Le Spiritisme est une science qui traite
de la nature, de l'origine et de la destinée des Esprits,
et de leur rapports avec le monde corporel.
Allan Kardec
1. INTRODUÇÃO: CIÊNCIA
E PSEUDO-CIÊNCIA
Com a frase em epígrafe, que figura no Preâmbulo do
importante livro O que é o Espiritismo,
Allan Kardec indica, de modo sumário porém preciso,
o objeto de estudo do Espiritismo, enquanto ciência. Quando
a escreveu, em 1859, Kardec já havia, ao longo de alguns
anos de investigações teóricas e experimentais
intensas, desenvolvido suficientemente o Espiritismo para poder
afirmar sem hesitação que se tratava de uma nova disciplina
científica. Como é bem sabido, os desdobramentos filosóficos
e morais que essa disciplina comporta foram igualmente objeto de
grande atenção por parte de Kardec. No presente trabalho
centralizaremos nossa análise no aspecto científico
do Espiritismo, atendendo à natureza desta seção
da Revista Internacional de Espiritismo.
[1]
A questão de que características
tornam uma disciplina merecedora do qualificativo científica
tem ocupado lugar proeminente nos estudos dos filósofos da
ciência. Notadamente nas últimas três décadas,
progressos significativos foram realizados no sentido de se lhe
oferecer uma resposta satisfatória. Um dos elementos mais
importantes nesse aperfeiçoamento de nossa concepção
de ciência foi a maior atenção que os filósofos
da ciência passaram a atribuir à análise detalhada
da história da ciência, dentro de uma abordagem historiográfica
renovada.
Reconhece-se hoje entre os especialistas
que a concepção comum de ciência padece de defeitos
sérios, por não resistir nem a variados argumentos
filosóficos recentemente levantados, nem ao confronto com
a descrição da gênese, evolução
e estrutura das disciplinas científicas maduras, ou seja,
da Física, da Química e da Biologia. Os elementos
problemáticos dessa visão ordinária de ciência,
esposada tanto pelo homem comum como por expressiva parcela dos
próprios cientistas, compareciam igualmente nas concepções
que os filósofos defendiam até a primeira metade de
nosso século. A versão mais bem articulada dessa concepção
é a doutrina filosófica conhecida como Positivismo
Lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e
1930. Por motivos que não cabe aqui examinar, essa posição
filosófica exerceu entranhada influência sobre os cientistas,
e essa influência perdura até nossos dias, a despeito
daquela concepção haver sido abandonada há
muito pelos filósofos.
Esses fatos são importantes
em nossa análise das linhas de pesquisa que pretendem competir
com o Espiritismo, pois elas começaram a surgir precisamente
quando o Positivismo Lógico fornecia os parâmetros
segundo os quais uma atividade genuinamente científica se
desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo equivocados, como
se percebeu depois, aquelas linhas de pesquisa nascentes, que alimentavam
a pretensão à cientificidade, acabaram por assimilar
uma visão de ciência irreal. Isso levou a que adotassem
métodos inadequados aos fins a que se propuseram, bloqueando-lhes
as possibilidades de contribuir significativamente para o avanço
de nosso conhecimento no domínio do espírito.
Lamentavelmente, a adoção
de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores
da Parapsicologia e demais linhas de investigação
que surgiram após ela a não somente empenharem infrutiferamente
os seus esforços, como também a desprezarem, ou mesmo
repelirem, as conquistas e métodos de uma legítima
ciência do espírito, surgida ainda no século
XIX, a saber, o Espiritismo.
Em trabalhos anteriores (ver Nota
1, acima) procuramos fornecer alguns detalhes dessa situação,
que embasam as afirmações precedentes. Essa tarefa
pressupõe, naturalmente, a comparação dos fundamentos,
estrutura e métodos do Espiritismo com aqueles que as investigações
recentes em Filosofia da Ciência mostraram caracterizar as
disciplinas paradigmaticamente científicas, como a Física,
a Química e a Biologia. Não há espaço
para reproduzir aqui as análises que empreendemos naqueles
trabalhos. Para fins de completude, porém, indicaremos a
seguir, de forma simplificada, alguns de seus pontos principais.
