Em 1860, foi publicada a segunda
edição de O Livro dos Espíritos, “inteiramente
refundida e consideravelmente aumentada”, conforme anuncia
sua página de rosto. Contém, como se sabe, de 1019
itens, distribuídos em quatro partes, enquanto que a anterior,
de 1857, tinha apenas 501, em três partes.
Kardec escreveu uma nota, ou prefácio, explicando as razões
e critérios da nova edição. Incompreensivelmente,
esse prefácio não é atualmente reimpresso nas
edições brasileiras ou francesas, com a exceção
da edição de Le Livre des Esprits publicada em reprodução
fotomecânica pela Federação Espírita
Brasileira em 1998. Por seu valor histórico e elucidativo
da natureza da obra, reproduzimo-lo em seguida, traduzido para o
português:
NOTA
SOBRE ESTA NOVA EDIÇÃO
Anunciamos, na primeira edição desta obra, a publicação
futura de uma parte suplementar. Seria composta de todas as questões
que não encontraram lugar naquela edição, ou
que circunstâncias ulteriores e novos estudos tivessem originado.
Como, porém, são todas relativas a uma ou outra das
partes nela já tratadas, das quais são o desenvolvimento,
sua publicação isolada não teria feito nenhuma
seqüência. Preferimos, assim, esperar a reimpressão
do livro, para fundir tudo num mesmo conjunto. É o que agora
fazemos. Aproveitamos para conferir à distribuição
das matérias uma ordem bem mais metódica, ao mesmo
tempo que suprimimos tudo o que estava repetido. Esta reimpressão
pode, pois, ser considerada uma obra nova, embora os princípios
não tenham sofrido nenhuma alteração, com um
pequeno número de exceções, que são
antes complementos e esclarecimentos do que verdadeiras modificações.
A coerência dos princípios expostos, não obstante
a diversidade das fontes em que os buscamos, representa fato importante
para o estabelecimento da ciência espírita. Nossa correspondência
mostra que comunicações idênticas em todos os
pontos, ao menos quanto ao fundo, foram obtidas em diferentes localidades,
e isso mesmo antes da publicação de nosso livro. Ele
veio confirmá-las e dar-lhes corpo regular. A história,
por sua vez, prova que a maioria desses princípios foram
proferidos pelos mais eminentes homens dos tempos antigos e modernos,
trazendo-lhes, assim, a sua sanção.
O ensino relativo às manifestações dos Espíritos,
propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte
distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto
de um estudo especial. Havendo recebido desenvolvimentos bastante
expressivos em conseqüência da experiência adquirida,
acreditamos ser nosso dever fazer dele um volume separado, contendo
as respostas dadas a todas as questões concernentes às
manifestações e aos médiuns, além de
numerosos comentários sobre o Espiritismo prático.
Essa obra será a continuação ou complemento
do LIVRO DOS ESPÍRITOS. 1
(1) No prelo.
Daremos agora algumas informações
complementares, tecendo alguns comentários sobre
as afirmações de Kardec nesse prefácio, seguindo
a ordem em que são feitas.
1. O anúncio
de “uma parte suplementar”, a que Kardec se refere,
apareceu no final do Epílogo da 1a edição (p.
158). Esse epílogo contém apenas três parágrafos,
ocupando uma página. O primeiro, sobre as causas do ceticismo
quanto à doutrina espírita, foi aproveitado integralmente
na 2a edição, figurando no início da seção
17 da Introdução. O segundo, sobre a natureza da ciência
espírita e sobre o objetivo central do livro, teve igual
destino, formando o segundo parágrafo daquela seção,
porém com o acréscimo de algumas frases e a supressão
de outra.
O terceiro parágrafo é o seguinte:
O ensino dos espíritos prossegue, atualmente, acerca de diversas
partes cuja publicação adiaram, para que tenham tempo
de as elaborar e completar. A próxima publicação
que dará seqüência aos três livros [partes]
desta primeira obra conterá, entre outras coisas, os meios
práticos pelos quais o homem pode neutralizar o egoísmo,
fonte da maioria dos males que afligem a sociedade. Tal assunto
toca todas as questões referentes à sua posição
no mundo e ao seu porvir terrestre.
