Entrevista com Silvio Seno Chibeni
Considerações preliminares (S.
S. Chibeni):
Gostaria inicialmente de agradecer
ao GEAE a oportunidade desta entrevista. As questões propostas
parecem-me bastante relevantes, dadas as dificuldades de compreensão
do Espiritismo no Movimento Espírita atual. No entanto, para
que fossem adequadamente tratadas, seria preciso dispor de um espaço
muitas vezes maior do que o que é razoável ocupar
em uma entrevista deste tipo. Ressalto, assim, a necessidade de
os leitores complementarem seus estudos nas fontes pertinentes:
os textos acadêmicos de filosofia ou ciência e, no caso
do Espiritismo, a vasta bibliografia de boa qualidade disponível,
começando sempre pelas obras fundamentais de Allan Kardec.
Diversos tópicos desta entrevista foram analisados em artigos
de minha autoria ou co-autoria, publicados na imprensa espírita.
Destacaria, em especial, os seguintes trabalhos:
* "Espiritismo e ciência",
Reformador, maio de 1984, pp. 144-47 e 157-59.
* "A excelência metodológica do Espiritismo",
Reformador, novembro de 1988, pp. 328-333, e dezembro de 1988, pp.
373-378.
* "Ciência espírita", Revista Internacional
de Espiritismo, março 1991, pp. 45-52.
* "O paradigma espírita", Reformador, junho de
1994, pp. 176-80.
* "Os fundamentos da ética espírita", Reformador,
junho de 1985, pp. 166-9.
* "Por que Allan Kardec?" Reformador, abril de 1986, pp.
102-3.
* "Estudo sobre a mediunidade" (em co-autoria com Clarice
Seno Chibeni), Reformador, agosto de 1997, pp. 240-43 e 253-55.
Outros
artigos importantes sobre os temas desta entrevista e que nela serão
eventualmente citados são:
* CHAGAS, A. P. "O que é a Ciência?",
Reformador, março de 1984, pp.
80-83 e 93-95.
* ---. "As provas científicas", Reformador, agosto
de 1987, pp.
232-33.
* ---. "O Espiritismo na Academia?", Revista Internacional
de Espiritismo, fevereiro de 1994, pp. 20-22 e março de 1994,
pp. 41-43 .
* ---. "A ciência confirma o Espiritismo?", Reformador,
julho de 1995, pp. 208-11.
* ---. "Polissemias no Espiritismo", Revista Internacional
de Espiritismo, setembro de 1996, pp. 247-49.
* XAVIER Jr., A. L. "Algumas considerações oportunas
sobre a relação Espiritismo-Ciência", Reformador,
agosto de 1995, pp. 244-46.
Alguns
desses artigos encontram-se, ao lado de outros, disponíveis
na Internet. Consultem-se as páginas:
* Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp:
http://www.geocities.com/Athens/Academy/8482
* Spiritism to the World:
http://www.ifi.unicamp.br/~xavier/spirit.html
* Federação Espírita Brasileira (Reformador):
http://www.febrasil.org.br
Nas transcrições de trechos das obras clássicas
de Allan Kardec utilizei os originais franceses, aproveitando em
grande parte as excelentes traduções publicadas pela
Federação Espírita Brasileira.
Para facilitar a exposição,
as questões foram por mim reordenadas, numeradas e agrupadas,
para constituir blocos temáticos: as duas primeiras versam
sobre problemas semânticos, a terceira sobre a religião
espírita e as restantes referem-se a vários aspectos
das relações entre o Espiritismo e a ciência.
Questão 1:
a) Existe um problema de sentido de palavras que tem gerado
polêmicas no meio Espírita. Trata-se da interpretação
da própria palavra "Espiritismo". Há
os que interpretam a palavra em sentido mais amplo, como significando
o estudo dos fenômenos mediúnicos e das comunicações
com os Espíritos, neste sentido há razão em
falar-se em "Espiritismo Kardecista" e "Espiritismo
Cristão", pois o haveria também sem estar ligado
à codificação elaborada por Kardec. Outros
são da opinião que compartilho, que a palavra "Espiritismo"
se refere apenas à Doutrina Espírita, conforme a codificação
de Kardec, empregando-se para os outros casos a designação
de "Novo Espiritualismo", "Espiritualismo Moderno"
e "Doutrina Espiritualista". Neste caso, as designações
"Espiritismo Kardecista" e "Espiritismo Cristão"
seriam apenas um modo de dar ênfase a idéias embutidas
na própria palavra, seriam redundâncias desnecessárias.
b) Um fato que dificulta a questão é o desenvolvimento
histórico separado que seguiram os estudos das manifestações
mediúnicas no mundo latino e no mundo anglo-saxão.
O mundo anglo-saxão tardou a aceitar a reencarnação
e também se dividiu em uma infinidade de correntes de pensamento
diferentes. Parece-me que na época de Kardec esse fato ainda
não estava muito claro e que na introdução
do Livro dos Espíritos a definição da palavra
"Espiritismo" tende ao sentido mais amplo.
c) Essa questão também se desdobra nas discussões
em torno da Umbanda e do Candomblé, vertentes também
baseadas em fenômenos mediúnicos, de surgimento posterior
à codificação espírita e que, apesar
de apresentarem características conflitantes com ela, são
por alguns classificadas como Espiritismo.
Dentro dos estudos que o senhor tem feito a respeito das características
da Doutrina Espírita, como vê essa questão?
Resposta à Questão 1:
A palavra 'Espiritismo' tem, de fato, sido utilizada com acepções
bastante diversas. Trata-se de um fato comum em toda linguagem natural;
somente em linguagens artificiais, como por exemplo certas linguagens
da lógica e da matemática, consegue-se evitar a polissemia.
As palavras, quer escritas, quer
faladas, são símbolos com os quais representamos idéias
ou conceitos. Essa relação de representação
é arbitrária, ou seja, associamos tal palavra a tal
idéia de forma inteiramente livre e convencional.
A necessidade de comunicação, que constitui o principal
objetivo da linguagem, recomenda-nos, no entanto, entrarmos em acordo
com os outros integrantes de nossa comunidade lingüística
acerca dessas convenções, para se evitarem desentendimentos
semânticos. Nas linguagens ordinárias tal acordo estabelece-se
de forma natural e muitas vezes inconsciente, possibilitando um
razoável grau de comunicação, pelo menos quanto
às noções do dia-a-dia. Quando surgem noções
novas ou complexas, porém, costuma ocorrer um período
de indefinição ou confusão, que pode se prolongar
muito, se não tomarmos as providências cabíveis,
para que todos utilizem as mesmas palavras para designá-las.
Quando Allan Kardec deu início a uma nova abordagem dos fenômenos
mediúnicos e anímicos - que sempre existiram, naturalmente
-, preocupou-se com esse ponto, conhecedor que era da filosofia.
Dessa forma, percebendo que o desenvolvimento de uma nova teoria
tipicamente envolve a criação de novos conceitos,
cunhou diversos termos, nos casos em que se fazia absolutamente
necessário, como 'Espiritismo', 'espírita', 'perispírito',
'mediunidade' e outros tantos, utilizados, por exemplo, para designar
diversas noções da teoria dos processos mediúnicos.
