1. Introdução
{nota 1}
No capítulo "Da lei de liberdade" de O Livro dos
Espíritos Allan Kardec analisou com lucidez diversas questões
relativas à fatalidade, dedicando-lhes uma seção
inteira. Neste artigo pretendemos expor brevemente a concepção
espírita de fatalidade, estabelecida naquela seção
e em obras complementares.
Ao iniciar qualquer estudo, é sempre conveniente ter clareza
quanto ao significado preciso dos termos envolvidos. Consultando
o dicionário, verificamos que fatalidade é a marca
do que é fatal, a força que predispõe irrevogavelmente
os acontecimentos, o destino. Fatal é aquilo que é
certo, prescrito pelo destino, irrevogável, que necessariamente
acontecerá, inevitável, decisivo, inadiável,
funesto, nefasto.
As duas últimas acepções do adjetivo fatal
indicam algo de caráter negativo. Na concepção
vulgar, esse aspecto mistura-se às primeiras acepções,
resultando daí a idéia de que a fatalidade é
a ocorrência inevitável de alguma coisa ruim. Essa
associação da predeterminação com algo
trágico, nefasto, porém, não é necessária.
Em um sentido geral, a noção de fatalidade é
neutra quanto à natureza boa ou má dos acontecimentos.
Ao inspecionarmos a seção sobre a fatalidade de O
Livro dos Espíritos verificamos facilmente que é esta
noção geral, neutra, que está sendo ali estudada;
é, portanto, a que nos interessará neste trabalho
também.
Como o próprio termo indica, dizer que um fato está
predeterminado é afirmar que sua ocorrência é
determinada de maneira certa pelo estado de coisas que a antecede.
A noção de predeterminação pressupõe
a existência de uma como que "amarração"
entre os acontecimentos: uns levariam a outros infalivelmente.
Quando consideramos os acontecimentos do mundo de um modo geral,
são concebíveis três possibilidades: 1) todos
estariam predeterminados (determinismo); 2) nenhum estaria predeterminado
(aleatoriedade); e, 3) apenas alguns estariam predeterminados. Conforme
veremos, é esta última posição, intermediária
entre os dois extremos, que é aceita pela ciência contemporânea
e pelo Espiritismo.
Ao formular a pergunta 851 de O Livro dos Espíritos, que
abre a seção sobre a fatalidade, Kardec esclarece
que entende a fatalidade como a predeterminação completa
dos acontecimentos. Ao longo da seção, são
expostos os motivos pelos quais não pode existir a fatalidade
nesse sentido extremo, de uma predeterminação de tudo
quanto ocorre. São também indicadas as circunstâncias
especiais em que pode haver um certo tipo de predeterminação
dos acontecimentos. A compreensão satisfatória desses
pontos requer a análise de vários conceitos filosóficos,
como o de determinismo, o de livre-arbítrio, o de causalidade
etc. É o que procuraremos fazer a seguir, de forma bastante
simplificada.
2. Determinismo e livre-arbítrio
A tese filosófica do determinismo, discutida há milênios
pelos filósofos, sustenta que tudo o que acontece está
predeterminado, podendo em princípio ser previsto por quem
possua conhecimento completo do mundo em um dado instante. O Universo
seria comparável a uma imensa máquina em funcionamento
automático e infalível.
No exame das questões relativas ao determinismo é
de suma importância, quer do ponto de vista filosófico,
quer espírita, distinguir os acontecimentos do âmbito
exclusivo da matéria daqueles que envolvem seres de natureza
espiritual.
Muitos filósofos e cientistas de épocas passadas sustentaram
que a matéria comporta-se de forma completamente determinista.
Com a criação da ciência moderna, nos séculos
XVI e XVII, essa posição ganhou força, visto
que as novas teorias mecânicas, que culminaram na monumental
síntese newtoniana, incorporam o determinismo em suas equações
fundamentais.
Com o ulterior desenvolvimento da ciência a crença
no determinismo enraizou-se. No final do século XIX e início
do século atual, a formulação do eletromagnetismo,
da mecânica estatística e das teorias da relatividade
dentro desse mesmo referencial conceitual foi freqüentemente
interpretada como sua consolidação definitiva.
