Resumo:
Neste artigo, examino os conceitos de caridade e amor, dentro dos
referenciais cristão, espírita e filosófico.
Analiso, em especial, as vinculações do tema com a
clássica análise das paixões feita por René
Descartes no século XVII. Argumento que, à luz dessa
análise, a distinção fundamental entre amor
e caridade é que o primeiro enquadra-se na categoria filosófica
de paixão, enquanto que a segunda diz respeito ao domínio
das ações humanas.
Saliento a compatibilidade dessa proposta com o estudo das paixões
feito por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos, bem como
com sua análise geral das relações entre os
dois conceitos, empreendida em diversas de suas obras.
Artigo reproduzido do Jornal Mundo Espírita
de Março (2000).
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1. Introdução
Embora dicionários evidentemente não constituam fonte
de informações detalhadas sobre assuntos de certa
complexidade, podem por vezes ser úteis na indicação
preliminar do significado de alguns termos pertinentes ao assunto.
É assim que, no que diz respeito ao tema do presente artigo,
podemos consultar com proveito, por exemplo, o conhecido dicionário
de Aurélio Buarque de Holanda, lendo, no verbete caridade:
Caridade. [...]
S.f. 1. (Ética) No vocabulário
cristão, o amor que move a vontade à busca efetiva
do bem de outrem [...]. 2. Benevolência,
complacência, compaixão. 3. Beneficência,
benefício, esmola. [...]
Comentaremos alguns aspectos dessas definições ao
longo deste trabalho. Por enquanto, atenhamo-nos ao fato de que
o primeiro sentido do termo, pertencente ao domínio da ética,
é associado pelo dicionarista ao cristianismo. Caridade,
na primeira e mais fundamental acepção do termo, é,
pois, um conceito criado, ou pelo menos destacado, por Jesus e seus
discípulos.
Sendo assim, o passo seguinte mais natural na pesquisa do tema consiste
em examinar a ocorrência da palavra na Bíblia ou, mais
especificamente, no Novo Testamento. Quando ainda não existiam
textos digitalizados, tínhamos o costume de consultar uma
obra preparada por estudiosos protestantes chamada Chave Bíblica,
um útil índice de assuntos da Bíblia. Há
no mercado várias edições, de diferentes níveis
de detalhe. A que possuímos é uma edição
da Sociedade Bíblica do Brasil. Diz-se na página de
rosto que possui quase sete mil verbetes, e que se baseia na conhecida
tradução de João Ferreira de Almeida.
Qual não foi nossa surpresa ao procurarmos o verbete ‘caridade’
nessa obra e não o encontrarmos! Recorremos, então,
a uma versão eletrônica da Bíblia que está
disponível num site espírita brasileiro, na Internet.
Não tínhamos, é claro, esperança de
encontrar referências à caridade no Velho Testamento.
No Novo, porém, haveríamos de encontrar ao menos algumas
... Mas ali também nada achamos!
Todos sabem, no entanto, que algumas versões do Novo Testamento
trazem a palavra ‘caridade’. Veio-nos à mente,
por exemplo, a passagem da primeira epístola de Paulo aos
coríntios, cap. 13, na qual a caridade é definida
em termos belíssimos. (Essa passagem foi, aliás, transcrita
e comentada por Allan Kardec no cap. 15 de O Evangelho Segundo o
Espiritismo; voltaremos a ela mais adiante). Consultamos então
seis edições do Novo Testamento. Eis o resultado:
dentre as três cujas traduções são atribuídas
a João Ferreira de Almeida apenas em uma ocorre o termo ‘caridade’;
nas demais, está substituído por ‘amor’.
O mistério aumentou quando verificamos que duas das edições
discrepantes são editadas pelo mesmo editor, Os Gideões
Internacionais! Na edição de 1977 está ‘caridade’;
na edição de 1979, ‘amor’. Numa edição
católica está ‘caridade’. O mesmo ocorre
numa antiga edição publicada em Nova Iorque, em Português,
pela Sociedade Bíblica Americana, e numa edição
francesa recente da Bíblia de Jerusalém.
