Série: > Questões
acerca da natureza do Espiritismo - V
Este artigo examina brevemente alguns aspectos das relações
entre a ciência espírita e as ciências acadêmicas,
destacando-se a esclarecida e firme postura de Allan Kardec a esse
respeito. [1]
Questão:
Na época do surgimento do Espiritismo alguém que se
dedicasse à pesquisa dos fenômenos mediúnicos
e não se inclinasse a considerá-los como fantasias
ou fraudes arriscava-se a cair em descrédito nos meios científicos
e acadêmicos. Houve alguma mudança nessa postura? Ainda
existe antagonismo entre ciência e espiritualismo? A ciência
é necessariamente materialista?
Resposta:
Existe, como está implícito nas considerações
feitas no artigo precedente, um certo grau de conservadorismo na
“ciência-comunidade”, e as análises filosóficas
contemporâneas reconhecem aí um requisito importante
de uma ciência madura. A compreensão desse ponto paradoxal
requer estudos especializados. Em alguns artigos sobre a ciência
espírita (ver referências bibliográficas) procurei
indicar o papel daquilo que o filósofo da ciência Imre
Lakatos chamou de “heurística negativa” de uma
ciência. Trata-se, de forma simplificada, da decisão
metodológica explícita ou tácita dos membros
de uma comunidade científica de preservar, tanto quanto possível,
o núcleo de leis fundamentais de seu programa científico
de pesquisa.
Lakatos argumentou convincentemente
que sem essa política conservadora moderada e racional o
desenvolvimento científico ficaria inviabilizado. É
somente quando condições excepcionais se reúnem,
envolvendo o fracasso sistemático do programa de pesquisa
em resolver problemas teóricos e de ajuste empírico
que o núcleo do programa é revisto ou rejeitado. Na
atividade normal da ciência os ajustes e desenvolvimentos
teóricos se dão em partes menos centrais da malha
teórica, que Lakatos denominou de “cinturão
protetor” de leis auxiliares.
Menciono isso para ressaltar que
a relutância da comunidade científica em aceitar uma
nova teoria sobre o ser humano, como é o caso do Espiritismo,
é natural e esperada. Cumpre notar que o Espiritismo trata
de coisas que escapam ao domínio das ciências ordinárias,
cujo objeto de estudo são os fenômenos e leis pertinentes
à matéria. Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse
ponto.
Um elemento central na análise
da ciência é a distinção entre teoria,
método e objeto de estudo. As diversas ciências
distinguem-se entre si, em primeira instância, por seus objetos
de estudo, os conjuntos de fenômenos que investigam. Fenômenos
mecânicos, elétricos, magnéticos e nucleares,
por exemplo, são do escopo da física; a formação
e dissociação de moléculas constitui objeto
de estudo da química; a vida, em muitas de suas expressões,
é examinada pela biologia. Existem, naturalmente, pontos
de contato, interseções e hibridações
entre as ciências, mas isso não dilui a distinção
fundamental entre elas.
Ora, dada a diversidade de objetos
de estudo, haverá diferenças expressivas nos métodos
e características teóricas das várias ciências.
A identificação de elementos comuns entre elas é
tarefa mais difícil do que à primeira vista parece,
constituindo um tópico dos mais importantes da área
da filosofia denominada filosofia da ciência.
Nos artigos mencionados procurei
apresentar alguns traços importantes dessa disciplina, em
conexão com o exame do aspecto científico do Espiritismo.
Uma tese central neles defendida é que o Espiritismo, tal
como estruturado por Allan Kardec, exibe todas as características
de uma genuína ciência, à luz da filosofia da
ciência contemporânea. Não se deve, porém,
confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência com a suposição
falsa de que ele é parte das ciências acadêmicas,
que tratam de fenômenos referentes à matéria.
No parágrafo 7 da Introdução
de O Livro dos Espíritos Kardec discorre lucidamente
sobre o assunto, de uma perspectiva filosófica bem avançada
para sua época, concluindo seguramente que “o Espiritismo
não é da alçada da ciência”, isto
é, das ciências acadêmicas. Retoma essa análise
de forma mais extensa em O que é o Espiritismo,
onde encontramos, por exemplo, este interessante raciocínio
no capítulo I, segundo diálogo, seção
“Oposição da ciência”:
As ciências vulgares repousam
sobre as propriedades da matéria, que se pode, à
vontade, manipular; os fenômenos que ela produz têm
por agentes forças materiais.
Os do Espiritismo têm como
agentes inteligências que possuem independência, livre-arbítrio
e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por isso
eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos
nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos
domínios da Ciência propriamente dita.
A Ciência enganou-se quando
quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha
voltaica; foi mal sucedida, como devia ser, porque agiu pressupondo
uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe,
concluiu pela negação, juízo temerário
que o tempo se encarrega de ir emendando diariamente, como já
fez com tantos outros [...].
As corporações
científicas não devem, nem jamais deverão,
pronunciar-se nesta questão; ela está tão
fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus
existe ou não; é, pois, um erro tomá-las
aqui por juiz.
No primeiro capítulo de
A Gênese, parágrafo 16, Kardec salienta, a esse propósito,
que estudando domínios diferentes e complementares “o
Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.
A autonomia do Espiritismo com relação às ciências
ordinárias parece estar suficientemente demonstrada (não
aqui, neste breve resumo, evidentemente, mas nos extensos estudos
feitos por Kardec e outros pensadores espíritas). Preocupa
a incompleta percepção desse ponto por muitos espíritas
em nossos dias, aqueles que pretendem, como dizem, “trazer
a ciência para o Espiritismo”. Não se dão
conta adequadamente de que o Espiritismo já constitui por
si uma ciência independente e vigorosa, e que, ademais, a
peculiaridade de seu objeto de estudo torna fora de propósito
qualquer hibridação fundamental com as ciências
da matéria. Há, é claro, áreas periféricas
de contato, como por exemplo, o estudo das enfermidades psicossomáticas,
onde pode e deve haver contribuições mútuas.
