> Questões acerca da natureza do Espiritismo
- III
O presente artigo examina algumas questões ligadas ao aspecto
religioso do Espiritismo, que apesar de ter sido lucidamente abordado
por Kardec ainda é objeto de discussão em alguns setores
do movimento espírita. [1]
Questões:
a) Dentro dos conceitos atuais da
ciência e da filosofia, como poderíamos classificar
o Espiritismo? O que lhe parece a clássica apresentação
do Espiritismo como uma doutrina de conseqüências cientificas,
filosóficas e religiosas?
b) Considerando essa forma de apresentar a doutrina, segundo seus
aspectos básicos, qual seria a diferença entre dizer-se
“conseqüências religiosas” e “conseqüências
morais”?
c) No GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo) tem-se
discutido a aplicação da designação
de religião para o Espiritismo; aparentemente, não
há divergências quanto à sua classificação
como ciência e filosofia. Segundo a filosofia, o que caracteriza
uma religião? Quais os limites entre ciência, filosofia,
moral e religião? O Espiritismo é uma religião?
Respostas:
A perspectiva para a compreensão do Espiritismo apontada
no item (a) parece-me correta, desde que se mude um pouco a forma
de expressão. Dizer que ele é uma doutrina “de
conseqüências” científicas, filosóficas
e morais implica considerá-lo como uma quarta coisa, da qual
decorreriam essas conseqüências. Na verdade, poderíamos
afirmar que ele constitui uma ciência associada a uma filosofia
e a um sistema moral, ou, mudando a ênfase, uma filosofia
com bases científicas e implicações morais.
Quanto aos itens (b) e (c), cumpre
lembrar inicialmente que a moral (ou ética) é uma
das áreas da filosofia, investigada com atenção
por filósofos de todas as épocas, desde a Grécia
Antiga até nossos dias. De modo muito simplificado, poderíamos
defini-la como o estudo do bem e do mal. Seu problema fundamental
é o estabelecimento de critérios pelos quais se possam
distinguir as ações em boas e más, certas e
erradas, ou, sob outro ângulo, avaliar criticamente os critérios
propostos para tal fim pelas diferentes religiões, ideologias,
sistemas políticos, etc.
Nunca houve uma sociedade humana
civilizada totalmente destituída de códigos morais
que estabelecessem limites para as ações dos indivíduos.
Nos primórdios da civilização tais códigos
usualmente baseavam-se nas concepções religiosas vigentes,
a seu turno amplamente dependentes do ensino de indivíduos
considerados especiais, tais como profetas, pitonisas, gurus, etc.
Tais pessoas muitas vezes alegavam dispor de meios incomuns, sobrenaturais,
de comunicação com a própria Divindade ou divindades;
suas doutrinas eram, pois, tidas como “revelações”.
Especialmente a partir do Renascimento
(séculos XV e XVI), a autoridade moral das religiões
estabelecidas em tais bases começou a ser mais e mais questionada.
O movimento intelectual de valorização das faculdades
cognitivas naturais – a razão e a observação
– encontrou terreno preparado pelas fragilidades teóricas
do revelacionismo religioso que, ademais, havia tantas vezes conivido,
legitimado ou participado diretamente de ações em
franco desacordo com um certo sentido ético natural do ser
humano (discriminações, perseguições,
torturas, assassinatos, etc.).
Sob a influência vigorosa
de grandes filósofos do período moderno, entre os
quais cumpre destacar o inglês John Locke
(1632-1704), as legislações civis dos povos mais esclarecidos
foram se dissociando dos sistemas religiosos, quaisquer que fossem.
Pontos altos desse processo foram, por exemplo, as revoluções
inglesa (1688) e francesa (1789), e a assinatura da Constituição
Americana (1789). Em todos esses episódios, os códigos
de direitos e deveres dos cidadãos resultaram de deliberações
e acordos tácitos ou explícitos de grupos laicos.
Os filósofos acadêmicos modernos desenvolveram seus
estudos éticos sob perspectivas diversas e nem sempre compatíveis
umas com as outras, mas que em geral excluem consciente e explicitamente
quaisquer fundamentos religiosos, teológicos ou místicos.
A moral sempre constituiu parte
integrante das religiões. No entanto, estas não se
resumem à proposição e defesa de sistemas morais,
incluindo, de modo típico, cultos, liturgias e rituais diversos,
hierarquias, princípios teológicos abstratos sem relação
direta com a questão da conduta humana, etc. Foi essa bagagem-extra,
aliás, o que mais repulsa causou aos chamados “livres-pensadores”,
responsáveis pela renovação da filosofia e
da ciência a partir do Renascimento, tendo conduzido, por
um processo compreensível de exacerbação, ao
ateísmo e ao materialismo, em graus sem precedentes na história
da humanidade.