Vem, por fim, uma nota:
Nota. – Essa segunda parte será publicada
por encomenda, sendo remetida às pessoas que se houverem
inscrito para tal fim, por meio de solicitação escrita
(grátis, sem qualquer pagamento antecipado).
Antes de comentarmos o conteúdo desses textos, atentemos
num detalhe: a publicação sob encomenda da parte suplementar.
Isso não deve causar estranheza, se lembrarmos que a publicação
inicial do Livro dos Espíritos correu inteiramente por conta
de Kardec, ou seja, os custos de composição, impressão
e distribuição foram cobertos por seus limitados recursos
financeiros. Não havia, é claro, nenhuma certeza de
retorno, dado o caráter incomum da obra e os preconceitos
vigentes. Ao estabelecer o esquema de encomenda (ou “assinatura”
– souscription) para a publicação suplementar,
Kardec deve, com toda probabilidade, ter sido movido pela prudência,
evitando lançar-se num empreendimento incerto e talvez demasiadamente
pesado para a sua modesta posição. Com as encomendas,
poderia estimar com mais segurança a tiragem a ser feita,
evitando eventuais desperdícios.
Mas como vemos pela afirmação que abre o prefácio,
esse projeto não foi implementado, tendo sido substituído
por outro melhor. É, pois, incorreta a interpretação
de Canuto Abreu, expressa em nota ao pé das páginas
158 e 159 de sua edição bilíngüe da 1a
edição de O Livro dos Espíritos, de que o anunciado
suplemento seria o opúsculo Instrução Prática
sobre as Manifestações Espíritas (Instruction
Pratique sur les Manifestations Spirites, Paris, bureau da Revue
Spirite, Rue des Martyrs, 8; Dentu; Ledoyen; 152 pp.), que veio
a público em 1858. Além de não ser compatível
com o que diz Kardec, essa interpretação não
subsiste ao exame do conteúdo do opúsculo: ele não
se dirige à questão do controle do egoísmo,
nem de sua relação com as posições presente
e futura do homem. Trata, sim, como o próprio título
indica, da questão das manifestações espíritas.
Com a publicação de O Livro dos Médiuns, em
1861, Kardec deixou de imprimir o opúsculo, à época
já esgotado, considerando-o superado, quanto à abrangência
e organização, pela nova obra.
O que veio, então, a ser do material que teria formado o
suplemento? O próprio Kardec esclarece: ele foi incorporado
à nova edição do Livro dos Espíritos.
De fato, vemos que na 2a edição o assunto do egoísmo
recebeu atenção mais ampla e sistemática. Na
1a ele havia ocupado diversos itens no capítulo “Da
perfeição moral do homem”. Mas esse capítulo
integrava a parte “Das esperanças e consolações”
(que era a terceira e última parte do livro), e não
a parte “Das leis morais” (que era a segunda parte).
Na 2a edição o capítulo foi deslocado para
esta parte moral, onde se insere mais naturalmente. Além
desse rearranjo, o capítulo ganhou novos e importantes itens
específicos sobre o egoísmo, como os de número
917 a 919, com as expressivas contribuições de Fénélon,
Santo Agostinho e do próprio Kardec. Note-se, em particular,
que as frases do Epílogo que expressam a preocupação
de Kardec com os “meios práticos” de combate
ao egoísmo refletem-se de forma muito próxima nas
questões formuladas nesses itens.
Além disso, o estudo das condições presente
e futura do homem, a que também se refere Kardec no anúncio
do suplemento, foi claramente ampliado e tornado mais metódico.
Mesmo com a exclusão do capítulo sobre a perfeição
moral, a parte sobre as esperanças e consolações
foi bastante estendida, embora passando a consistir, na 2a edição
(onde é a quarta parte), de apenas dois capítulos,
“Penas e gozos terrestres” e “Penas e gozos futuros”,
que correspondem aos anteriores “Ventura e desventura na Terra”
e “Penas e recompensas futuras”.