Grosso modo, a visão comum
de ciência envolve a assunção de que uma ciência
inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta
de dados experimentais (dados empíricos, na linguagem filosófica);
nessa etapa não compareceriam hipóteses teóricas
de nenhuma espécie. Uma vez de posse de um conjunto suficientemente
grande e variado de dados, os cientistas aplicariam então
certos métodos seguros e neutros para obter as teorias científicas,
que seriam descrições objetivas da realidade investigada.
O exame cuidadoso da história
da ciência e os argumentos filosóficos desenvolvidos
pelos filósofos da ciência contemporâneos mostraram
que essa caracterização da atividade científica
não somente não corresponde ao que de fato ocorreu
e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas, como
também pressupõe procedimentos impossíveis.
Observação e teoria, experimento e hipótese
nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo simbiótico
de suporte recíproco. A acumulação prévia
de dados neutros, ainda que fosse possível, seria inútil.
Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico a leis científicas
a imaginação criadora do homem desempenha um papel
essencial na gênese das teorias científicas.
A imagem de ciência a que
os filósofos da ciência chegaram a partir das conquistas
recentes indica que uma ciência autêntica consiste,
simplificadamente, de um núcleo teórico principal,
formado por hipóteses fundamentais. Esse núcleo é
circundado por hipóteses auxiliares, que o complementam e
efetuam sua conexão com os dados empíricos. Essa estrutura
mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras,
nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento
futuro. De um lado, há as regras "negativas", que
estipulam que nesse desenvolvimento os princípios básicos
do núcleo teórico devem, o quanto possível,
ser mantidas inalteradas. Eventuais discrepâncias entre as
previsões da teoria e as observações experimentais
devem ser resolvidas por ajustes nas partes menos centrais da malha
teórica, constituídas pelas hipóteses auxiliares;
regras "positivas" sugerem ao cientista como, quando e
onde essas correções e complementações
devem ser efetuadas.
Ao contrário do que se supõe
na visão comum de ciência, não há restrições
sobre a natureza das leis de uma teoria científica, que podem
inclusive ser de caráter predominantemente metafísico.
A restrição fundamental é que a estrutura teórica
como um todo forneça previsões empíricas corretas,
ou seja dê conta dos fatos. O exame das teorias científicas
maduras e dos padrões avaliativos adotados pelos cientistas
indica ainda que algumas características devem necessariamente
estar presentes em qualquer boa teoria científica. Inicialmente,
ela deve ser consistente. Deve ser abrangente, explicando um grande
número de fatos. Deve, por fim, apresentar as virtudes estéticas
de unidade e simplicidade, ou seja, a explicação que
fornecem dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural
e simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão
reduzido quanto possível. Há ainda o vínculo
externo de que uma teoria não deve conflitar com as demais
teorias científicas bem estabelecidas que tratam de domínios
de fenômenos complementares (por exemplo, uma teoria biológica
não deve pressupor leis químicas e físicas
que contrariem as leis bem assentadas da Química e da Física).
2. O ESPIRITISMO COMO CIÊNCIA
A inspeção meticulosa e isenta das origens, estrutura
e desenvolvimento do Espiritismo revela que ele possui todos esses
requisitos de uma ciência genuína. Em artigo anterior
("A excelência metodológica do Espiritismo")
procuramos mostrar, além disso, que Allan Kardec admiravelmente
antecipou- se às conquistas recentes da Filosofia da Ciência,
e compreendeu essa realidade. Sua visão de ciência,
exposta explícita e implicitamente em seus escritos, corresponde
à visão moderna e justa mencionada acima. Isso teve
a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma
nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação
métodos e critérios corretos, o que possibilitou o
surgimento de uma verdadeira ciência do espírito.
O corpo teórico fundamental
do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos.