Fez isso de forma deliberada e explícita, em diversas de
suas obras. Além desses neologismos, a teoria espírita
exigiu a alteração dos significados de muitas palavras
já em uso, como é o caso de 'Deus', 'anjo', 'demônio',
'céu', 'inferno', 'bem', 'mal', etc.
Nesses casos também Kardec
indicou claramente as novas acepções dadas aos vocábulos.
Não obstante todas as precauções tomadas por
Kardec, é inegável que muitas das palavras cuja acepção
ele procurou fixar a bem da inteligibilidade vêm sofrendo
desvios de significado por vezes bastante grandes, como se ressalta
corretamente nos itens (a) e (c) da questão, em relação
à própria palavra 'Espiritismo'. Fatos desse gênero
ocorrem também nas diversas disciplinas acadêmicas,
porém em menor escala, dadas as peculiaridades das correspondentes
comunidades lingüísticas, formadas por indivíduos
que passaram por longo e rigoroso (idealmente!) processo de formação.
No caso do Espiritismo, porém, não há e nem
deve haver uma formação oficial dos espíritas.
A preservação doutrinária e, por conseguinte,
lingüística, do Espiritismo fica, assim, na dependência
do empenho de cada pessoa e de cada instituição (centro,
federação, editora) em estudar profundamente os textos
básicos, mantendo-os constantemente como referência
ou paradigma, ainda que complementações e ajustes
periféricos se façam eventualmente necessários
(veja-se o artigo "O paradigma espírita", citado
no início).
Ora, é isso o que pouco se vê no Movimento Espírita
atualmente.
Somente alguns lêem; poucos
estudam; raros compreendem. Faltam reuniões de estudo de
Espiritismo em muitos centros. Editoras, revistas e jornais proliferam
sem limites, e publicam sem critérios doutrinários
rigorosos. O resultado não poderia ser outro: confusões,
desorientações e disputas quase generalizadas.
O que fazer? Um pouco de reflexão mostra que os problemas
de linguagem do Movimento Espírita não podem ser resolvidos
com determinações impositivas deste ou daquele teor,
ou de apelo a dicionários. Os filósofos contemporâneos
têm ressaltado que o conteúdo semântico do vocabulário
de uma disciplina pode ser delimitado por meio de definições
explícitas, mas apenas parcial e preliminarmente. O que confere
significado completo e estável às palavras é
sua utilização em corpos teóricos coerentes
e com potencial elucidativo de uma determinada gama de fenômenos.
Considere-se, por comparação, as definições
de 'massa', 'força impressa', 'inércia', etc. que
Newton fez figurar no início de sua monumental obra Philosophiae
Naturalis Principia Mathematica. É claro que elas servem
para indicar algo, porém se forem isoladas da teoria mecânica
desenvolvida no restante do livro perderão inteligibilidade
e conteúdo cognitivo. Ou, para tomar um exemplo negativo,
analisem-se as propostas de investigação que surgiram
com a pretensão de substituir o Espiritismo, como a metapsíquica
e a parapsicologia. À falta de teorias completas e coerentes
- pois que não as têm - tais disciplinas viram-se e
ainda vêem-se a braços com notória proliferação
terminológica que, não obstante sua aparente sofisticação,
pouco parece contribuir para a veiculação de conceitos
inteligíveis, com conteúdo empírico e fertilidade
heurística.
No caso do Espiritismo, Kardec e alguns dos seus continuadores mais
lúcidos trataram de desenvolver o arcabouço lingüístico
simultaneamente com uma teoria dotada de todas as principais características
de uma boa teoria científica, e na medida estrita da necessidade
de expressão simbólica dos conceitos envolvidos. Desse
modo, para o estudioso atento e esclarecido do Espiritismo não
há lugar para dúvidas e mal-entendidos acerca das
noções e princípios fundamentais. As confusões
que se notam nos meios espíritas ou semi-espíritas
não provêm de falhas estruturais ou conceituais no
programa de pesquisa espírita iniciado por Kardec, mas da
falta de preparo e de estudo sério, conforme já ressaltei.
O remédio é, pois, único e fácil de
encontrar, mas de difícil aplicação. Requer-se
uma mudança de atitude intelectual e prática, que
começa pelo reconhecimento do valor paradigmático
das realizações de Kardec, passa pela disposição
de colocar a doutrina acima de vaidosas concepções
pessoais e falsas necessidades de modernização, e
culmina com a instituição de uma política sistemática
e pertinaz de valorização do estudo e do rigor doutrinários
nos centros, federações e editoras.
É justo registrar aqui que é ao longo dessas linhas
que se vem pautando a atuação de diversos indivíduos
e instituições respeitáveis no Movimento Espírita,
do tempo de Kardec aos nossos dias, cabendo destacar, por seu vulto
e ancianidade, as contribuições da Federação
Espírita Brasileira. Em torno desse núcleo é
que devemos nos reunir, somando esforços na preservação
do patrimônio inestimável que Kardec nos legou.
Para finalizar, retomo de forma mais tópica alguns dos pontos
da questão formulada. Acho sensata a opinião expressa
no item (a) da pergunta, de que se deveria reservar a palavra
'Espiritismo' para designar aquilo para que foi cunhada,
ou seja, a doutrina, teoria, paradigma, ou programa de pesquisa
iniciado por Kardec.
A afirmação feita no item (b), de que "na introdução
do Livro dos Espíritos a definição da palavra
'Espiritismo' tende ao sentido mais amplo" apontado não
me parece inteiramente justa. No item I dessa Introdução
Kardec traça a distinção clara entre o espiritualismo
e a doutrina que vai ser exposta no livro - e se encontra, aliás,
resumida na própria Introdução, item VI - cunhando
o termo 'Espiritismo' para designar esta última. Lembremos
ainda que a Introdução só veio à luz
com a segunda edição do livro, em 1860, quando já
vários anos haviam transcorrido desde a delimitação
e consolidação do corpo doutrinário, mesmo
antes da publicação da primeira edição,
em 1857, e após ela com o lançamento de diversas outras
obras, inclusive a Revue Spirite. Não havia pois à
época nenhuma indefinição no pensamento de
Kardec quanto à natureza do Espiritismo e, por conseguinte,
no emprego que fazia da palavra 'Espiritismo' (salvo talvez passagens
isoladas em que o contexto permitia uma flexibilização
do escopo do termo, sem que com isso se instaurassem confusões).
Retomando o curso principal da argumentação, se outras
pessoas utilizam a palavra 'Espiritismo' com acepções
diversas da original, para designar, por exemplo, o espiritualismo
ou o "novo espiritualismo", ou seitas mediunistas afro-brasileiras,
quase nada podemos fazer, dado o respeito que devemos ter pela liberdade
de expressão. A única medida eficaz que podemos tomar
é a de insistir no seu uso original, em todas as ocasiões
que se nos deparem, fazendo ver as diferenças doutrinárias
existentes entre as abordagens. Há, ou podem ser criadas,
palavras em número suficiente para designar sem ambigüidade
todas as teorias, doutrinas ou seitas. Não creio que devamos
apelar para artifícios aparentemente mais fáceis,
como o de acrescentar adjetivos diversos ('kardecista', 'cristão',
etc.) ao termo 'Espiritismo'. Se descuidarmos da preservação
doutrinária nas instituições e publicações,
tais expressões sofrerão, a seu turno, desvios de
significado, que terão de ser corrigidos novamente com mais
acréscimos, num processo sem fim certo.