2. O segundo ponto do prefácio, a incorporação
de novos estudos e a melhor distribuição das matérias,
fica bem exemplificada pelo que acabamos de apontar. Uma apreciação
completa da magnitude e êxito dessas alterações
só pode ser alcançada pela análise comparativa
detalhada das duas edições, o que não podemos,
evidentemente, fazer aqui. Queremos apenas salientar que ao entregar-se
a tão delicada e trabalhosa tarefa – qual a de praticamente
refazer o livro inteiro – Kardec deu-nos dois importantes
exemplos: o da humildade e o do zelo incessante pela qualidade de
tudo o que dava a público. A reflexão sobre esses
exemplos, e sobretudo a sua imitação, traria benefícios
evidentes ao estado atual da produção bibliográfica
espírita e do movimento espírita em geral.
3. Quanto à supressão de “tudo
o que estava repetido”, evidentemente não se refere
a qualquer descuido na redação do texto original.
Kardec tinha estilo conciso, e sempre esteve muito atento a esse
tipo de falha. Trata-se da eliminação da forma de
apresentação dupla, em diálogo, na coluna da
esquerda, e em texto corrido, na da direita. Na 1a edição
esse formato era adotado apenas na primeira parte da obra. Foi agora
abandonado, porque se estendido ao livro todo tornaria suas dimensões
impraticáveis.
4. O próximo item do prefácio que
merece destaque refere-se à constante atenção
de Kardec às investigações situadas fora de
sua esfera direta de ação. É bem conhecida
a extensão de sua correspondência, que em alguns anos
tornou-se humanamente impossível de manter-se em dia (ver
Allan Kardec, de Z. Wantuil e F. Thiesen, vol. III, p. 111).
É também notório o seu interesse pelas fontes
não espíritas, a começar pelas obras clássicas
de todas as áreas e épocas, e incluindo o acompanhamento
da imprensa leiga em diversos países. Essas fontes constituíram
para Kardec motivo de inumeráveis estudos, especialmente
na Revue Spirite (veja-se o artigo inicial da Revue, janeiro de
1858). Embora, como veremos em artigo futuro, a correspondência
referente ao Espiritismo não tenha desempenhado um papel
tão extenso quanto às vezes se supõe na produção
inicial de Kardec, ela gradualmente adquiriu maior importância.
Aqui Kardec chama a atenção para o fato singular de
que nessa correspondência podia-se isolar um núcleo
comum de idéias básicas, fato relevante para o estabelecimento
da ciência espírita. Nota, por fim, que eminentes pensadores
de todas as épocas e áreas do saber esposaram diversos
dos princípios dessa ciência, embora – podemos
acrescentar – de forma fragmentária e menos rigorosa
do que no Espiritismo (cf. itens 145, 581
e 623-628 de O Livro dos Espíritos). A história
dá, assim, uma espécie de sanção àqueles
princípios.
5. Por fim, o último parágrafo do
prefácio indica outra área em que as pesquisas evoluíam
com particular rapidez: as manifestações espíritas.
Poucos sabem hoje que a 1a edição continha, em sua
primeira parte, um capítulo intitulado justamente “Manifestações
dos espíritos”. Dada, porém, a extensão
do material que se acumulava sobre esse assunto, Kardec percebe
a necessidade de uma nova publicação, específica
para ele; não seria viável a ampliação
ulterior do Livro dos Espíritos. A obra que Kardec anuncia
estar no prelo é, pois, O Livro dos Médiuns, cuja
primeira edição é de 1861. Analisando o referido
capítulo, vemos que pode ser considerado o embrião
desse novo livro.
Referências:
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução
fotomecânica da 2a ed. francesa, com adendos do Autor. 1a.
ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1998.
––––. Le Livre des Esprits. Reprodução
fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe,
trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael,
1957.
––––. Revue Spirite. Reprodução
em imagem digitalizada a partir da coleção da Federação
Espírita do Paraná. Também disponível,
em texto eletrônico, no site do Centre d'Études Spirites
Léon Denis http://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/
––––. Instruction pratique sur les manifestations
spirites. Paris, La Diffusion Scientifique, 1986.
––––. Instrução Prática
sobre as Manifestações Espíritas. Trad. Cairbar
Schutel. In: Iniciação Espírita, 6a ed., São
Paulo, Edicel, 1977. Também: Matão, Casa Editora O
Clarim, 1987.
WANTUIL, Z. & THIESEN, F. Allan Kardec, 3 vols. 1a ed., Rio,
Federação Espírita Brasileira, 1979/80.