O exame dessa obra revela sua consistência e seu alto grau
de coesão, uma notável concatenação
das diversas leis, a amplitude de seu escopo, e o perfeito casamento
da teoria com os fatos. Ademais, ali estão implícitamente
presentes as diretrizes que nortearam os desenvolvimentos ulteriores
das investigações espíritas. Parte significativa
desses desenvolvimentos foi, como se sabe, levada a cabo pelo próprio
Kardec, e se acham exarados nas demais obras que escreveu. Consoante
com a natureza de uma verdadeira ciência, o desenvolvimento
experimental e teórico do Espiritismo prosssegue até
hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados e desencarnados.
Contrariamente ao que alguns críticos
mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas
contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com
qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da Física,
quer da Química ou da Biologia. É de crucial importância
notar, como o fez Kardec, [2] que
embora o Espiritismo seja uma ciência, ele não se confunde
com as referidas ciências, do mesmo modo como elas não
se confundem entre si. Os domínios de fenômenos por
elas tratados não coincidem, sendo antes complementares.
A percepção dessa
distinção evita uma série de julgamentos e
posturas equivocados, que têm ameaçado até mesmo
o próprio Movimento Espírita. Vêem-se, com efeito,
pessoas que imaginam que a ciência espírita consiste
em determinadas investigações envolvendo experimentos
conduzidos com o auxílio de aparelhagens de uso nos laboratórios
de Física, e dentro de referenciais teórico-conceituais
emprestados à Física. Assume-se, assim, que é
o uso desses aparelhos e o emprego de terminologia técnica
(aliás quase sempre incompreendida por quem a usa dentro
de tais contextos) que confere cientificidade a essas investigações.
Dada a relevância da elucidação
dos sérios enganos envolvidos em semelhantes alegações,
nesta Seção e na seguinte nos deteremos um pouco mais
sobre elas. [3]
A observação mais
importante é a de que o estabelecimento dos princípios
básicos do Espiritismo prescinde completamente do uso de
qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física.
O mais fundamental de tais princípios é o da existência
do espírito, ou seja, da existência de algo no homem
que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive
à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação
cabal desse princípio se dá através dos fenômenos
a que denominou "de efeitos intelectuais", quais sejam
a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita
isentamente sobre fenômenos dessa ordem não terá
dificuldade em reconhecer que atestam a existência do espírito
de modo inequívoco as tentativas de "explicações"
alternativas que se têm procurado oferecer surgirão
como ridículas.
Nessa avaliação, é
importante notar a diferença que existe entre esse princípio
básico do Espiritismo e alguns dos princípios das
teorias físicas e químicas contemporâneas, por
exemplo. Neste último caso, o "grau teórico"
(se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros
termos, os princípios estão muito mais distantes do
nível fenomenológico, ou seja, da observação
empírica direta. Em tal caso, o caminho que vai da observação
até o princípio teórico é bastante indireto
e tortuoso, passando por uma série de teorias auxilires,
necessárias, por exemplo, para tratar do funcionamento e
interpretação dos dados dos aparelhos envolvidos.
Nessas circunstâncias, a segurança com que os princípios
podem ser asseridos fica evidentemente limitada; há em geral
possibilidades plausíveis de explicações dos
mesmo fenômenos através de princípios teóricos
diferentes; a história da Física e da Química
tem ilustrado a vulnerabilidade de suas teorias.
No caso do princípio espírita
em questão (bem como de vários outros dos princípios
básicos do Espiritismo), a situação é
bastante diversa. Trata- se de um princípio pertencente à
classe de princípios a que os filósofos denominam
"fenomenológicos", que estão na base do
edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza.
Proposições dessa classe são, por exemplo,
as de que o Sol existe, de que o fogo queima e a cicuta envenena,
a de que determinado familiar veio nos visitar no dia tal e nos
deixou uma caixa de bombons, etc. Nestes casos, embora explicações
alternativas sejam em princípio possíveis, [4]
elas são tão inverossímeis que não
merecem o assentimento de nenhum ser racional. Notemos que a inferência
espírita diante de um fenômeno de efeitos intelectuais
não difere em nada das inferências que fazemos a partir
dos fenômenos ordinários. Quando, por exempo, o carteiro
traz à nossa casa um papel no qual lemos certas frases, não
nos acudirá à cabeça a idéia de que
elas não foram escritas por um determinado amigo, por exemplo,
quando relatam fatos, contêm expressões e expressam
pensamentos peculires e íntimos. Exatamente o mesmo se dá
com os abundantes e variados casos de psicografia de que todos somos
testemunha. Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a
constatação cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie
(como por exemplo os que nos têm oferecido a extraordinária
mediunidade de Chico Xavier) é suficiente para eliminar qualquer
dúvida.