Questão 2:
Outra afirmativa que se ouve periodicamente é a necessidade
de atualização dos termos técnicos
utilizados no Espiritismo. Para algumas pessoas o uso de
termos como "fluidos", "mediunidade", etc. prejudica
a posição científica do Espiritismo. Há
alguma fundamentação, dentro da filosofia da ciência,
para essas criticas? O Espiritismo, sendo uma ciência independente,
dedicada ao estudo de fenômenos que escapam ao escopo das
ciências clássicas, não teria a liberdade de
definir seus próprios termos? Historicamente o Espiritismo
precede a Metapsíquica e a Parapsicologia, também
é anterior às novas concepções de matéria
e energia da Física Moderna, não lhe daria tal posição,
de pioneiro no estudo e definição dos fenômenos,
o direito de estabelecer sua própria nomenclatura?
Resposta:
As considerações sobre
a natureza da linguagem apresentadas na resposta à Questão
1 já forneceram o essencial para esclarecer o presente problema.
Igualmente, as afirmações implícitas nas próprias
interrogações do final da questão quase que
me dispensam de respondê-la. Todavia, gostaria de acrescentar
algo em sentido explícito.
De fato, propostas de revisão do vocabulário técnico
do Espiritismo são bastante comuns hoje, especialmente por
parte de pessoas com alguma familiaridade com as disciplinas acadêmicas.
Os termos mencionados como exemplo parecem, em particular, causar
certo incômodo, sendo freqüentemente substituídos
por palavras como 'energia' e 'paranormalidade', 'sensibilidade',
etc. Imagina-se estar assim conferindo maior cientificidade ao Espiritismo,
livrando-o de noções "ultrapassadas" do
século XIX.
Ora, o mais elementar senso filosófico mostra que não
é no vocabulário que assenta o caráter científico
ou não de uma disciplina. As palavras são, como já
foi lembrado, meros símbolos para a expressão de conceitos;
se estes não encontrarem respaldo em uma teoria científica
coerente, abrangente e empiricamente adequada, de nada adiantará
modificá-las. Por outro lado, uma teoria científica
não será substancialmente alterada pela modificação
de seu vocabulário. Logo, qualquer alegação
de que o Espiritismo tem de passar por uma atualização
não pode limitar-se à substituição de
palavras, como ingenuamente se procura fazer. Essa alegação
só se poderia justificar a partir de uma análise profunda,
exaustiva e meticulosa da teoria espírita e de todos os fatos
de que trata, que revelasse racionalmente que ela não lhes
dá explicação adequada, ou contém falhas
de consistência lógica, propondo-se concretamente uma
outra teoria melhor que a possa substituir. No parágrafo
14, n. 8, de O Livro dos Médiuns Kardec resume as condições
para uma crítica sustentável do Espiritismo (e, aliás,
de qualquer outra ciência) que, por sua lucidez e atualidade,
merece ser aqui reproduzida:
O Espiritismo não pode considerar crítico sério
senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado
com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso;
que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que
haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não
nos romances da ciência; aquele a quem não se possa
opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que
já não tenha cogitado e cuja refutação
faça, não por mera negação, mas por
meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente,
que possa indicar, para os fatos averiguados, causa mais lógica
do que a que lhe aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda
está por aparecer.
Esse trecho serviu de mote para o meu artigo "A excelência
metodológica do Espiritismo", citado no início
da entrevista, no qual procuro mostrar, ainda que de forma breve
e simplificada, que as condições para uma revisão
do Espiritismo em nome da cientificidade até hoje não
foram satisfeitas. A teoria espírita kardequiana tem tudo
o que é essencial para sua classificação como
uma ciência genuína, à luz das concepções
atuais da filosofia da ciência. Não é naturalmente
o caso de repetir aqui o que expus nesse trabalho e em outros sobre
o mesmo tema. No entanto, parece-me importante particularizar um
pouco a análise com vistas aos exemplos dados na pergunta.
A palavra 'mediunidade' foi criada por Kardec para designar a faculdade
que certos indivíduos possuem de servir, em maior ou menor
grau e de modos diversos, de intermediários entre os Espíritos
e os homens. Essa noção recebeu precisão e
conteúdo cognitivo por sua inserção em uma
teoria completa dos fenômenos mediúnicos, exposta principalmente
no Livro dos Médiuns (ver o artigo "Estudo sobre a mediunidade").
Embora ela se encontre, como qualquer teoria, em contato periférico
com teorias de áreas contíguas, de dentro e de fora
do Espiritismo, possui bases de sustentação autônomas,
não tendo que sofrer alterações substanciais
ou terminológicas em virtude do que possa ocorrer nesses
domínios conexos.
As modificações que se têm proposto para o Espiritismo
geralmente limitam-se ao plano lingüístico, como se
se tivesse vergonha de escrever ou pronunciar as palavras 'médium'
e 'mediunidade', preferindo-se antes adornar o discurso com termos
rebuscados, provenientes de linhas de investigação
incipientes ou pseudo-científicas, como a metapsíquica,
a parapsicologia e diversas vertentes ligadas à psicologia
ou mesmo a doutrinas orientalistas.
É evidente que isso só contribui para aumentar as
dificuldades de compreensão e comunicação ou,
o que é pior, para dispersar as pesquisas relativamente ao
núcleo teórico paradigmático da ciência
espírita, com graves repercussões para o seu desenvolvimento.
Constitui fato reconhecido entre
os filósofos da ciência contemporâneos que as
substituições de conceitos e teorias numa ciência
somente se justificam pela degeneração global do programa
de pesquisa no qual se inserem, juntamente com o fornecimento efetivo
de um programa alternativo que o suplante em coerência, abrangência,
precisão e fertilidade heurística. Ora, não
padece dúvida para qualquer estudioso isento que nada disso
sequer esboçou-se no caso do Espiritismo.
Considerações semelhantes aplicam-se à palavra
'fluido'. É certo que ao cunhar a expressão 'fluidos
espirituais' para denotar certos elementos materiais "sutis"
que tomam parte em processos diversos examinados pelo Espiritismo,
como a ação dos Espíritos sobre a matéria
ordinária (mediunidade, curas, passes, etc.), ou a constituição
dos corpos e da ambiência dos Espíritos (perispírito,
objetos do mundo espiritual, etc.), Kardec procurou analogias, ainda
que tênues, com certos elementos que, segundo as melhores
teorias físicas da época, participariam dos fenômenos
elétricos, magnéticos ou térmicos, os chamados
fluidos elétrico e magnético, e o calórico,
igualmente invisíveis, sutis, imponderáveis.
Ora, como não houve mais do que analogia e apropriação
de um símbolo lingüístico para construir uma
expressão nova - 'fluidos espirituais', que em geral se simplificava
para 'fluidos', dentro do contexto espírita - , não
se segue que a teoria espírita tenha de ser modificada terminológica
ou substancialmente na caracterização dos referidos
processos porque as teorias físicas que sugeriram as analogias
tenham sido alteradas ou substituídas no curso evolutivo
da física.
Um historiador da ciência bem informado seguramente poderá
encontrar diversas situações semelhantes no âmbito
das ciências acadêmicas.