No entanto, essa visão de mundo suscitou dificuldades filosóficas
de grande monta, quanto à sua compatibilização
com o livre-arbítrio humano. Com efeito, a experiência
psicológica da liberdade de nossos pensamentos e ações
é algo indubitável. Mas essa experiência parece
conflitar com o determinismo da matéria, qualquer que seja
a concepção acerca da natureza humana. É interessante
notar que, com seu senso filosófico apurado, Allan Kardec
abre a referida seção sobre a fatalidade precisamente
com uma questão sobre o conflito entre fatalidade plena e
livre-arbítrio.
Na perspectiva materialista, tudo no homem seria matéria.
Ele estaria, pois, sujeito ao mesmo determinismo que existe no movimento
dos astros, na queda de uma pedra, no movimento de um relógio.
Como conciliar isso com o fato de sentirmos, com toda a clareza
de que é capaz o nosso entendimento, que levantamos ou abaixamos
o braço, andamos para a esquerda ou a direita, dizemos isso
ou aquilo, com inteira liberdade?
Dificuldade semelhante surge na visão dualista, segundo a
qual o homem é um espírito ligado a um corpo. Se o
corpo, que é matéria, tiver seus mínimos movimentos
predeterminados, como poderá o espírito atuar livremente
sobre ele, fazendo-o executar essa ou aquela ação?
Os esforços dos filófosos para solucionar o problema
não alcançaram qualquer êxito. Felizmente, porém,
ele tornou-se amplamente irrelevante com o advento da mecânica
quântica, na década de 1920. Essa teoria descreve a
estrutura íntima da matéria, e representa a mais abrangente,
precisa e bem sucedida teoria científica de todos os tempos.
Pois bem: ao contrário das demais teorias físicas,
a mecânica quântica não prevê um comportamento
totalmente determinista para a matéria. Além disso,
sofisticados estudos teóricos e experimentais recentes indicaram
que qualquer tentativa de reinstalar teorias deterministas na microfísica
encontrará necessariamente dificuldades proibitivas.
Tais avanços da ciência parecem haver renovado o referencial
conceitual no qual o problema do livre-arbítrio humano deve
ser analisado. As perspectivas de se conceber o ser humano como
um espírito livre que atua sobre um corpo material desbloquearam-se.
Deve-se todavia notar que ainda quase nada foi feito nesse sentido
nos círculos acadêmicos. {nota
2}
O Espiritismo, porém, há muito tempo estabeleceu essa
concepção, por meio de suas investigações
científicas dos fenômenos espíritas. Confirmou
a visão dualista que situa o pensamento, a vontade e o sentimento
do homem num espírito independente da matéria. Mostrou
também que esse espírito antecede e sobrevive ao corpo.
De acordo com os últimos avanços da ciência,
o comando do corpo pelo espírito é perfeitamente compatível
com as leis que regulam o comportamento da matéria, já
que estas contemplam a existência de processos indeterministas
no nível dos constituintes fundamentais dos corpos, como
prótons, nêutrons, elétrons etc.
3. Fatalidade e relação de
causa e efeito
Estudemos um pouco mais a questão da predeterminação
dos acontecimentos do domínio exclusivo da matéria.
Segundo a ciência contemporânea, muitos desses acontecimentos
de fato são predeterminados. Os movimentos dos orbes celestes,
a queda de uma maçã, a propagação de
uma onda de rádio constituem exemplos típicos. Especificada
a altura da qual a maçã cai, sua forma, a viscosidade
do ar, a força gravitacional que sobre ela exerce a Terra
etc., as leis da mecânica permitem em princípio o cálculo
do tempo de queda e a velocidade que terá ao atingir o solo,
entre outras coisas.
Se quisermos, podemos caracterizar esses eventos previstos como
efeitos, e a força gravitacional e as condições
iniciais da maçã como causas. Dadas as causas, seguem-se
os efeitos de modo certo. Isso faz ver que a fatalidade parcial
que existe no mundo material está ligada à existência
de certas relações causais.
Conforme apontamos na seção anterior, a física
contemporânea reconhece que, mesmo no âmbito puramente
material, há processos indeterministas, que não seguem
esse padrão de previsibilidade estrita. Nesses casos, as
noções de causa e efeito continuam aplicáveis,
embora em sentido ampliado: as causas não determinam os efeitos
individualmente, mas apenas as probabilidades de sua ocorrência.