Como se isso não bastasse,
a base experimental do Espiritismo incorpora ainda muitos outros
tipos de fenômenos, como a psicofonia, a xenoglossia, as materializações,
os casos de vidência, a pneumatografia e a pneumatofonia,
etc. Além desses fenômenos, que formam uma classe específica,
a dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apoia-se também,
em virtude de oferecer-lhes explicações científicas,
em uma multidão de fenômenos ordinários. Referimo-nos,
por exemplo, às nossas inclinações e sentimentos,
às peculiaridades de nosso relacionamento com as pessoas
que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas vidas, aos
distúrbios da personalidade, aos efeitos psicosomáticos,
aos sonhos, à evolução das espécies
e das civilizações, etc.
Entendemos que a desconsideração
desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo
constitui omissão séria da parte de seus críticos.
Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início
que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos
mediúnicos e anímicos específicos que motivaram
o seu surgimento. Referindo-se às suas impressões
diante das realidades novas que se lhe iam descortinando através
de suas cuidadosas observações e raciocínios,
Kardec assim se expressou: "Logo compreendi a gravidade da
exploração que ia empreender; entrevi naqueles fenômenos
a chave do problema tão obscuro e tão controvertido
do passado e do futuro da Humanidade, a solução do
que eu havia procurado durante toda a minha vida; era, numa palavra,
toda uma revolução nas idéias e nas crenças
(...)". [5] "O estudo
do Espiritismo é imenso", disse Kardec em outra passagem;
"interessa a todas as questões da metafísica
e da ordem social; é todo um mundo que se abre diante de
nós." [6]
3. PSEUDO-CIÊNCIAS DO ESPÍRITO
Na Seção precedente iniciamos a enumeração
dos métodos e procedimentos anti-científicos que caracterizam
as linhas de pesquisa alternativas do espírito, indicando
que a natureza de seu objeto de estudo é tal que o recurso
a aparelhos e a métodos quantitativos em geral é dispensável
e mesmo arrriscado, pelos enganos a que pode levar. Isto vale pelo
menos quanto ao estabelecimento dos princípios fundamentais
da ciência do espírito, concebendo-se que em um futuro
distante o detalhamento de alguns pontos mais técnicos, como
por exemplo os relativos às leis dos fluidos, possa requerer
uma integração mais estreita com a física e
a química mais refinadas de então.
Prosseguiremos agora nossa enumeração,
começando por um tópico ligado ao que expusemos no
final da Seção precedente. Referimo-nos à abrangência
do Espiritismo. O escopo dessa ciência é incomparavelmente
mais amplo do que o de todas as teorias alternativas. Uma inspeção
destas últimas mostra que consideram apenas uns poucos fenômenos
isolados, sem levar em consideração uma multidão
de outros, igualmente relevantes.
Esse desprezo de fatos importantes
resulta essencialmente de duas fontes:
1) preconceitos e interesses diversos; e
2) falta de um corpo teórico que norteie a pesquisa experimental.
Quanto ao primeiro fator, não há o que comentar.
Quanto ao segundo, notemos que está intimamente ligado à
falsa concepção de ciência adotada, que imagina
ser possível se fazer ciência sem teoria.
Outra deficiência séria
que apresentam esses sistemas não-espíritas é
que mesmo para os grupos reduzidos de fenômenos que levam
em conta, as explicações oferecidas pecam pela falta
de unidade e organicidade, recorrendo a leis e princípios
desconectados.
Além disso, tais explicações
em geral falham em satisfazer um outro requisito fundamental de
uma genuina explicação científica: a simplicidade.