Reportemo-nos de passagem ao que
aconteceu na química quando as teorias físicas sobre
a estrutura da matéria se alteraram na década de 1920,
com o desenvolvimento e aceitação da mecânica
quântica. Embora os químicos tenham levado em conta
a nova teoria física, dada a proximidade e as interseções
entre as áreas, tendo-se mesmo criado ramos e técnicas
de cálculo novos na química, as concepções
e métodos referentes às ligações químicas,
estruturas moleculares, etc. continuaram mais ou menos como eram,
em um amplo espectro de investigações teóricas
e experimentais.
Voltando ao caso do Espiritismo, salienta-se bem na pergunta que
"ele constitui uma ciência independente, dedicada ao
estudo de fenômenos que escapam ao escopo das ciências
clássicas", tendo "a liberdade de definir seus
próprios termos"; e, poderia acrescentar, seus conceitos
e teorias. Modificações nesses pontos só se
legitimariam, repito, na medida em que análises rigorosas
internas ao programa científico espírita indicassem
sua necessidade.
Ainda com relação à noção de
fluido, deve-se notar que ela não é abominada na física,
como parecem sugerir os reformistas. Em primeiro lugar, cumpre notar
que todos os líquidos e gases são fluidos, e seu estudo
é feito em diversas áreas da ciência, como a
hidrodinâmica.
Depois, quanto à eletricidade,
magnetismo e termodinâmica, as teorias atuais prescindem dessa
noção no nível operacional, tendo assumido
feições preponderantemente matemáticas e preditivas.
Quando se desce à análise de fundamentos - e raros
cientistas dedicam-se a isso atualmente - percebe-se que, à
semelhança das demais teorias da física, estão
envoltas em problemas conceituais graves. Não é nada
claro, por exemplo, o que seja um campo elétrico ou magnético,
não do ponto de vista de sua caracterização
matemática, é claro, mas de sua representação
intuitiva, de sua essência, do modo pelo qual surge, se propaga
e causa certos fenômenos. Lembremo-nos, incidentalmente, que
os próprios pais da teoria eletromagnética, como Faraday
e Maxwell, jamais dispensaram o conceito de fluido quando se tratava
de explicar
- e não simplesmente calcular - os fenômenos.
Dir-se-á talvez que Einstein baniu esse conceito da ciência
ao criar a teoria da relatividade restrita em 1905. Embora essa
afirmação se tenha tornado comum em certos círculos,
entre os especialistas em fundamentos não há consenso
algum sobre o ponto, não obstante seja claro que o chamado
"éter eletromagnético" regido por leis mecânicas
não compareça na aludida teoria. Mas essa não
é a única teoria da ciência, nem tampouco está
isenta de dificuldades conceituais e teóricas diversas. Evidentemente,
este não é o lugar para adentrar esse tópico
complexo. Fica, porém, uma advertência aos espíritas
de boa vontade para que não se deixem influenciar facilmente
por tais assertivas, antes que façam estudos profissionais,
que levem em conta, por exemplo, a teoria da relatividade geral
e todas as perplexidades que envolvem as teorias do espaço-tempo
e da cosmologia contemporâneas.
Apenas para concluir, vale mencionar que virou moda nos meios espíritas
e semi-espíritas a substituição da palavra
'fluido' por 'energia', sempre no pressuposto de que é por
aí que vai a ciência.
Ora, assim como as noções
de espaço, tempo, força, massa, carga elétrica,
campo, etc., a noção de energia é objeto de
inúmeras dificuldades conceituais, não se ganhando
nada em clareza, precisão e cientificidade com a sua utilização,
muito pelo contrário. Ademais, esse uso apresenta o inconveniente
de se dar numa área distante da área de sua criação
original, a física, representando uma enxertia no programa
científico espírita, fonte certa de confusões.
A respeito da utilização das noções
das palavras 'fluido', 'energia' e 'magnetismo' no Espiritismo,
recomendo a leitura do artigos do prof. Aécio P.
Chagas, "Polissemias no Espiritismo"
e "A ciência confirma o Espiritismo?",
indicados no início. Outra análise profissional do
emprego impróprio de noções científicas,
em particular da noção de energia, no Espiritismo
é feita no artigo "Algumas considerações
oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência",
de Ademir L. Xavier Jr., que também consta
da lista de referências especiais que dei no início.
Questão 3:
a) Dentro dos conceitos atuais da ciência e da filosofia,
como poderíamos classificar o Espiritismo?
O que lhe parece a clássica apresentação do
Espiritismo como uma doutrina de conseqüências cientificas,
filosóficas e religiosas?
b) Considerando esta forma de apresentar a doutrina, segundo seus
aspectos básicos, qual seria a diferença entre dizer-se
"conseqüências religiosas" e "conseqüências
morais"?
c) No GEAE tem-se discutido muito a aplicação da designação
de "Religião" para o Espiritismo, aparentemente
não há divergências quanto à classificação
de "Ciência" ou "Filosofia". No seu ponto
de vista, como professor dedicado ao estudo da Filosofia e da Ciência,
o que caracteriza uma "Religião", ou seja, quais
são os limites entre "Ciência", "Filosofia",
"Moral" e "Religião" - onde uma termina
e começa a outra? O Espiritismo, dentro dessa classificação,
é uma "Religião"?
Resposta:
A perspectiva para a compreensão do Espiritismo apontada
no item (a) parece-me correta, desde que se mude um pouco a forma
de expressão.
Dizer que ele é uma doutrina
"de conseqüências" científicas, filosóficas
e morais implica considerá-lo como uma quarta coisa, da qual
decorreriam essas conseqüências. Na verdade, poderíamos
afirmar que ele constitui uma ciência associada a uma filosofia
e a um sistema moral, ou, mudando a ênfase, uma filosofia
com bases científicas e implicações morais.
Quanto aos itens (b) e (c), cumpre lembrar inicialmente que a moral
(ou ética) é uma das áreas da filosofia, investigada
com atenção por filósofos de todas as épocas,
desde a Grécia Antiga até nossos dias.
De modo muito simplificado, poderíamos
defini-la como o estudo do bem e do mal. Seu problema fundamental
é o estabelecimento de critérios pelos quais se possam
distinguir as ações em boas e más, certas e
erradas, ou, sob outro ângulo, avaliar criticamente os critérios
propostos para tal fim pelas diferentes religiões, ideologias,
sistemas políticos, etc.
Nunca houve uma sociedade humana civilizada totalmente destituída
de códigos morais que estabeleçam limites para as
ações dos indivíduos.
Nos primórdios da civilização
tais códigos usualmente baseavam-se nas concepções
religiosas vigentes, a seu turno amplamente dependentes do ensino
de indivíduos considerados especiais, tais como profetas,
pitonisas, gurus, etc. Tais pessoas muitas vezes alegavam dispor
de meios incomuns, sobrenaturais, de comunicação com
a própria Divindade ou divindades; as suas doutrinas eram,
pois, tidas como "revelações".
Especialmente a partir do Renascimento (séculos XV e XVI,
digamos), a autoridade moral das religiões estabelecidas
em tais bases começou a ser mais e mais questionada. O movimento
intelectual de valorização das faculdades cognitivas
naturais - a razão e a observação - encontrou
terreno preparado pelas fragilidades teóricas do revelacionismo
religioso que, ademais, havia tantas vezes conivido, legitimado
ou participado diretamente de ações pessoais e institucionais
em franco desacordo com um certo sentido ético natural do
ser humano.