Ao considerarmos os eventos em que participam seres humanos, fatores
novos intervêm, devido à presença do elemento
espiritual dotado de livre-arbítrio. Esses eventos em geral
também não são passíveis de uma descrição
determinista.
Todavia, enquanto encarnados estamos em associação
estreita com a matéria, sendo possível que o encadeamento
estrito de alguns eventos materiais nos afete de modo direto ou
indireto. Por exemplo, vários processos físicos, químicos
e biológicos do corpo humano são, em boa aproximação,
deterministas. A passagem de uma corrente elétrica intensa
através do corpo provoca choques; a ingestão de determinada
porção de uma substância venenosa causa a morte;
doses apropriadas de radiação gama destroem tumores,
enquanto que doses muito elevadas os ocasionam; a transpiração
resfria a pele; e assim por diante.
Desse modo, na medida em que participamos do mundo material há
certos acontecimentos que se podem dizer predeterminados em nossas
vidas. O que os predetermina, porém, são leis físicas,
químicas, biológicas, na presença de certas
causas.
É indispensável observar que muitas dessas causas
decorrem, a seu turno, de ações que livremente praticamos.
No caso da ingestão do veneno, por exemplo, pode-se dizer
que a pessoa fatalmente morrerá. A predeterminação
da morte, todavia, é condicionada à prévia
ingestão da substância tóxica, o que em geral
depende da livre decisão de alguém. A morte não
está predeterminada em termos absolutos: se o veneno não
for ingerido, ou se for administrado um antídoto eficaz,
ela não advirá.
Tudo isso é do escopo das ciências acadêmicas.
O Espiritismo complementa-as de forma substancial, fornecendo o
conhecimento de inúmeros e importantes outros vínculos
causais entre os acontecimentos. Por sua própria concepção,
tais ciências restringem sua análise ao aspecto material
do ser humano. Não podem, assim, acompanhar os efeitos das
ações humanas além da morte corporal, nem identificar
causas e efeitos de natureza espiritual, presentes, por exemplo,
em fenômenos mediúnicos, obsessivos e anímicos.
Foi a ciência espírita que, pioneiramente, adentrou
esse estudo utilizando-se de metodologia racional-experimental.
{nota 3}
É nesse sentido que muitos autores espíritas costumam
referir-se à chamada lei de causa e efeito, ou de ação
e reação, que regula as ocorrências da vida,
em um sentido amplo, englobando os eventos referentes ao ser espiritual.
A lei de causalidade restrita ao domínio da matéria,
que as ciências ordinárias estudam, pode ser entendida
como caso especial dessa lei mais ampla.
4. Livre-arbítrio e relação
de causa e efeito
Cada evento tem uma causa, em geral bastante complexa, envolvendo
múltiplos eventos anteriores, próximos ou remotos
no espaço e no tempo. Todos esses fatores têm de estar
presentes para que o acontecimento se verifique. Voltando ao exemplo
da maçã, para ela cair em tantos segundos e com tal
velocidade uma série de condições têm
de ser satisfeitas: força de atração, desprendimento
da macieira, ar com uma certa viscosidade etc. É o conjunto
dessas condições que, mais apropriadamente, se deve
entender como a causa da queda, embora nas situações
ordinárias se fixe a atenção em apenas algumas
delas, por conveniência ou dificuldade de conhecê-las
todas. A pergunta "Por que a maçã caiu desse
modo?" pede a especificação de uma causa. Dependendo
do interesse, a resposta enfocará um determinado componente
da causa total: um dirá que foi porque a Terra a atraiu;
outro, que foi porque se soltou do galho; outro ainda porque ventou
forte, todos podendo estar certos.
Os acontecimentos de que diretamente participamos são passíveis
de análise semelhante, ou seja, podemos investigar suas causas
gerais ou particulares. Meu dedo se queimou porque o encostei numa
uma panela quente; meu ritmo cardíaco aumentou agora porque
acabo de correr; fiquei sonolento esta tarde porque me alimentei
excessivamente no almoço. Nessas respostas, apenas os fatores
mais salientes das causas foram apontados. As causas são,
nesses casos, mais ou menos próximas no tempo, e dependem
de escolhas que livremente fizemos: pegar a panela sem luvas, correr
ao invés de andar, comer demais.