Ora, tudo isso pode parecer estranho. Certamente indica algo pelo
menos indesejável. Textos tão importantes para a Humanidade
não poderiam ser objeto de tal discrepância. Note-se
que ela não se deve tão-somente a dificuldades de
tradução, dadas as diferenças entre textos
atribuídos ao mesmo tradutor, e até do mesmo
editor.
Sem querer aprofundar um assunto complexo, a discrepância
em análise deriva ao menos parcialmente de uma grave divergência
teológica entre protestantes e católicos. Trata-se
da questão da chamada “salvação”.
Simplificando, os últimos tendem a considerar que a salvação
se alcança pelas obras, enquanto que para os primeiros ela
seria alcançada pela fé. Essa divergência remonta
aos primeiros tempos do protestantismo. Ambas as partes defendem
que suas posições se apóiam em passagens evangélicas.
A inspeção isenta das passagens, porém, evidencia
problemas de interpretação. Isso está claro,
por exemplo, nas passagens das epístolas de Paulo em que
se pretende respaldar a tese da salvação pela fé.
São textos bastante difíceis, obscuros mesmo. (Veja-se,
por exemplo, Rom. 3: 21-31, 5:1, Ef. 2: 8 e I Tess. 5: 9.) É,
sobretudo, o seu isolamento do contexto das epístolas que
favorece a interpretação protestante. Ademais, não
terá porventura o Apóstolo dos Gentios exemplificado
amplamente a caridade em suas ações? Ele era, aliás,
a antítese da fé contemplativa. Saía pelos
caminhos ásperos de seu tempo enfrentando dificuldades de
toda ordem para disseminar e consolidar a mensagem cristã,
auxiliando a todos por todos os meios ao seu alcance. Que expressão
maior da caridade do que esclarecer e educar para o bem? E no que
toca ao auxílio material, não foi Paulo quem organizou
a primeira campanha internacional de solidariedade, arrecadando
recursos para a Casa do Caminho de Jerusalém, conforme lemos
em Paulo e Estêvão, de Emmanuel?
Não dispomos nem de material nem de competência para
investigar a delicada questão das traduções
da Bíblia. Todavia, não podemos deixar de notar que
são justamente as edições a cargo de entidades
de linha protestante as que não costumam apresentar a palavra
‘caridade’. Para dirimir ou ao menos minorar as dúvidas,
parece sensato empreendermos não somente estudos lingüísticos,
mas também uma análise neutra da natureza geral da
mensagem cristã. Um dos traços mais importantes, senão
o mais importante, que distingue o cristianismo é justamente
a ênfase dada por seu criador à dimensão ativa
do amor, à caridade. Ele não se fechou em si, não
se retirou para nenhum mosteiro ou região especial, não
fundou nem favoreceu nenhum culto, nenhuma seita. Viveu em meio
aos homens – instruídos e ignorantes, orgulhosos e
humildes, pobres e ricos, pecadores e virtuosos –, ajudando-os
incessantemente com seus ensinos e reflexões, com seus recursos
curativos e mesmo com suas admoestações.
Voltando a Paulo, e assumindo que as traduções que
distinguem amor de caridade são as que mais se aproximam
do sentido original, podemos, em contraposição às
passagens indicadas e que serviram à interpretação
favorável à tese da salvação pela fé,
citar outras tantas que ressaltam as obras, como por exemplo o já
citado capítulo 13 da primeira carta aos coríntios;
o versículo 14 do capítulo 16 dessa mesma carta; a
primeira epístola aos tessalonicenses, capítulo 4,
versículo 9; e diversas outras. (Voltaremos a comentar a
última passagem mais adiante.)
Pedro, em sua primeira epístola (4: 8), vai mais longe, recomendando
não apenas a caridade, mas, numa eloqüente expressão,
a caridade ardente: “Mas, sobretudo, tende ardente
caridade uns para com os outros; porque a caridade cobre a multidão
de pecados”. Notemos, incidentalmente, que nessa passagem
o apóstolo acrescenta que a caridade nos redime de nossos
pecados, e portanto nos salva – salva de nossa própria
inferioridade ou indigência espiritual, não de nenhum
perigo externo. É ela que nos possibilita reparar os danos
que porventura causemos aos outros e, de um modo mais geral, à
harmonia do mundo. É ela que nos propicia recursos preciosos
para a nossa evolução espiritual.