Sob a influência vigorosa de grandes filósofos do período
moderno, entre os quais cumpre destacar o inglês John Locke
(1632-1704), as legislações civis dos povos mais esclarecidos
foram se dissociando dos sistemas religiosos, quaisquer que fossem.
Pontos altos desse processo foram, por exemplo, as revoluções
inglesa (1688) e francesa (1789), e a assinatura da Constituição
Americana (1789). Em todos esses episódios, os códigos
de direitos e deveres dos cidadãos resultaram de acordos
sociais tácitos ou explícitos. Os filósofos
acadêmicos modernos desenvolveram seus estudos éticos
sob perspectivas diversas e nem sempre compatíveis umas com
as outras, mas que em geral excluem consciente e explicitamente
quaisquer fundamentos religiosos, teológicos ou místicos.
A moral sempre constituiu parte integrante das religiões.
No entanto, estas não se resumem à proposição
e defesa de sistemas morais, incluindo, de modo típico, cultos,
liturgias e rituais diversos, hierarquias de poder, princípios
teológicos abstratos sem relação direta com
a questão da conduta humana, etc. Foi essa bagagem-extra,
aliás, o que mais repulsa causou aos chamados "livres-pensadores",
responsáveis pela renovação da filosofia e
da ciência a partir do Renascimento, tendo conduzido, por
um processo compreensível de exacerbação, ao
ateísmo e ao materialismo, em graus sem precedentes na história
da humanidade.
Perdidas as bases religiosas tradicionais, a ética
teve dificuldades para estabelecer princípios de conduta
objetivos. Nasceu daí uma vertente bastante visível
na sociedade hodierna, que é o chamado "relativismo
ético", segundo o qual o que é certo
ou errado, bom ou ruim, depende da pessoa, do grupo social, da época,
etc. De forma oportunista, intelectuais ou pseudo-intelectuais têm
explorado esse canal para tentar legitimar os mais aberrantes comportamentos
individuais ou grupais, contribuindo assim decisivamente para a
degeneração das estruturas psicológicas e sociais.
No campo da filosofia acadêmica, existem
propostas éticas não-religiosas que procuram refutar
o relativismo, dividindo-se em duas grandes classes: os sistemas
éticos racionalistas ou aprioristas, como o de Immanuel Kant
(1724-1804), e os sistemas utilitaristas, desenvolvidos mais amplamente
por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873). Pode-se
afirmar com razoável segurança que o efeito prático
das abordagens éticas do primeiro tipo sobre as sociedades
contemporâneas é virtualmente nulo, por razões
que não vem ao caso examinar aqui. Quanto à segunda
proposta, embora a palavra 'utilitarismo' tenha impropriamente adquirido
uma conotação negativa fora dos círculos filosóficos,
é inegável que repercutiu de forma profunda no estabelecimento
dos melhores sistemas sociais existentes, quer do ponto de vista
material, quer dos direitos humanos e do fomento às artes,
ciências e filosofia. Mesmo nessas sociedades, porém,
assiste-se hoje à crescente desvalorização
das avaliações a longo prazo das ações
humanas, com o esquecimento dos princípios filosóficos
seguros que nortearam os seus fundadores, abrindo-se largos espaços
para o referido relativismo moral.
Quando devidamente compreendido, o Espiritismo traz contribuições
inestimáveis a todo esse panorama da ética, tão
imperfeitamente esboçado aqui. Refinando e estendendo o conhecimento
acerca do ser humano, ele permite a elaboração de
uma ética objetiva e clara, explorando, com adaptações,
a vertente iniciada por Bentham e Mill.
Tratei desse assunto nos artigos
"Os fundamentos da ética espírita"
e "A excelência metodológica do Espiritismo"
(seção 5), cujas referências foram dadas no
início da entrevista, devendo ser consultados para o desenvolvimento
e conclusão desta resposta.
Em diversas de suas obras, Kardec deu grande importância ao
estabelecimento da moral espírita, abordando o assunto em
profundidade. Mostrou que com o conhecimento científico espírita
a moral deixa de ser uma questão de especulações
abstratas ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada
ao estudo das conseqüências das ações humanas
em conexão com a busca da felicidade, objetivo comum de todos
os seres humanos. Ressaltou ainda que o corpo de princípios
morais obtidos por essa via racional-experimental coincide com aquele
proposto por Jesus. Assim, conforme registrou no parágrafo
56 do primeiro capítulo de A Gênese, o Espiritismo
"[dá] por sanção à doutrina cristã
as próprias leis da Natureza".
Ora, na medida em que fornece ao homem conhecimento seguro das regras
de conduta capazes de harmonizá-lo consigo mesmo e com os
demais seres, o Espiritismo torna-se "o mais potente auxiliar
da religião", conforme nota Kardec nos lúcidos
comentários adidos às questões 147 e 148 de
O Livro dos Espíritos. A religião aqui aludida não
se confunde, evidentemente, com as doutrinas religiosas tradicionais,
com todo o seu conjunto de dogmas e práticas exteriores,
sendo antes a religião no sentido próprio do termo,
a re-ligação da criatura ao Criador.
A velha questão de se o Espiritismo é ou não
uma religião não admite, pois, resposta unívoca,
dada a duplicidade semântica do termo 'religião'. Esse
ponto foi magnificamente estudado e, para o bom entendedor, esgotado,
no texto de Kardec intitulado "Le Spiritisme est-il une religion?",
que apareceu na Revue Spirite de 1868. (Esse artigo foi transcrito
na coletânea L'Obsession, editada em Farciennes, Bélgica,
pela Éditions de l'Union Spirite, 1950, pp. 279-92; uma tradução
confiável para o vernáculo, de Ismael Gomes Braga,
pode ser encontrada no Reformador de março de 1976.) Para
encerrar, vejamos estes parágrafos do famoso artigo:
[...] o Espiritismo é, assim, uma religião?
Sim, sem dúvida, senhores:
No sentido filosófico o Espiritismo
é uma religião, e disso nos honramos, pois que é
a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão
de pensamentos não em uma simples convenção,
mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis
da Natureza.
Por que então declaramos que o Espiritismo não era
uma religião? Pela razão de que há apenas uma
palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, segundo
a opinião geral, o termo religião é inseparável
da noção de culto, evocando unicamente uma idéia
de forma, com o que o Espiritismo não guarda nenhuma relação.
Se se tivesse proclamado uma religião, o público nele
não veria senão uma nova edição, ou
uma variante, se quisermos, dos princípios absolutos em matéria
de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias,
cerimônias e privilégios; não o distinguiria
das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais se
está freqüentemente bem instruído.
Não apresentando nenhuma das características de uma
religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo
não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre
cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque
ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
Considerações preliminares às respostas
das Questões 4 a 7, sobre a ciência espírita
e temas correlacionados (S. S. Chibeni):
Essas questões finais são relevantes, dada a autoridade
de que a ciência desfruta hoje em dia. É fácil
constatar que esse fato é freqüentemente explorado para
induzir à aceitação de determinadas teses,
processos, produtos, sistemas políticos, etc. Há um
efeito quase que intimidador associado à rotulação
de algo como 'científico'.
Bens de consumo variados, desde
cremes dentais até sofisticados aparelhos eletrodomésticos
são ditos terem sido elaborados por processos científicos,
ou submetidos a testes científicos. Geralmente despreparadas
para avaliar por si próprias se, em cada caso, a qualificação
é ou não pertinente, as pessoas tornam-se vítimas
de manipulações diversas.
