasmos e desejos
que podem ser ardentes e sinceros.
5. O Espiritismo é religioso
[...] o Espiritismo é, assim,
uma religião ? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido
filosófico o Espiritismo é uma religião, e
disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços
da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em
uma simples convenção, mas sobre a mais sólida
das bases: as próprias leis da Natureza.
Por que então declaramos
que o Espiritismo não era uma religião ? Pela razão
de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias
diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião
é inseparável da noção de culto, e evoca
unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo não
guarda qualquer relação. Se se tivesse proclamado
uma religião, o público nele não veria senão
uma nova edição, ou uma variante, se quisermos, dos
princípios absolutos em matéria de fé, uma
casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias
e privilégios; não o distinguiria das idéias
de misticismo e dos enganos contra os quais se está freqüentemente
bem instruído.
Não
apresentando nenhuma das características de uma religião,
na acepção usual da palavra, o Espiritismo não
poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado
inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente
uma doutrina filosófica e moral.
Allan Kardec [nota
6]
Do mesmo modo
como tem havido falta de compreensão acerca do caráter
científico do Espiritismo e de suas relações
com as ciências, seu caráter religioso e suas relações
com as religiões também têm constituído
ponto de freqüentes confusões.
Assim como se pode mostrar
ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre
as ciências ordinárias, por estudar um domínio
diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio
Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora
não se confunda com as religiões ordinárias.
Se no estabelecimento da primeira
dessas teses tivemos que identificar corretamente que características
de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a
segunda, que estabelecer critérios adequados para a classificação
de uma doutrina no âmbito religioso.
Essa tarefa deve começar pela
análise etimológica da palavra religião. Ela
vem do Latim religione, derivado de religare, que naturalmente significa
"religar", estando, neste caso, subentendido que "religação"
é da criatura ao Criador.
Surge aqui a primeira diferença
entre o Espiritismo e as religiões ordinárias.
Estas usualmente entendem por Deus
um ser supremo, criador de tudo o que existe, porém com características
notoriamente antropomórficas.
Já o Espiritismo define-o como
"a inteligência suprema, causa primária de todas
as coisas"(O Livro dos Espíritos,
Questão n 1.), dando-lhe por atributos exclusivamente
a eternidade, a imutabilidade, a imaterialidade, a unicidade, a onipotência
e a soberana justiça e bondade (ibidem,
Questão 13), o que evidentemente exclui qualquer caráter
antropomórfico.
A segunda diferença fundamental
está na maneira pela qual o Espiritismo entende que a religação
entre a criatura e Deus pode e deve ser promovida.
Segundo as religiões ordinárias,
ela se dá através do ajuste da criatura a certas regras
morais (éticas) e/ou da satisfação de providências
formais e externas de vária ordem, dependendo da religião:
batismo, crisma, comunhão, confissão; participação
em cultos, rituais, cerimônias; realização de
determinados gestos; recitação de fórmulas e
rezas; adoração de imagens e objetos diversos; promessas,
penitências, jejuns; trazer em si as "marcas de Deus"
etc.
Já o Espiritismo propõe
que a religação da criatura ao Criador se faz exclusivamente
pela adaptação de sua conduta a determinados preceitos
morais, as medidas de ordem exterior sendo tidas não somente
como supérfluas, como também de todo desaconselhadas
e combatidas.
A terceira diferença reside
em quais são as regras morais em questão.
O Espiritismo toma-as como unicamente
aquelas propostas por Jesus, e que se resumem no preceito do amor
ao próximo.
Já as religiões ordinárias
podem, dependendo do caso, incluir ou não as normativas evangélicas,
ou incluí-las parcialmente, ou acrescentar-lhes outras, ou
alterar-lhes a interpretação original etc.
Por fim, crucial diferença
surge no modo pelo qual essas regras éticas são
justificadas.
As religiões ordinárias
"justificam" as normas morais que propõem recorrendo
à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição;
são dogmas, portanto artigos de fé a serem aceitos sem
exame.
Já o Espiritismo fundamenta
o corpo de seus preceitos éticos no conhecimento que cientificamente
alcança das conseqüências das ações
humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado
à cláusula teleológica de que todos almejam a
felicidade. Não há aqui lugar para dogmas e imposições,
mas exclusivamente investigação livre e racional dos
fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo
Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta
aos Coríntios (10:23) asseverou: "Todas as coisas
são lícitas, mas nem todas convêm; todas são
lícitas, porém nem todas edificam."