2. Um pouco de filosofia
Existe uma distinção filosófica entre dois
conceitos que pode ser útil na análise da questão
do amor e da caridade. Trata-se da distinção entre
paixão e ação. Qualquer estudo do
tema deve, ainda hoje, fazer menção ao livro As
Paixões da Alma, de René Descartes, publicado
em 1649. Para os espíritas, outra referência indispensável
é a seção “Paixões” do último
capítulo da terceira parte de O
Livro dos Espíritos, intitulado “Da perfeição
moral”. Em trabalho anterior, publicado no Reformador
de abril de 1998, fizemos um exame do interessante assunto. Não
podendo, evidentemente, reproduzir aqui os detalhes desse texto,
recomendamos ao leitor que o procure ler, para uma compreensão
mais completa do que se vai seguir.
O artigo encontra-se disponível no
site do Grupo de Estudos Espíritas da Unicamp - http://portalespirito.com/geeu/as-paixoes.htm
De forma muito simplificada, lembraríamos apenas que o conceito
filosófico de paixão não deve ser confundido
com a noção hoje popular, associada a certos sentimentos
desgovernados, em geral envolvendo nosso relacionamento afetivo
com alguém ou com alguma coisa. Tanto Descartes como Kardec
deixam claro que paixão é qualquer tipo de experiência
que se faz sentir em nossa alma de forma passiva. (As palavras
‘paixão’ e ‘passividade’ têm
a mesma origem.) Paixões, pois, se contrapõem a ações.
Ações pressupõem a intervenção
da vontade; paixões são algo que ocorre em nós
involuntariamente, quando estamos diante de certos estímulos,
externos ou internos à própria alma. Assim, por exemplo,
as paixões que Descartes considera “básicas”
são o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a admiração
e o desejo; as outras resultariam de sua combinação
ou modificação.
Descartes procurou explicar a ocorrência das paixões
em termos de certos processos psico-fisiológicos complexos,
que não vem ao caso discutir aqui. É suficiente notar
que hoje em dia talvez possamos descrever esses processos como uma
espécie de automatismo. Vemos uma cena cruel e automaticamente
sentimos indignação. Ouvimos alguém
gemer e sentimos pena. Lemos uma notícia boa e ficamos
alegres. Pensamos na traição de um amigo
e nos entristecemos. Refletindo sobre esses exemplos, percebemos
que de fato os sentimentos descritos se apoderam de nós sem
que o desejemos e, além disso, sem que possamos imediatamente
alterá-los por nossa vontade. Descartes apontou e explicou
essa impossibilidade do controle direto das paixões.
Quando, por meio de uma análise racional, estimamos que uma
determinada paixão é prejudicial a nós ou a
outros, coloca-se a questão de como então podemos
domá-la. Uma medida que seguramente está ao nosso
alcance é impedir que a paixão repercuta em nossas
ações. Quando sentimos raiva, por exemplo, podemos
sempre nos abster de agir vingativamente. Mas o sentimento em si
permanece. O famoso filósofo francês indicou o que
pode ser feito mesmo nesse nível íntimo. Em síntese,
propôs que por uma série de artifícios podemos
indiretamente controlar a paixão que incomoda. Remetemos,
mais uma vez, o leitor ao referido artigo para o prosseguimento
desse vasto assunto. O que já vimos basta para podermos entender
um pouco melhor a distinção entre amor e caridade.
Pois bem: parece-nos claro que, não obstante intimamente
associados, os conceitos de amor e de caridade distinguem-se justamente
por serem, respectivamente, paixão e ação.
O amor é o sentimento; brota em nós espontaneamente.