Mesmo no plano das idéias e teorias - e isso é o que
mais de perto nos interessa aqui -, a demanda por cientificidade
é notória. Diversas disciplinas mais recentes na história
do pensamento, ou menos seguras de seus fundamentos e métodos,
procuram de alguma forma modelar-se pelas disciplinas mais estabelecidas
e bem sucedidas, como a física, a química e a biologia,
inquestionavelmente consideradas científicas. Em nome desse
processo de modelagem, porém, têm-se produzido verdadeiras
aberrações científicas, que retardam o desenvolvimento
das disciplinas nascentes ou em vias de consolidação.
Embora a proposta de aprender-se algo acerca da natureza da ciência,
ou do chamado "método científico", pela
inspeção das disciplinas paradigmaticamente científicas
seja adequada e mesmo indispensável, a falta de preparo filosófico
tem amiúde levado ao seu fracasso parcial ou total.
Um elemento central na análise da ciência é
a distinção entre teoria, método e objeto de
estudo. As diversas ciências distinguem-se, em primeira instância,
por seus objetos de estudo, os conjuntos de fenômenos que
investigam. Fenômenos mecânicos, elétricos, magnéticos
e nucleares, por exemplo, são do escopo da física;
a formação e dissociação de moléculas
constitui objeto de estudo da química; a vida, em muitas
de suas expressões, é examinada pela biologia.
Existem, naturalmente, pontos de
contato, interseções e hibridações entre
as ciências, mas isso não invalida a distinção
fundamental apontada.
Ora, dada a diversidade de objetos de estudo, haverá diferenças
expressivas nos métodos e características teóricas
das várias ciências. A identificação
de elementos comuns entre elas é tarefa mais difícil
do que à primeira vista parece, constituindo um tópico
dos mais importantes da área da filosofia denominada filosofia
da ciência.
Em alguns dos artigos mencionados
no início da entrevista, procurei apresentar alguns traços
gerais dessa disciplina, em conexão com o exame do aspecto
científico do Espiritismo. Uma tese central ali defendida
é que o Espiritismo, tal como estruturado por Allan Kardec,
exibe todas as características de uma genuína ciência,
à luz da filosofia da ciência contemporânea.
A ciência espírita têm por objeto de estudo o
elemento espiritual do ser humano, que se manifesta em múltiplos
fenômenos psicológicos, sociológicos, anímicos
e mediúnicos, sendo estes últimos os que desencadearam
as pesquisas iniciais e permitiram o estabelecimento das leis fundamentais
da teoria.
Naqueles trabalhos argumento, ademais, que o Espiritismo constitui
a única abordagem científica disponível para
essa gama de fenômenos. As propostas alternativas surgidas
após ele invariavelmente incorreram nas aludidas distorções
de concepção, por falta, entre outras coisas importantes,
de uma adequada percepção das diferenças de
objetos de estudo relativamente às ciências exatas.
Possuindo conhecimentos sólidos das ciências e da filosofia,
Kardec reconheceu-as prontamente, apontando-as em diversas de suas
obras, como por exemplo no item 7 da Introdução de
O Livro dos Espíritos e ao longo das primeiras partes de
O que é o Espiritismo e O Livro dos Médiuns. Estruturou
então a teoria espírita em conformidade com as peculiaridades
dos fenômenos de que trata, conferindo-lhe, ademais, consistência
lógica, simplicidade, poder explicativo, abrangência,
coerência e integração harmônica com ciências
limítrofes, atributos igualmente necessários para
qualquer disciplina que queira fazer jus ao título de 'científica'.
Feitas essas observações, posso adentrar agora mais
diretamente os tópicos específicos das perguntas formuladas.
Questão 4:
Costuma-se dizer que a "Ciência" aprova
ou rejeita determinado ponto.
O que podemos entender por isso?
Existe realmente uma "posição oficial" da
ciência? Nesse caso quais seriam os órgãos ou
pessoas que poderiam ter tal prerrogativa, de determinar a posição
oficial da ciência? Nos parece que pela época de Kardec
essa frase normalmente se referia as grandes academias e aos órgãos
oficiais dos estados europeus, há hoje algum equivalente?
Resposta:
Esses problemas já foram tratados de modo seguro e esclarecedor
em dois artigos do Prof. Aécio P. Chagas, "O
que é a Ciência?" e "A Ciência confirma
o Espiritismo?", incluídos na lista de referências
bibliográficas especiais do início da entrevista.
Não me cabe aqui reproduzi-los. Relembrarei alguns dos tópicos
principais de sua análise e estenderei um pouco a discussão
para responder de forma explícita o que se pergunta aqui.
Uma distinção importante destacada nos referidos trabalhos
é aquela entre "ciência-conhecimento",
"ciência-atividade" e "ciência-comunidade".
Quando se afirma que a ciência aprova isso ou aquilo, pode-se
estar querendo dizer duas coisas: Ou que a coisa faz parte, ou pode
ser deduzida, do corpo teórico paradigmático de uma
das ciências maduras (física, química e biologia);
ou, em sentido secundário, que a comunidade científica
tem uma opinião mais ou menos geral a seu respeito, embora
ela ainda não faça parte de nenhuma teoria bem estabelecida.
A idéia de uma "posição oficial"
da ciência só é razoável se entendida
com referência às teorias que, à época,
integram os paradigmas das ciências maduras. Felizmente, não
existe na ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões,
partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. Faz
parte da própria natureza da ciência contemporânea
a pulverização do poder de avaliação
em um sem-número de instâncias, entre as quais encontram-se
as academias, departamentos universitários e institutos de
pesquisa, agências de fomento e, principalmente, os periódicos
especializados. Os profissionais acadêmicos não ignoram
que esses jornais e revistas canalizam hoje o grosso da produção
científica, possuindo complexo sistema de filtragem que em
inglês se chama de "double-blind refereeing": os
trabalhos submetidos para publicação são enviados
anonimamente a vários membros conceituados da própria
comunidade, científica que os examinam criticamente e anonimamente.
Teses discrepantes dos paradigmas que não sejam maciçamente
apoiadas por evidências experimentais e argumentos racionais
são barradas por esse sistema. Se quisermos, podemos dizer
que conflitam com a "posição oficial", mas
apenas nesse sentido específico. Não estou afirmando
que o sistema seja infalível, mas ao lado de procedimentos
semelhantes de rigor na preparação de profissionais,
contratação, etc., asseguram o delineamento das teorias,
técnicas e processos da ciência, possibilitando o seu
progresso.
No tempo de Kardec as publicações periódicas
eram em número bem menor e não haviam ainda assumido
o papel central que desempenham hoje; o conhecimento científico
era veiculado principalmente em livros e memórias, publicados
sob iniciativa individual ou das academias. Estas últimas
ocupavam, conforme se sugere na pergunta, um papel muito importante;
as instâncias avaliatórias da ciência eram, pois,
mais centralizadas. Não raro isso deu margem a abusos e decisões
erradas, como aliás observou Kardec várias vezes,
ao discutir o caráter falível das corporações
científicas. Hoje abusos e erros também ocorrem, e
em bom número, porém são geralmente detectados
mais facilmente pela enorme e integrada malha da comunidade científica.