O Espiritismo mostra-nos que se as causas dos acontecimentos
mais importantes de nossas vidas, felizes ou dolorosos, não
puderem ser localizadas na vida presente, certamente existirão
em passado anterior ao nosso renascimento. Os efeitos de
nossos atos, conformes ou contrários à lei que vela
pela harmonia do Universo, podem ser imediatos ou ocorrer em futuro
mais ou menos distante. É isso, incidentalmente, que possibilita
entender muitas das disparidades nas condições físicas,
sociais etc., dos seres humanos dentro do quadro da justiça
divina. Cada pessoa encontra-se num contexto parcialmente determinado
pelo conjunto de suas ações desta vida, das vidas
anteriores e dos períodos na erraticidade, sempre levadas
em conta suas necessidades expiatórias, provacionais e de
aprendizado de um modo geral.
A possibilidade de interferirmos no curso dos acontecimentos, agravando
ou atenuando os efeitos ruins, promovendo ou embaraçando
os efeitos bons, encontra-se claramente expressa na questão
860 de O Livro dos Espíritos, que agora transcrevemos em
parte: {nota 4}
Pode
o homem, pela sua vontade e por seus atos, fazer que se não
dêem acontecimentos que deveriam verificar-se e reciprocamente?
"Pode-o, se essa aparente mudança na ordem dos acontecimentos
tiver cabimento na seqüência da vida que ele escolheu.
[...]"
Todas
as nossas ações, por insignificantes que sejam, fazem-se
acompanhar de certos efeitos, que se vão superpondo uns aos
outros. Em cada momento, vivemos em meio a esse conjunto de efeitos.
A importância prática de adquirirmos conhecimento acerca
das leis que regem a matéria e o espírito reside em
que, sabendo melhor quais serão os efeitos daquilo que fizermos,
poderemos agir de modo a criar situações que nos aproximem
da felicidade. Somos, por assim dizer, os construtores de nossos
próprios destinos.
5. Programação da existência
corporal
Boa parte das questões que formam a seção sobre
a fatalidade de O Livro dos Espíritos referem-se direta ou
indiretamente à questão da programação
da existência corporal. Essa programação enquadra-se
no princípio geral que estamos analisando. Na medida em que
o ser amadurece espiritualmente, tornando-se mais consciente, poderá
avaliar por si próprio as principais ações
praticadas e, no estado de erraticidade, planificar certos aspectos
de sua futura encarnação, freqüentemente auxiliado
por Espíritos amigos. Assim é que, por exemplo, seu
corpo, seu meio social, os componentes de seu grupo familiar poderão,
em certa medida, ser objeto de escolha, com vistas às suas
necessidades evolutivas.
Levando porém em conta que entre a época da programação
e a da ocorrência programada os seres envolvidos continuarão
agindo, criando novos efeitos que se juntarão aos anteriores,
o fato poderá ser parcialmente alterado. Conforme assinala
Allan Kardec no item 872, os detalhes dos acontecimentos dependem
de circunstâncias que o próprio homem encarnado cria
pelos seus atos.
Na resposta à questão 861 encontramos uma importante
distinção, quanto à fatalidade, entre os acontecimentos
materiais e os de ordem moral (espiritual):
"Demais,
sempre confundis duas coisas muito distintas: os sucessos materiais
da vida e os atos da vida moral. Se há, às vezes,
fatalidade, é nos acontecimentos materiais cuja causa reside
fora de vós e que independem da vossa vontade. Quanto aos
atos da vida moral, esses emanam sempre do próprio homem
que, por conseguinte, tem sempre a liberdade de escolher. No tocante,
pois, a esses atos, nunca há fatalidade."
Podemos
entender melhor esse ponto se considerarmos o fato, anteriormente
apontado, de que somente a matéria, por ser inanimada e passiva,
pode estar sujeita a um preordenamento preciso. Já os nossos
atos, estes subordinam-se em cada instante à nossa vontade
livre. Assim, um corpo malformado ou perfeito, uma doença
grave ou sua cura, uma queda mortal, poderão ser fatais,
no sentido mais estrito do termo. Mas um assassinato, uma difamação,
uma reconciliação, uma doação caritativa
nunca serão fatais. Note-se que isso vale para todas as partes
envolvidas, mesmo as que ocupam a posição de vítimas.
Ninguém pode renascer para ser alvo de difamação
ou assassinato, porque isso exigiria que alguém renascesse
para difamar ou assassinar, o que é claramente absurdo.