A caridade é a mobilização de nossa vontade
por esse sentimento, para que algo façamos em benefício
de alguém ou de alguma coisa. Essa interpretação
está inteiramente de acordo com a definição
do dicionarista citada no início deste texto. “Caridade:
... o amor que move a vontade à busca efetiva do bem
de outrem ...”.
O amor muitas vezes é entendido como algo que pode esgotar-se
em si mesmo e não desencadear ações caritativas.
Seria o amor “contemplativo”, “meditativo”,
tão freqüentemente associado a certas abordagens religiosas,
especialmente as de origem oriental. Jesus propôs-nos algo
diferente: o amor-em-ação, a caridade. Embora a superação
do ódio e das mágoas seja algo fundamental em nossa
evolução, se nos restringirmos ao simples querer-bem
nosso sentimento estará incompleto. É justamente a
sua associação à prática do
bem que o completa e consolida. Nesse sentido é que a caridade
talvez seja o traço diferenciador mais importante da doutrina
cristã, conforme sugerimos na seção precedente.
Outro ponto importante que a análise filosófica esboçada
acima esclarece é que, como o amor é uma paixão
(no sentido filosófico do termo), não temos controle
direto sobre o seu surgimento. É inútil,
por exemplo, diante de um agressor simplesmente querer
amá-lo. A experiência própria confirma isso,
aliás. Talvez seja essa uma das razões pelas quais
a Humanidade tem demorado tanto para seguir as recomendações
seculares de seus líderes espirituais, unânimes em
pedir-nos que nos amemos uns aos outros.
Com a noção de caridade, Jesus trouxe um elemento
novo para resolvermos o problema da conquista do amor. Sendo uma
ação, a caridade está sempre ao nosso alcance
direto. Depende só de querermos. Se aprofundarmos esse tópico,
talvez consigamos situar a caridade dentro da noção
cartesiana de um processo indireto de controle de paixões.
Na ausência do amor, ou na presença de um amor incipiente,
ainda assim podemos ser caridosos, se reconhecermos racionalmente
que é isso que nos convém. A caridade acaba, depois,
desencadeando ou reavivando o amor. O nosso automatismo se redireciona.
Passamos a sentir amor, na medida em que fazemos o bem.
Recorrendo a uma comparação um tanto tosca, seria
como alguém que tem as mãos frias, que o mecanismo
fisiológico não consegue reaquecer, e que, percebendo
a inconveniência da situação, lança mão
de um “artifício”: aproxima as mãos do
fogo. Embora o calor assim gerado seja algo externo, ele age sobre
os vasos sangüíneos, dilatando-os. A circulação
se normaliza, e a partir daí as mãos seguem aquecidas
pela atividade do próprio corpo. A caridade inflama o amor.
Uma vez inflamado, o amor realimenta a própria caridade.
Ademais, a caridade é “contagiante”. Que poder
de educação e despertamento têm os exemplos
de amor ativo em favor do próximo! Reparemos como nas campanhas
públicas para socorrer vítimas de calamidades, por
exemplo, mesmo pessoas normalmente acomodadas em seu próprio
“canto” mobilizam-se, entram na luta, animam-se.
Nós aqui da Terra, que ainda temos o amor integral e universal
um tanto distante, precisamos não apenas dos incentivos daqueles
que estão à nossa frente na escala do amor, mas também
de esforços conscientes para fazer o bem. É um indispensável
período de transição para a caridade pura e
desinteressada. Na referida seção sobre as paixões,
em O Livro dos Espíritos, enfatiza-se a importância
dos esforços para que as más paixões
sejam controladas. Na seção “As virtudes e os
vícios”, que abre o mesmo capítulo, explica-se
que as virtudes são algo que conquistamos a partir de nossa
conscientização. E Emmanuel salienta, numa
interessante resposta dada à questão 254 de O
Consolador, que “a disciplina antecede a espontaneidade”.