Questão 5:
Pela época do surgimento do Espiritismo, alguém que
se dedicasse à pesquisa dos fenômenos mediúnicos,
e não se inclinasse a considera-los como fantasias ou fraudes,
se arriscava ao descrédito nos meios científicos e
acadêmicos. Houve alguma mudança nessa postura? Dentro
dos conceitos atuais, ainda existe o antagonismo entre ciência
e o espiritualismo, ela é necessariamente materialista?
Resposta:
Existe, como está implícito na resposta precedente,
um certo grau de conservadorismo na "ciência-comunidade",
e as análises filosóficas contemporâneas reconhecem
aí um requisito importante de qualquer ciência madura.
A compreensão desse ponto paradoxal requer estudos especializados.
Em alguns de meus artigos sobre a ciência espírita
procurei indicar o papel daquilo que Imre Lakatos chamou de "heurística
negativa" de uma ciência. Trata-se, de forma simplificada,
da decisão metodológica explícita ou tácita
dos membros de uma comunidade científica de preservar, tanto
quanto possível, o núcleo de leis fundamentais de
seu programa científico de pesquisa. Esse filósofo
da ciência argumentou convincentemente que sem essa política
conservadora o desenvolvimento científico ficaria inviabilizado.
É somente quando condições excepcionais se
reúnem, envolvendo o fracasso sistemático do programa
de pesquisa em resolver problemas teóricos e de ajuste empírico,
que o núcleo do programa é revisto ou rejeitado.
Na atividade normal da ciência
os ajustes e desenvolvimentos teóricos se dão em partes
menos centrais da malha teórica, o denominado "cinturão
protetor" de leis auxiliares.
Menciono isso para ressaltar que a relutância da comunidade
científica em aceitar uma nova teoria sobre o ser humano,
como é o caso do Espiritismo, é natural e esperada.
A isso cumpre acrescentar o fato de o Espiritismo tratar de uma
ordem de coisas que escapam ao domínio das ciências
ordinárias, cujo objeto de estudo são os fenômenos
e leis pertinentes à matéria. No referido parágrafo
7 da Introdução de O Livro dos Espíritos Kardec
discorre lucidamente sobre o assunto, de uma perspectiva filosófica
bem avançada em relação à sua época,
concluindo seguramente que "o Espiritismo não é
da alçada da ciência", isto é, das ciências
acadêmicas. Retoma essa análise de forma mais extensa
em O que é o Espiritismo, onde encontramos, por exemplo,
este interessante raciocínio no capítulo I, segundo
diálogo, seção "Oposição
da ciência":
As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria,
que se pode, à vontade, manipular; os fenômenos que
ela produz têm por agentes forças materiais.
Os do Espiritismo têm, como agentes inteligências que
possuem independência, livre-arbítrio e não
estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso eles escapam
aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos,
e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência
propriamente dita.
A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos
como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedida, como devia
ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe;
e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação,
juízo temerário que o tempo se encarrega de ir emendando
diariamente, como já fez com tantos outros [...].
As corporações científicas não
devem, nem jamais deverão, pronunciar-se nesta questão;
ela está tão fora dos limites do seu domínio
como a de decretar se Deus existe ou não; é, pois,
um erro tomá-las aqui por juiz.
No primeiro capítulo de A Gênese, parágrafo
16, Kardec salienta, a esse propósito, que estudando domínios
diferentes e complementares, o espírito e a matéria,
"o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente".
A autonomia do Espiritismo com relação às ciências
ordinárias parece-me suficientemente demonstrada (não
aqui, neste breve resumo, evidentemente, mas nos extensos estudos
feitos por Kardec e outros pensadores espíritas). Vejo com
preocupação a incompleta percepção desse
ponto por muitos espíritas em nossos dias, aqueles que pretendem,
como dizem, "trazer a ciência para o Espiritismo".
Não se dão conta, ou se esquecem, de que o Espiritismo
já constitui por si uma ciência independente e vigorosa,
e que, ademais, a peculiaridade de seu objeto de estudo torna fora
de propósito qualquer hibridação fundamental
com as ciências da matéria. Há, é claro,
áreas periféricas de contato, como por exemplo, o
estudo das enfermidades psicossomáticas, onde pode e deve
haver contribuições mútuas.
Não se deve confundir o que estou dizendo com as críticas
justificadas, já avançadas por Kardec, a pessoas que,
em nome da ciência ou não, julgam o Espiritismo sem
haver examinado atentamente todos os fatos de que trata, bem como
sua estrutura teórica. Isso é inadmissível
filosófica e cientificamente. Tal atitude infelizmente continua
sendo comum, inclusive nos meios acadêmicos. A especialização
que caracteriza a formação científica parece
mesmo favorecê-la, com também notou Kardec no referido
item de O Livro dos Espíritos:
Aquele que se fez especialista prende todas as suas idéias
à especialidade que adotou. Tirai-o daí e o vereis
sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: conseqüência
da fraqueza humana.
Na pergunta formulada alude-se também à questão
mais geral da posição da ciência acerca do espiritualismo.
Conforme em outras palavras ressaltou Aécio Chagas nos artigos
mencionados, não faz muito sentido discutir se as ciências
acadêmicas, enquanto conhecimento, são materialistas
ou não. Foram concebidas expressamente para descrever e explicar
exclusivamente os fenômenos materiais, não tendo nada
a dizer sobre a disputa materialismo versus espiritualismo, que
gira em torno da questão da existência de algo além
da matéria. Se se pergunta agora se a comunidade científica
acadêmica é materialista ou não, a questão
faz sentido, mas só admite resposta estatística, visto
que a convicção pessoal de cada um de seus integrantes
acerca desse problema filosófico não constitui critério
necessário ou suficiente para a sua admissão na profissão.
Parece certo, pelo menos, que uma parcela expressiva dos cientistas
atuais é materialista, mas isso talvez apenas reflita o padrão
geral de crença das sociedades nas quais mais prosperam as
ciências, como sugere o Prof. Chagas.
Seja como for, nós espíritas não devemos nos
inquietar com isso, como advertiu Kardec ainda no mesmo parágrafo
de O Livro dos Espíritos, de onde extrairei mais este trecho,
para concluir:
O Espiritismo é o resultado de uma convicção
pessoal, que os cientistas, como indivíduos, podem adquirir,
abstração feita de sua qualidade de cientistas
[...].
Quando as crenças espíritas se houverem difundido,
quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se
dará com o que tem acontecido com todas as idéias
novas que hão encontrado oposição: os cientistas
se renderão à evidência. Lá chegarão
individualmente, pela força das coisas. Até então
será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais,
para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não
lhes está nem nas atribuições, nem no programa.
Enquanto isso não se verifica,
os que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria,
se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes
subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu com a maior parte
das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.
Questão 6:
A transcomunicação instrumental,
o fenômeno de quase-morte e a terapia
de vidas passadas, que surgiram recentemente como novos
campos de estudos, são fenômenos que representam desafios
para as concepções cientificas vigentes e tem suscitado
bastante interesse na Europa e nos Estados Unidos. Dentro da filosofia
da ciência, qual seria a abordagem adequada a ser seguida
no seu estudo? Os Espíritas tem individualmente participado
do desenvolvimento dessas pesquisas, mas seria recomendável
um engajamento maior das instituições espíritas?