As explicações são em geral ainda mais inexplicáveis
que os fatos que se propõem a explicar.
Encontramos ainda explicações
puramente verbais, ou seja, que não apresentam qualquer conteúdo,
limitando- se ao uso de termos técnicos, buscados nas diversas
ciências ou criados a esmo, procurando-se com isso conferir
ares científicos à suposta explicação.
Muitas pessoas não familarizadas com a ciência deixam-se
fascinar por tais artifícios, não percebendo que qualquer
explicação satisfatória deve caracterizar-se
pela clareza e inteligibilidade (como nos dá magnífico
exemplo o Espiritismo) e que o recurso à linguagem técnica
só é legítimo dentro do contexto teórico
que lhe é próprio.
Outro tipo freqüente de deficiência
que notamos nos sistemas que pretendem competir com o Espiritismo
refere-se ao recurso a conceitos e teorias científicas obsoletos,
ou o uso não-profissional das teorias contemporâneas.
As ciências, principalmente a Física e a Química,
passaram por transformações radicais em nosso século
as teorias atuais envolvem conceitos extremamente abstratos, distantes
da intuição do senso comum, além de técnicas
matemáticas de grande complexidade. Em seus aspectos essenciais,
essas teorias não são acessíveis ao leigo,
que, quando instruído, em geral ainda tem para si a imagem
do mundo fornecida pelas teorias do século passado. Os muitos
livros de popularização da ciência via de regra
não resolvem esse problema; mesmo quando são escritos
por profissinais (o que é raro), inevitavelmente têm
de recorrer a simplificações drásticas, que
resultam em distorções sérias na imagem que
oferecem das teorias expostas. Como resultado, a virtual totalidade
das pessoas que têm se aventurado a estabelecer vínculos
diretos entre os fenômenos espíritas e as teorias da
Física cai, ou no recurso a teorias superadas, ou em confusões
que mostram-se ridículas aos olhos dos cientistas com formação
profissional. Essas pessoas acabam pois involuntariamente prestando
um desserviço à causa da investigação
científica do espírito.
Mais um fator importante que entrava
as linhas de pesquisa não-espíritas é o sistemático
desprezo pelas contribuições anteriormente efetuadas
por outros pesquisadores. Cada um quer começar tudo de novo,
e criar seu próprio sistema. Se a dúvida equilibrada
representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida,
aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza
o avanço do conhecimento. Se nas ciências acadêmicas
se tivesse adotado semelhante atitude, elas estariam ainda em seus
primórdios.
Por fim, lembramos ainda que muitas
das tentativas não-espíritas de estudo dos fenômenos
espíritas fracassam por não reconhecer a influência
de fatores morais em sua produção, influência
essa que em em certos casos é determinante.
4. PERSPECTIVAS DA CIÊNCIA
ESPÍRITA
Como vimos na Seção 1, uma ciência autêntica
deve envolver um programa de pesquisa, que auxilie o seu progresso.
Com a lucidez científica que lhe era peculiar, Allan Kardec
apontou diretrizes seguras para o desenvolvimento do Espiritismo.
De um lado, temos suas análises
que advertem contra os métodos e procedimentos anti-científicos
que poderiam embaraçar a marcha do Espiritismo. Nas duas
seções precedentes enumeramos alguns dos mais importantes
deles; Kardec percorreu-os todos, e ainda outros, oferecendo sólida
fundamentação às suas críticas.
[7]
De outro lado, Kardec legou-nos
investigações paradigmáticas sobre os tópicos
mais fundamentais da ciência espírita, que serviram
de modelo pra os pesquisadores que vieram após ele, e que
devem continuar desempenhando essa tarefa nas pesquisas futuras.
Simplificadamente, poderíamos
classificar assim as áreas principais de investigação
espírita:
1. ) Evolução do espírito:
o elemento espiritual dos seres dos reinos inferiores; origem dos
espíritos humanos; encarnação e reencarnação
pluralidade dos mundos habitados.
2. ) O mundo espiritual.
3. ) Interação espírito-corpo: perispírito,
efeitos psicossomáticos, mediunidade.