Antes de passarmos à próxima seção,
queríamos, conforme prometemos, retomar um versículo
da primeira epístola de Paulo aos tessalonicenses, o versículo
9 do capítulo 4. Ele apresenta a peculiaridade de estar traduzido
praticamente igual em todas as edições citadas do
Novo Testamento, exceto duas, a mais antiga dos Gideões e
a edição católica. Significativamente, é
desse mesmo modo diferente que está no mote escolhido por
Emmanuel para o capítulo 138 do livro Fonte Viva. Eis o versículo:
Quanto, porém, à
caridade fraternal, não necessitais que vos escreva, visto
que vós mesmos estais instruídos por Deus que vos
ameis uns aos outros.
Nas demais edições
a palavra ‘caridade’ é substituída por
‘amor’. Sem ter como resolver a divergência em
bases puramente textuais, vejamos o que o contexto nos indica aqui,
com o auxílio da análise filosófica que esboçamos.
Paulo usava suas cartas para educar, aconselhar e alertar os irmãos
das comunidades cristãs nascentes. O mandamento maior do
amor já era conhecido, aliás antes mesmo do ensino
de Jesus. Ele é a essência da lei divina, independentemente
da época ou da religião. É nesse sentido que
Paulo diz que os cristãos da Tessalonica já estavam
“instruídos por Deus” acerca da necessidade de
se amarem. Traduzindo-se a quarta palavra como amor, o
versículo faz sentido, é claro. Já estando
instruídos para se amarem, Paulo não precisava recomendar-lhes
de novo para que se amassem.
Mas será que Paulo iria gastar papiro para escrever algo
tão trivial? Já se colocarmos caridade o
versículo passa a encerrar uma mensagem interessante e tipicamente
cristã. Recomendar a caridade para quem sabe que deve amar
seria em princípio dispensável porque a caridade
decorre do amor, é uma de suas conseqüências.
Paulo estaria, então, explicitando essa relação
de dependência. Seria um lembrete para que a dimensão
ativa do amor não fosse esquecida. O amor acerca
do qual Deus nos instruiu, por seus muitos emissários, não
pode ser o amor inativo. Devidamente compreendido e vivido, esse
amor deve manifestar-se na ajuda fraterna – a caridade.
Podemos, talvez, esquematizar as inter-relações entre
amor e caridade por meio do seguinte diagrama:
Quando integral, o amor implica a caridade (seta superior). Por
sua vez, a caridade desperta e reaviva o amor (seta inferior). Dada
sua dimensão voluntária, a caridade é a “porta
de entrada” desse “círculo virtuoso” (seta
larga).
3. A caridade em O Livro dos Espíritos.
Chama a atenção que no Livro dos Espíritos
a expressão ‘amor e caridade’ ocorra diversas
vezes. Kardec tinha estilo enxuto, só usava as palavras na
exata medida de sua necessidade (um exemplo a ser imitado, aliás!).
Depreende-se, pois, que caridade e amor eram por ele considerados
conceitos distintos, embora interligados. Isso está de acordo
com o que vimos na seção precedente.
A primeira ocorrência dessa conjunção se dá
logo nos Prolegômenos, no primeiro parágrafo da transcrição
da mensagem dos Espíritos acerca da natureza e objetivos
da obra e, de modo mais geral, do Espiritismo. Nesse parágrafo,
compara-se o Espiritismo a um edifício, cujas bases estavam
sendo lançadas com o Livro dos Espíritos,
edifício destinado a um dia “reunir todos os homens
num mesmo sentimento de amor e caridade”. Recebe, pois, lugar
de destaque entre os objetivos do Espiritismo a implantação
do amor e da caridade universais entre os homens.
Depois, a expressão ‘amor e caridade’ volta a
ser usada diversas vezes no capítulo 11 da terceira parte,
a começar de seu título: “Da lei de justiça,
de amor e de caridade”. Essa lei, diz a resposta à
questão 648, “é a mais importante, por ser a
que faculta ao homem adiantar-se mais na vida espiritual, visto
que resume todas as outras”. Nesse capítulo há
ainda uma seção denominada “Caridade e amor
do próximo”, que contém diversos esclarecimentos
sobre a noção de caridade, alguns dos quais serão
mencionados mais adiante.