Haveria justificativa para algo
como um comitê patrocinado por uma federação
ou um conselho espírita?
Resposta:
A análise do estatuto científico das três áreas
de investigação mencionadas exigiria uma atenção
particularizada em cada caso, não cabendo no escopo desta
entrevista. De um modo geral, a abordagem científica
de qualquer classe de fenômenos requer o cumprimento de uma
série de condições. Mais uma vez,
não há espaço aqui para enumerá-las.
Poderia destacar, no entanto, que
o desenvolvimento de uma disciplina científica pressupõe
não apenas a observação rigorosa dos fatos,
mas principalmente a formulação de teorias logicamente
consistentes, abrangentes, coerentes, simples e integradas às
teorias estabelecidas de domínios conexos de fenômenos.
Insisto nesse ponto porque a falha metodológica mais comum
nas linhas de investigação que têm pretendido,
sem sucesso, suplantar o Espiritismo em nome da cientificidade é
exatamente a desatenção ao aspecto teórico.
Aliás, como já indiquei em alguns dos artigos mencionados,
isso parece ser uma herança indesejável das concepções
antigas de ciência, de cunho positivista.
Muitas coisas que se têm visto com relação
às aludidas abordagens parecem indicar que as falhas de concepção
científica que caracterizaram a metapsíquica e a parapsicologia
não foram definitivamente superadas. Não
quero, evidentemente, generalizar; mas que há um risco potencial
aqui, há. Seria sensato que os investigadores interessados
nesses fatos, ou alegados fatos, desenvolvessem seus estudos a partir
do fértil e seguro programa científico de pesquisa
espírita, pois que nunca se apontaram razões ponderáveis
para a sua substituição. Ao invés disso, avançam-se
insinuações explícitas ou implícitas
de que serão essas e outras linhas de pesquisa assemelhadas
que finalmente colocarão o estudo do espírito na rota
da ciência ...
Quanto ao engajamento de instituições espíritas,
com a constituição de comissões, não
me parece recomendável, não apenas em vista das reservas
expressas acima, mas também porque tal prática não
mais condiz com a ciência, devendo ser deixada para partidos
políticos, administradores e seitas hieraquizadas. Na
ciência, e portanto no Espiritismo, a regra do jogo é
o livre-exame, o intercâmbio de idéias, a sujeição
de todas as propostas à mais vigorosa crítica.
Que cada um, pois, investigue o que achar melhor, já que
todo fato tem uma certa importância para o nosso conhecimento
do mundo; previna-se, no entanto, de assumir certas teses filosóficas
sobre a cientificidade desse ou daquele método, dessa ou
daquela disciplina, sem os necessários estudos profissionais.
Questão 7:
Alguns partidários do Espiritismo "não-religioso"
ou "laico" argumentam que a ênfase religiosa tem
prejudicado os aspectos científicos da doutrina. Que a pesquisa
espírita tem sido relegada a segundo plano e praticamente
inexiste. O que caracterizaria uma pesquisa científica espírita?
Seria um ramo separado da ciência ou uma postura diferenciada
dentro dos ramos atuais? O que poderia ser feito para incentivar
o desenvolvimento dessa pesquisa?
Resposta:
Na perspectiva do Espiritismo, resumida na resposta à Questão
3, a genuína religião está na busca
e cultivo de princípios morais capazes de nos colocar em
harmonia com o plano da Criação, transformando-nos
gradualmente em seres felizes que espalham felicidade ao seu redor.
Assim entendida, a religião
integra-se naturalmente à ciência espírita,
pois que é esta que determina as conseqüências
globais das ações humanas a curto e longo prazos,
formando a base experimental sobre a qual a razão operará
para identificar os preceitos de conduta que nos aproximem da felicidade.
Ver, portanto, antagonismos ou tensões quaisquer entre a
religião e a ciência espíritas constitui evidência
de pouco estudo e pouca reflexão sobre a verdadeira índole
do Espiritismo.
Infelizmente, o despreparo e os atavismos de muitos indivíduos
que colaboram de boa vontade nas fileiras espíritas fazem
com que certas práticas pouco condizentes com a pureza doutrinária
se implantem em diversas instituições, e acabem mesmo
divulgadas em palestras, livros e periódicos ditos espíritas.
Quem compreende essa situação deve trabalhar para
modificá-la. Mas a via para isso é a do esclarecimento,
do estudo, do convencimento pela razão e pelo amor, jamais
os anátemas ou, o que é ainda pior, o repúdio
daquilo que se supõe ser o "aspecto religioso do Espiritismo".
É provável, aliás, que essa "rejeição
do bebê com a água do banho" tenha pesado muito
no declínio e virtual extinção do movimento
espírita em países europeus a partir, digamos, do
início do século.
Não se pode mutilar um corpo
doutrinário integrado, como o é o Espiritismo, sem
arcar com efeitos drásticos, seja qual for a área
em que o tenhamos atingido. Assim, num sentido oposto ao considerado
na pergunta, pode-se querer desprezar as bases científicas
do Espiritismo, e as conseqüências não seriam
melhores.
Quanto à pesquisa científica espírita, acredito
que sua natureza já tenha sido salientada nas respostas precedentes.
No artigo "A ciência espírita" abordo explicitamente
o tema, ainda que de forma breve, lembrando que constitui equívoco
imaginar que essa pesquisa deva dar-se nas mesmas instituições
e com os mesmos métodos e pressupostos teóricos que
os das ciências da matéria. O reconhecimento desse
ponto seria de suma importância hoje em dia, quando se nota
uma inclinação de muitos espíritas na direção
de linhas de pesquisa científica e filosoficamente primitivas
relativamente à do genuíno Espiritismo.
A afirmação de que não se têm realizado
pesquisas científicas espíritas parece resultar de
uma compreensão deficiente do que sejam a ciência e
o Espiritismo. Após as fundamentais realizações
de Allan Kardec, que instituíram o paradigma científico
espírita, outros investigadores encarnados e desencarnados
prosseguiram em sua extensão, não necessariamente
em laboratórios acadêmicos, porque não é
aí que os fenômenos relativos ao espírito podem
mais apropriadamente ser estudados, mas nos centros espíritas,
no recesso dos lares, no mundo espiritual, e onde quer que se possa
observar e refletir sobre a face espiritual do ser humano. Gosto
de dar como exemplos de pesquisadores espíritas André
Luiz, Philomeno de Miranda e Yvonne Pereira, dentre tantos
outros, que, num trabalho silencioso e fecundo, enriqueceram o acervo
de informações e reflexões sobre os fenômenos
anímicos e mediúnicos, as condições
da vida no plano espiritual, a lei de causa e efeito, etc. Quem
ler suas obras apenas superficialmente, ou com inadequado senso
científico, tenderá a ver nelas apenas romances, historietas
e narrações literárias, quando na realidade
seu objetivo primordial é bem outro.
O incentivo e incremento das pesquisas científicas espíritas
deve, pois, principiar com a identificação e o abandono
de abordagens incipientes ou pseudo-científicas, prosseguir
com a adesão às linhas de pesquisa paradigmáticas
da doutrina, e concluir com o estudo filosófico das conseqüências
da ciência espírita para a questão de nosso
acerto com as normas morais evangélicas, sem o que essa ciência
se tornará estéril.
Campinas, maio de 1998