É por isso que a resposta da questão 851 adverte que
a fatalidade só pode existir com relação
às provas físicas (como certas doenças e acidentes
que se não conseguem evitar), nunca porém com relação
às provas morais (como as traições,
os desgostos com o comportamento de entes queridos, as humilhações).
6. Previsão do futuro
O problema controverso da previsão do futuro também
se elucida quando se compreendem corretamente as leis que correlacionam
os eventos de nossas vidas. O futuro será, em princípio,
previsível somente na medida em que se tenha acesso completo
e seguro às causas dos eventos, e as leis que os correlacionem
forem de tipo determinista. Dissemos em princípio porque,
mesmo conhecendo completamente as causas e sendo as leis deterministas,
faz-se ainda mister efetuar as deduções dos efeitos,
o que em geral está fora de nossa capacidade prática.
Ora, no que toca aos acontecimentos não-triviais das vidas
dos homens, ordinariamente nenhuma dessas três condições
é satisfeita. Não conhecemos a totalidade das causas;
não há encadeamento determinista dos eventos (devido
à presença do livre-arbítrio); e, mesmo que
houvesse, não seríamos efetivamente capazes de deduzir
os efeitos das causas, dada a complexidade extrema das situações
típicas.
Disso se conclui que, a não ser em condições
muito especiais e limitadas, dentro do domínio exclusivamente
material, o futuro é indeterminado e imprevisível.
(Para maiores detalhes sobre esse assunto, consulte-se Chagas 1996.)
7. Aspectos morais
Com o esclarecimento racional fornecido pelo Espiritismo, as questões
da fatalidade e do destino perdem o caráter místico
com que freqüentemente são revestidas. Nada do que nos
sucede é questão de sorte ou azar. Vemos que são
quiméricas as idéias de que ocorrências de nossas
vidas são influenciadas pelos astros, pelos nomes, pelos
números e outros fatores externos semelhantes, que não
encontram lugar na lei de causa e efeito e na justiça divina.
O mal que nos acontece, acontece na hora certa, na medida certa,
porém como conseqüência de ações
más livremente praticadas, nesta vida ou em vidas anteriores.
Igualmente, as situações felizes que vivemos não
são obra de puro acaso, mas foram preparadas por nós
mesmos quando agimos de acordo com as recomendações
evangélicas, ou seja, quando fazemos o bem.
Não há um destino transcendente, que nos arraste em
seu turbilhão, independentemente do que sejamos ou façamos.
{nota 5}
O destino que existe é aquele que nós mesmos construímos,
e que podemos ir modificando a cada momento, no quadro das leis
naturais que regem o mundo. Esse ponto é expresso de forma
muito feliz por Emmanuel no capítulo "Fatalidade e livre-arbítrio"
do livro Nascer e Renascer, do qual destacamos os seguintes trechos:
É por isso que fatalidade e livre-arbítrio coexistem
nos mínimos ângulos de nossa jornada planetária.
Geramos causas de dor ou alegria, de saúde ou enfermidade
em vários momentos de nossa vida.
O mapa de regeneração volta conosco ao mundo,
consoante as responsabilidades por nós mesmos assumidas no
pretérito remoto e próximo; contudo o modo pelo qual
nos desvencilhamos dos efeitos de nossas próprias obras facilita
ou dificulta a nossa marcha redentora na estrada que o mundo oferece.
Importa notar ainda que as leis naturais, ou divinas, têm
por objetivo último o bem da criatura. É fácil
perceber, por exemplo, que as dores físicas conseqüentes
a algumas de nossas ações visam à preservação
de nosso corpo. Assim, se não sentíssemos dor ao tocar
um objeto quente, não o soltaríamos imediatamente,
resultando daí lesões graves em nossa mão.
De igual modo, as dores morais, e mesmo certas dores físicas
sem causa imediata, objetivam à nossa educação
espiritual. Ajudam-nos a ver que, com nossas ações,
interferimos indebitamente na harmonia do Universo, violando as
leis de amor que nos devem guiar o comportamento frente aos homens
e demais seres da criação.