4. ) Implicações morais (uma área científica
e filosófica): livre-arbítrio, lei de causa e efeito.
Note-se que não incluímos o tópico
"comprovação da existência do espírito".
A razão é evidente: trata-se de uma questão
já resolvida, na qual não devem as investigações
estacionar. Foi uma etapa preliminar, e quem não
a percorreu não pode, em boa lógica, pretender-se
espírita, ou estar realizando pesquisas espíritas.
É de lamentar que tal fato nem sempre seja percebido ou compreendido
por pessoas que militam dentro das próprias fileiras espíritas.
Os espíritas, para quem a existência do espírito
é uma realidade insofismável, por a havermos constatado
através de observações e argumentos racionais,
devemos deixar àqueles que ainda não a reconheceram
a tarefa de prová-la uma vez mais, pela maneira que bem entendam.
Mas não devemos empenhar nossos esforços em uma investigação
redundante, e que deporia contra as nossas próprias convicções.
[8]
Três outros aspectos importantes
no desenvolvimento do Espiritismo foram enfatizados por Kardec.
No item VII da Introdução
de O Livro dos Espíritos, Kardec afirma que "o
Espiritismo não é da alçada da ciência".
Evidentemente, trata-se aqui das ciências acadêmicas,
ou seja, da Física, da Química e da Biologia. O argumento
para tal assertiva baseia-se nas peculiaridades do objeto de estudo
e métodos do Espiritismo e das referidas ciências,
assunto este tratado na Seção 2, acima. Vale a pena
reproduzir aqui, por sua propriedade, o arrazoado que, no texto,
antecede a assertiva em questão:
As ciências ordinárias
assentam nas propriedades da matéria, que se pode experimentar
e manipular livremente. Os fenômenos espíritas repousam
na ação de inteligências dotadas de vontade
própria e que nos provam a cada instante não se acharem
subordinadas aos nossos caprichos. As observações
não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; requerem
condições especiais e outro ponto de partida. Querer
submetê- las aos processos comuns de investigação
é estabelecer analogias que não existem. A ciência
propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente
para se pronunciar na questão do Espiritismo: não
tem que se ocupar com isso, e qualquer que seja o seu julgamento,
favorável ou não, nenhum peso poderá ter.
As relações entre
o Espiritismo e as ciências ordinárias são,
antes, de complementaridade, como também notou Kardec. No
parágrafo 16 do Capítulo I de A Gênese, lemos
a seguinte frase, ao final de uma extensa argumentação:
"O Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente".
O segundo aspecto importante a ser
notado liga-se parcialmente ao precedente: Kardec observa que não
apenas existe uma relativa autonomia entre o Espiritismo e as ciências
ordinárias como também os cientistas das academias
não estão, pelo simples fato de serem cientistas,
mais capacitados do que as demais pessoas para se pronunciar nas
questões relativas ao Espiritismo. O assunto é abordado,
entre outros lugares, em uma das respostas ao Céptico de
O que é o Espiritismo (Cap. I, Segundo diálogo,
seção "Oposição da ciência").
Vejamos estes trechos significativos:
Concordai, também, que
ninguém pode ser bom juiz naquilo que está fora
de sua competência. Se quiserdes edificar uma casa, confiareis
esse trabalho a um músico? Se estiverdes enfermo, far-vos-eis
tratar por um arquiteto? Se estais a braços com um processo,
ides consultar um dançarino? Finalmente, quando se trata
de uma questão de teologia, alguém irá pedir
a solução a um químico ou a um astrônomo?
Não cada um em sua especialidade. (...)
A ciência enganou-se quando
quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha
voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo
uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe,
concluiu pela negação, juízo temerário
que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já
o fez com tantos outros. (...)
As corporações científicas não devem,
nem jamais deverão pronunciar-se nesta questão ela
está tão fora dos limites do seu domínio como
a de decretar se Deus existe ou não é, pois, um erro
tomá-las aqui por juiz.