Em artigo anterior ("Os
fundamentos da ética espírita"; ver Referência
Bibliográficas.) expusemos com certa extensão esse processo
de fundamentação da moral espírita.
Dada a relevância do tema, recorreremos aqui a algumas citações
de Kardec, a fim de ilustrar o ponto e deixar clara sua posição.
Nos comentários às Questões
147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que tratam do
materialismo, Kardec refere-se à hipótese da aniquilação
do ser com a morte corporal:
Triste conseqüência,
se fora real, porque então o bem e o mal não teriam
objetivo, o homem estaria justificado em só pensar em si
e em colocar acima de tudo a satisfação de seus prazeres
materiais; os laços sociais se romperiam, e as mais santas
afeições se quebrariam irremediavelmente.
Passemos agora à Questão
222 do mesmo livro, onde encontramos:
Ora, pois: se credes num futuro
qualquer, certo não admitis que ele seja idêntico para
todos, porquanto, de outro modo, qual a utilidade do bem ? Por que
haveria o homem de constranger-se ? Por que deixaria de satisfazer
a todas as suas paixões, a todos os seus desejos, ainda que
à custa de outrem, uma vez que isso não lhe alteraria
a condição futura ?
No Item IV da Conclusão dessa
obra Kardec é ainda mais explícito (destacamos):
O progresso da Humanidade tem seu
princípio na aplicação da lei de justiça,
de amor e de caridade. Tal lei se funda na certeza do futuro; tirai-lhe
essa certeza e lhe tirareis a pedra fundamental. Dessa lei derivam
todas as outras, porque ela encerra todas as condições
da felicidade do homem.
No Item VIII Kardec reitera:
Razão, portanto, tivemos
para dizer que o Espiritismo, com os fatos, matou o materialismo.
Fosse este o único resultado por ele produzido e já
muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém,
faz mais: mostra os inevitáveis efeitos do mal e, conseguintemente,
a necessidade do bem.
O Capítulo I de A Gênese
está repleto de considerações sobre essa fundamentação
experimental-racional da ética espírita. Recomendamos
vivamente a leitura, pelo menos, dos Parágrafos 31, 32, 35,
37, 42, 56 e 62. Do Parágrafo 37 extraímos esta assertiva
(destacamos):
Tirai ao homem o espírito
livre e independente, sobrevivente à matéria, e fareis
dele uma simples máquina organizada, sem finalidade, nem
responsabilidade [...].
No Parágrafo 42 encontramos:
Demais, se se considerar o poder
moralizador do Espiritismo, pela finalidade que assina a todas as
ações da vida, por tornar tangíveis as conseqüências
do bem e do mal [...].
No Parágrafo 56 Kardec volta
ao assunto, desta vez analisando as relações entre a
moral evangélica e a espírita, que, conforme observamos,
coincidem quanto às normas morais (destacamos):
O que o ensino dos Espíritos
acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos
princípios que regem as relações entre os mortos
e os vivos, princípios que completam as noções
vagas que forneceu da alma, de sue passado e de sue futuro, e que
dão por sanção à doutrina cristã
as próprias leis da Natureza. Com o auxílio das novas
luzes que o Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem
compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e
a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por convicção
o que fazia unicamente por dever, e o faz melhor.
Encerrando essas notáveis
citações de Kardec, que aliás poderiam estender-se
ainda muito, adentrando, por exemplo, O Céu e o Inferno, obra
inteiramente dedicada ao estudo teórico e experimental das
conseqüências das ações humanas, voltamos
ao comentário às Questões 147 e 148 de
O Livro dos Espíritos, que fecha com chave de ouro
estas nossas reflexões:
[...] a missão
do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse
futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com
o dedo e o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio
somente, porém, pelos fatos. Graças às comunicações
espíritas, não se trata mais de uma simples suposição,
de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade,
que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem
de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que
nos aparece, pois que são os próprios seres de além-túmulo
que nos vêm descrever a situação em que se acham,
relatar o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a
todas as peripécias da nova vida que lá vivem e mostrando-nos,
por esse meio, a sorte inevitável que nos está reservada,
de acordo com os nossos méritos e deméritos. Haverá
nisso alguma coisa de anti-religioso? Muito ao contrário,
porquanto os incrédulos encontram aí a fé e
os tíbios a renovação do fervor e da confiança.
O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião.
Se ele aí está, é porque Deus o permite e o
permite para que as nossas vacilantes esperanças se revigorem
e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva
do futuro.