Consideremos um exemplo: uma pessoa resolve embriagar-se e, nesse
estado, põe-se a dirigir um veículo. Em seu percurso,
atropela um pedestre, ferindo-o gravemente. O motorista contrai,
nesse instante, um débito para com a lei divina, que lhe
será causa de sofrimentos futuros. Cedo ou tarde enfrentará
as conseqüências dolorosas de seu ato, tendo ainda que
reparar o mal causado ao seu próximo. Mas como Deus não
é apenas a suprema justiça, mas também a suprema
bondade, o devedor não precisará pagar sua dívida
com a mesma "moeda"; poderá, por vontade própria,
resolver saldá-la com amor. Eis porque o apóstolo
afirmou: "O amor cobre a multidão de pecados" (I
Pedro 4: 8), contrapondo-se ao ditado
de que "quem com ferro fere, com ferro será ferido".
Para o pedestre, a ocorrência possivelmente representará
o efeito de uma dívida anteriormente contraída, de
um erro cometido no passado próximo ou distante. Terá
sido uma forma bastante dura de aprender e resgatar, determinada
pelas necessidades do seu caso particular. Em outros casos, o aprendizado
e a expiação de erros semelhantes podem ser alcançados
por processos mais brandos, menos dolorosos.
A lei pode ser flexibilizada, porque seu objetivo é sempre
educar, nunca punir. Se a criatura já aprendeu a lição,
reparou seu erro e está exercendo o amor, não mais
precisa continuar sofrendo. Sobre esse ponto, é oportuna
a leitura da seção "Código penal da vida
futura", do capítulo 7 da primeira parte de O Céu
e o Inferno, de Allan Kardec.
Vejamos estes trechos:
16º. O arrependimento é o primeiro
passo para a melhora; mas só isso não basta, sendo
ainda precisas a expiação e a reparação.
Arrependimento, expiação e reparação
são as três condições necessárias
para apagar os traços de uma falta e suas conseqüências.
O arrependimento suaviza as dores da expiação, ao
dar esperança e preparar os caminhos da reabilitação.
Contudo, somente a reparação pode anular o efeito,
destruindo a causa; o perdão seria uma graça, e não
uma anulação.
17º. O arrependimento pode ocorrer em qualquer parte
e em qualquer momento; se tardar, o culpado sofrerá por mais
tempo.
A expiação consiste nos sofrimentos físicos
e morais, que são a conseqüência da falta cometida,
verificando-se quer já na vida presente, quer após
a morte, na vida espiritual, ou ainda numa nova existência
corporal, até que os traços da falta sejam apagados.
A reparação consiste em fazer o bem a quem se haja
feito o mal. [...]
A possibilidade do abrandamento das conseqüências dolorosas
de nossas ações pelos esforços que façamos
nesse sentido é ilustrada em conhecido episódio narrado
por Hilário Silva no livro A Vida Escreve (cap.
20, "O merecimento"):
Saturnino Pereira sofre um acidente na fábrica onde trabalha,
vindo a perder o polegar direito. Seus colegas e amigos comentam
a injustiça da ocorrência, dada a grande dedicação
de Saturnino ao bem de todos. Comparecendo à reunião
mediúnica em que colabora regularmente, um benfeitor espiritual
espontaneamente lhe esclarece que, em existência anterior,
foi poderoso sitiante que, num momento de crueldade, puniu barbaramente
um pobre escravo, moendo-lhe o braço direito no engenho.
Com o despertar de sua consciência, atrozes remorsos torturaram-no
no além-túmulo. Deliberou então impor-se rigoroso
aprendizado, programando um acidente para a futura encarnação,
no qual perderia o braço. No entanto, sua renovação
para o bem, testemunhada por suas ações, possibilitou
que o acidente apenas lhe ocasionasse a perda de um dedo.
Notas
1. Algumas idéias deste texto foram
motivadas por palestra proferida por José Carlos Angelo Cintra
no âmbito da II Semana Espírita da Unicamp, promovida pelo
Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp, em outubro de 1995.
2. Algumas propostas têm-se difundido nos círculos leigos,
misturando referências esparsas à física contemporânea
com idéias religiosas, místicas etc. No entanto, uma análise
autorizada e isenta revela que são prematuras e pouco rigorosas.
O que estamos afirmando no texto não deve ser entendido como
uma aprovação, ou mesmo um incentivo a trabalhos dessa
natureza. Estamos apenas salientando que a visão da matéria
fornecida pela ciência de hoje não representa mais um obstáculo
à concepção espírita do homem como um ser
dotado de livre-arbítrio. Sobre esse ponto, ver os artigos Xavier
Jr. 1995, Chagas 1995 e Chibeni 1984.