Perdidas as bases religiosas tradicionais,
a ética teve dificuldades para estabelecer princípios
de conduta objetivos. Nasceu daí uma vertente bastante visível
na sociedade hodierna, que é o chamado relativismo ético,
segundo o qual o que é certo ou errado, bom ou ruim, depende
da pessoa, do grupo social, da época, etc. De forma oportunista,
intelectuais (ou pseudo-intelectuais) têm explorado esse canal
para tentar legitimar os mais aberrantes comportamentos individuais
ou grupais, contribuindo assim decisivamente para a degeneração
das estruturas psicológicas e sociais.
No campo da filosofia acadêmica,
existem propostas éticas não-religiosas que procuram
refutar o relativismo, dividindo-se em duas grandes classes: os
sistemas éticos racionalistas, ou aprioristas, como o de
Immanuel Kant (1724-1804), e o utilitarismo, que
encontra raízes em Locke, mas só foi desenvolvido
mais explicitamente por Jeremy Bentham (1748-1832)
e John Stuart Mill (1806-1873). Pode-se afirmar
com razoável segurança que o efeito prático
dos sistemas éticos do primeiro tipo sobre as sociedades
contemporâneas é quase nulo, por razões que
não vem ao caso examinar aqui. Quanto à segunda proposta,
embora a palavra ‘utilitarismo’ tenha impropriamente
adquirido uma conotação negativa fora dos círculos
filosóficos, é inegável que repercutiu de forma
profunda no estabelecimento dos melhores sistemas sociais existentes,
quer do ponto de vista material, quer dos direitos humanos e do
fomento às artes, ciências e filosofia. Mesmo nessas
sociedades, porém, assiste-se hoje a crescente desvalorização
das avaliações a longo prazo das ações
humanas e ao esquecimento dos princípios filosóficos
seguros que nortearam os seus fundadores, abrindo amplo espaço
para o referido relativismo moral.
Quando devidamente compreendido,
o Espiritismo traz contribuições importantes para
todo esse panorama da ética, tão imperfeitamente esboçado
aqui. Refinando e estendendo o conhecimento acerca do ser humano,
ele permite a elaboração de uma ética objetiva
e clara, explorando, com adaptações, a vertente de
Bentham e Mill. Tratei desse assunto nos artigos “Os fundamentos
da ética espírita” e “A excelência
metodológica do Espiritismo” (seção 5),
que devem ser consultados para o desenvolvimento ulterior desta
resposta.
Em diversas de suas obras, Kardec
deu grande importância ao estabelecimento da moral espírita,
abordando o assunto em profundidade. Mostrou que com o conhecimento
científico espírita a moral deixa de ser uma questão
de especulações abstratas ou de opiniões, estando
indissociavelmente ligada ao estudo das conseqüências
das ações humanas, em conexão com a busca da
felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos. Ressaltou
ainda que o corpo de princípios morais obtidos por essa via
da razão e da experiência coincide com aquele proposto
por Jesus. Conforme registrou no parágrafo 56 do primeiro
capítulo de A Gênese, o Espiritismo
“[dá] por sanção à doutrina cristã
as próprias leis da Natureza”.
Ora, na medida em que fornece ao
homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo
consigo mesmo e com os demais seres, o Espiritismo torna-se “o
mais potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec
nos lúcidos comentários adidos às questões
147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião
aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas
religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis
e práticas exteriores, sendo antes uma religião no
sentido próprio do termo, a re-ligação da criatura
ao Criador.
A velha questão de se o Espiritismo
é ou não uma religião não admite, pois,
resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo
‘religião’. Esse ponto foi lucidamente estudado
e, a meu ver, esgotado, no artigo de Kardec intitulado justamente
“Le Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu
na Revue Spirite de 1868. Para encerrar, vejamos estes
parágrafos do famoso texto:
[...] o Espiritismo é,
assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores:
No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião,
e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os
laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos
não em uma simples convenção, mas sobre a
mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.
Por que então declaramos
que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão
de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias
diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião
é inseparável da noção de culto, evocando
unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo
não guarda qualquer relação. Se se tivesse
proclamado uma religião, o público nele não
veria senão uma nova edição, ou uma variante,
se quisermos, dos princípios absolutos em matéria
de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias,
cerimônias e privilégios; não o distinguiria
das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais
se está freqüentemente bem instruído.
Não apresentando nenhuma
das características de uma religião, na acepção
usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria
ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente
haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma
doutrina filosófica e moral.