Kardec lembra aqui que cada um é
competente em sua especialidade, que alguém que haja se especializado
no estudo de determinada ordem de fenômenos materiais (um
físico ou um biólogo, por exemplo), não adquire,
por esse simples fato, competência para se pronunciar sobre
uma ordem de fenômenos completamente diferentes, a menos,
obviamente, que essa pessoa tenha se dedicado séria e longamente
ao seu estudo. Não devemos, pois, cair no erro freqüente
hoje em dia de atribuir aos cientistas das academias uma superioridade
que eles de fato não possuem na avaliação das
pesquisas espíritas.
Por fim, Kardec tomou um extremo
cuidado em preservar, e recomendar a preservação,
da coerência e integridade da ciência espírita,
pela não-intromissão em sua estrutura teórico-conceitual
de elementos heterogêneos, oriundos de outros programas de
pesquisa. Kardec dotou o Espiritismo de um arsenal conceitual-nomológico
próprio, e qualquer desenvolvimento da teoria espírita
deve fazer-se recorrendo-se aos seus elementos, ou, se algum acréscimo
se fizer necessário, o elemento adicionado não pode
conflitar com as leis básicas bem estabelecidas do Espiritismo.
Notemos que precauções semelhantes são tomadas
na evolução das ciências ordinárias.
No caso do Espiritismo, é admirável que ao propor
o referido corpo de conceitos e leis, Kardec teve a lucidez de não
admitir elementos demasiadamente vulneráveis às transformações
futuras das ciências. É assim que o Espiritismo é
uma teoria fenomenológica, pelo menos em seus fundamentos.
Kardec não se aventurou, por exemplo, a formular modelos
para o perispírito, ou explicações técnicas
para os fenômenos mediúnicos em termos de conceitos
e princípios vulneráveis das ciências de seu
tempo. Retrospectivamente, vemos agora que isso providencialmente
preservou o Espiritismo das reviravoltas profundas ocorridas nas
ciências, durante as primeiras décadas de nosso século.
Espelhando-nos na atitude prudente de Kardec, não devemos,
por nossa vez, procurar fazer o que ele não fez, e prematuramente
associar o Espiritismo às teorias científicas contemporâneas.
A progressividade do Espiritismo, uma de suas características
essenciais, dado que é uma ciência que se apoia em
fatos, não significa a absorção irrestrita
de qualquer teoria que apareça. Essa advertência foi
claramente exposta no parágrafo 55 do Capítulo
I de A Gênese (grifamos):
Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá
o apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo]
assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer
ordem que seja, desde que hajam atingido o estado de verdades
práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o
que se suicidaria.
Não poderíamos encerrar estes apontamentos sem mencionar
um ponto de crucial importância, sobre o qual Kardec
não se cansava de insistir: O objetivo essencial
do Espiritismo é tornar melhor o homem, convencendo- o, através
dos fatos e da razão, de que somente o comportamento evangélico
lhe assegurará um porvir feliz. E é nessa
tarefa de esclarecimento que a ciência espírita é
chamada a desempenhar a sua mais importante tarefa, conforme lemos
nos comentários que Kardec tece às questões
147 e 148 de O Livro dos Espíritos:
[...] A missão do Espiritismo
consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em
fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e
o penetremos com o olhar, não mais pelo raciocínio
somente, porém pelos fatos. Graças às comunicações
espíritas, não se trata mais de uma simples suposição,
de uma probabilidade sobre a qual cada um conjeture à vontade,
que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem
de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade
que nos aparece, pois que são os próprios seres
de além-túmulo que nos vêm descrever a situação
em que se acham, relatar o que fazem, facultando-nos assistir,
por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que
lá vivem e mostrando-nos, por esse meio a sorte inevitável
que nos está reservada, de acordo como os nossos méritos
e deméritos. Haverá nisso alguma coisa de anti-religioso?
Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram
aí a fé e os tíbios a renovação
do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois,
o mais potente auxiliar da religião. Se ele aí está,
é porque Deus o permite, e o permite para que as nossas
vacilantes esperanças se revigorem e para que sejamos reconduzidos
à senda do bem pela perspectiva do futuro.