3. Sobre a ciência espírita e suas relações
com a ciência acadêmica, consultem-se Borges de Souza 1986,
Chagas 1984, 1987 e 1994, Chibeni 1988, 1991 e 1994, bem como os trabalhos
citados na nota 2. [volta]
4. Nesta e demais citações de obras de Allan Kardec, utilizamos
os textos originais, aproveitando em grande parte as traduções
publicadas pela Federação Espírita Brasileira.
5. Diante de certas ocorrências trágicas, é comum
ouvir-se dizer que "tinham que acontecer", que "estavam
escritas". Essa opinião, que o Espiritismo mostra incorreta
quando generalizada, é analisada de forma interessante em Simonetti
1996.
Referências
• BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas
e métodos", Reformador, abril de 1986, pp. 99-101.
• CHAGAS, A. P. "O que é a ciência", Reformador,
março de 1984, pp. 80-83 e 93-95.
• -----. "As provas científicas", Reformador,
agosto de 1987, pp. 232-33.
• -----. "A Ciência confirma o Espiritismo?" Reformador,
julho de 1995, pp. 208-11.
• -----. "O Espiritismo na Academia?" Revista Internacional
de Espiritismo, fevereiro de 1994, pp. 20-22 e março de 1994,
p. 41-43.
• -----. Sobre a previsão do futuro. Revista Internacional
de Espiritismo, maio de 1996, pp. 124-25.
• CHIBENI, S.S. "Espiritismo e ciência", Reformador,
maio de 1984, pp. 144-47 e 157-59.
• -----. "A excelência metodológica do Espiritismo",
Reformador, novembro de 1988, pp. 328-33, e dezembro de 1988, pp. 373-78.
• -----. "Ciência espírita", Revista Internacional
de Espiritismo, março de 1991, pp. 45-52.
• -----. "O paradigma espírita", Reformador,
junho de 1994, pp. 176-80.
• EMMANUEL. "Fatalidade e livre-arbítrio" (Psicografia
de F. C. Xavier.). In: Nascer e Renascer. São Bernardo do Campo,
GEEM, 1982.
• KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (dépôt
légal 1985). O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro,
64a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira,
s.d.
• -----.Le Ciel et l'Enfer. Farciennes, Editions de l'Union Spirite,
1951. O Céu e o Inferno. Trad. Manuel Quintão, 28a ed.,
Rio de Janeiro, Federação Espíria Brasileira, s.d.
• SILVA, H. A Vida Escreve. (Psicografia de F. C. Xavier e Waldo
Vieira.) 5a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita
Brasileira, 1960.
• SIMONETTI, R. "Tinha que acontecer?", Reformador,
maio de 1996, pp. 138-39.
• XAVIER JR., A. L. "Algumas considerações
oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência",
Reformador, agosto de 1995, pp. 244-46. Artigo publicado em Reformador
de junho de 1997, pp. 176-180.
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O prefácio de Kardec à segunda edição francesa
de O Livro dos Espíritos
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Quadro dos principais fatos referentes a Allan Kardec e às origens
do Espiritismo
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O que é ciência?
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Questões acerca da natureza do Espiritismo
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As relações da ciência espírita com as ciências
acadêmicas
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A Religião Espírita
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Resenha: Le Livre des Esprits
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Revisão da terminologia espírita?
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Ser Espírita
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Sinopse dos principais fatos referentes às origens do Espiritismo
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The Spiritist Paradigm
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O Surgimento da Física Quântica
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Teorias construtivas e teorias fenomenológicas
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O Texto Acadêmico
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Os Trabalhadores da Última Hora
Chibeni, Silvio Seno & Almeida, Alexander Moreira
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Investigando o desconhecido: filosofia da ciência e investigação
de fenômenos “anômalos” na psiquiatria
Chibeni, Silvio Seno & Chibeni, Clarice Seno
->
> Estudo sobre a mediunidade
Chibeni, Silvio Seno &
Chibeni, Silvia Seno
->
A concepção espírita de fatalidade
Chibeni, Silvia Seno
->
Estudo sobre o passe
Chibeni, Silvio Seno; Faria, Luciana
->
> Kardec e a "desmaterialização" dos Espíritos.
Um texto esquecido da escala espírita na primeira edição
de O Livro dos Médiuns
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