Não se deve confundir o que
estou dizendo com as justificadas críticas já avançadas
por Kardec a pessoas que, em nome da ciência ou não,
julgam o Espiritismo sem haver examinado atentamente todos os fatos
de que trata, bem como sua estrutura teórica. Isso é
inadmissível filosófica e cientificamente. Tal atitude
infelizmente continua sendo comum, inclusive nos meios acadêmicos.
A especialização que caracteriza a formação
científica parece mesmo favorecê-la, com também
notou Kardec no referido item de O Livro dos Espíritos:
Aquele que se fez especialista prende
todas as suas idéias à especialidade que adotou. Tirai-o
daí e o vereis sempre desarrazoar, por querer submeter tudo
ao mesmo cadinho: conseqüência da fraqueza humana.
Na pergunta formulada alude-se também
à questão mais geral da posição da ciência
acerca do espiritualismo. Conforme em outras palavras ressaltou
Aécio Chagas em alguns de seus artigos mencionados
na lista de referências, não faz muito sentido discutir
se as ciências acadêmicas, enquanto conhecimento, são
materialistas ou não. Foram concebidas expressamente para
descrever e explicar exclusivamente os fenômenos materiais,
não tendo nada a dizer sobre a disputa materialismo versus
espiritualismo, que gira em torno da questão da existência
de algo além da matéria.
Se se pergunta agora se a comunidade
científica acadêmica é materialista ou não,
a questão faz sentido, mas só admite resposta estatística,
visto que a convicção pessoal de cada um de seus integrantes
acerca desse problema filosófico não constitui critério
necessário ou suficiente para a sua admissão na profissão.
Parece certo que significativa parcela dos cientistas atuais é
materialista, mas isso talvez apenas reflita o padrão geral
de crença das sociedades nas quais mais prosperam as ciências,
como sugere o Prof. Chagas.
Seja como for, nós espíritas
não devemos nos inquietar com isso, como advertiu Kardec
ainda no mesmo parágrafo de O Livro dos Espíritos,
de onde extrairei mais este trecho, para concluir:
O Espiritismo é o resultado
de uma convicção pessoal, que os cientistas, como
indivíduos, podem adquirir, abstração feita
de sua qualidade de cientistas [...].
Quando as crenças espíritas
se houverem difundido, quando estiverem aceitas pelas massas humanas
[...], com elas se dará com o que tem acontecido com todas
as idéias novas que hão encontrado oposição:
os cientistas se renderão à evidência. Lá
chegarão, individualmente, pela força das coisas.
Até então será intempestivo desviá-los
de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar
de um assunto estranho, que não lhes está nem nas
atribuições, nem no programa. Enquanto isso não
se verifica, os que, sem assunto prévio e aprofundado da
matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem
não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu
com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à
Humanidade.
* * *
Referências:
CHAGAS, A. P. “O que é a Ciência?”,
Reformador, março de 1984, p. 80-83 e 93-95.
––. “O Espiritismo na Academia?”, Revista
Internacional de Espiritismo, fevereiro de 1994, p. 20-22 e março
de 1994, p. 41-43 .
––. “A ciência confirma o Espiritismo?”,
Reformador, julho de 1995, p. 208-11.
––. Ainda sobre as relações entre as ciências
e o Espiritismo. (Submetido para publicação.)
CHIBENI, S. S. “Espiritismo e ciência”, Reformador,
maio de 1984, p. 144-47 e 157-59.
––. “A excelência metodológica do
Espiritismo”, Reformador, novembro de 1988, p. 328-333, e
dezembro de 1988, p. 373-378.
––. “Ciência espírita”, Revista
Internacional de Espiritismo, março 1991, p. 45-52.
––. “O paradigma espírita”, Reformador,
junho de 1994, p. 176-80.
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Paris, Dervy-Livres, s.d. (O Livro
dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de
Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.)
––. Qu'est-ce que le Spiritisme. Paris, Dervy-Livres,
1975. (O que é o Espiritismo. s. trad. 25a ed., Rio de Janeiro,
Federação Espírita Brasileira, s.d.)
––. La Genèse, les Miracles et les Prédictions
selon le Spiritisme.Paris, La Diffusion Scientifique, s.d. (A Gênese,
os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo.
Trad. Guillon Ribeiro, 23a ed., Rio de Janeiro, Federação
Espírita Brasileira, s. d.)
Notas
[1]
O conteúdo do texto corresponde, com adaptações,
a parte de entrevista concedida por mim ao GEAE (Grupo de Estudos
Avançados de Espiritismo), pioneiro na divulgação
do Espiritismo pela Internet. A entrevista foi publicada no Boletim
n. 300 (edição extra), que circulou em 7/7/1998, podendo
ser encontrado no site http://www.geae.org. Gostaria de agradecer
ao GEAE a anuência para o aproveitamento desse material nesta
série de artigos. Sou especialmente grato aos seus membros
Ademir L. Xavier Jr., pela iniciativa da entrevista, e Carlos A.
Iglesia Bernardo, por haver reunido as relevantes e oportunas questões.
Artigo publicado em Reformador, novembro
de 1999, pp. 344-346.
Fonte: http://portalespirito.com/geeu/as-relacoes-da-ciencia-espirita.htm