Por fim, na eloqüente enumeração das qualidades
do homem de bem que se segue à resposta à questão
918 Kardec afirma, logo no início:
O verdadeiro homem de bem é
o que pratica a lei de justiça, amor e caridade, na sua
maior pureza. Se interrogar a própria consciência
sobre os atos que praticou, perguntará se não transgrediu
essa lei, se não fez o mal, se fez todo o bem que podia,
se ninguém tem motivos para dele se queixar, enfim se fez
aos outros o que desejara que lhe fizessem.
Possuído do sentimento de caridade e de amor ao próximo,
faz o bem pelo bem, sem contar com qualquer retribuição,
e sacrifica seus interesses à justiça.
Deixamos, porém, ao leitor
o prosseguimento da leitura desses lúcidos comentários
em seu próprio exemplar do Livro dos Espíritos.
Examinemos agora duas passagens em que a importância da caridade
é destacada por Allan Kardec. Comecemos pelo item 8 da Conclusão.
Nesse rico item Kardec compara a moral cristã à espírita,
salientando a sua identidade de conteúdo e as peculiaridades
de sua fundamentação. Mas esse é um outro assunto.
O que nos interessa é tão-somente a frase do segundo
parágrafo em que afirma que “o preceito capital”
da moral do Cristo é “o da caridade universal”.
Notemos o qualificativo: universal, ou seja, fazer o bem a todos,
indistintamente.
No capítulo “Da perfeição moral”,
a primeira questão (893) é sobre qual seria a mais
meritória das virtudes. Depois de ressaltar o valor das demais,
o Espírito acrescenta sem rebuços, no final da resposta:
“A mais meritória é a que assenta na mais desinteressada
caridade”. Segue-se então a referida série de
questões que elucidam o processo de gradual aquisição
dessa caridade desinteressada.
Vejamos agora, de forma breve, algo acerca do conteúdo da
seção “Caridade e amor do próximo”.
Ela abre com a famosa questão 886:
886. Qual o verdadeiro sentido
da palavra caridade, como a entendia Jesus?
“Benevolência para com todos, indulgência para
as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
Essa questão e as que a seguem
são bastante relevantes, visto ser comum que a palavra ‘caridade’
seja empregada para designar uma noção muito mais
restrita do que aquela pretendida por Jesus. Caridade é confundida
com a mera ajuda material ou mesmo com a esmola (como aliás,
registra o dicionário Aurélio no terceiro dos significados
do termo). Mesmo antes de formular algumas questões específicas
sobre a esmola, Kardec já ressalta, no segundo parágrafo
do comentário ao item 886:
A caridade, segundo Jesus, não
se restringe à esmola, abrange todas as relações
em que nos achamos com os nossos semelhantes, sejam eles nossos
inferiores, nossos iguais, ou nossos superiores.
Notemos bem: a caridade abrange
todas as nossas relações com os semelhantes, sejam
quem sejam e estejam na posição que estejam. É
por isso que a benevolência (desejar o bem), a indulgência
(compreender as falhas alheias) e o perdão são apontados
como parte essencial da caridade. Neste mundo de misérias
que criamos na Terra, o auxílio material é importante;
é indispensável, urgente mesmo. Não é
tudo, porém. E pode ser o mais fácil, especialmente
se os recursos sobejarem. Ceder de si, de seu orgulho, de sua vaidade,
de sua ambição, de sua teimosia, de seu ciúme,
a fim de que o bem geral se promova, isso exige renúncia.
Doar amor, compreensão, respeito, calor humano ... eis a
caridade integral preconizada por Jesus-Cristo.
Ninguém discorreu de forma tão sublime acerca da essência
da caridade quanto Paulo, no referido capítulo 13 da primeira
carta aos coríntios, que agora transcrevemos em parte (vv.
1 a 7 e 13):
Ainda que eu fale todas as línguas
dos homens e a língua dos próprios anjos, se eu
não tiver caridade, serei como o bronze que soa ou o címbalo
que retine.
Ainda que tenha o dom de profecia, que penetre
todos os mistérios, e tenha perfeita ciência de todas
as coisas; ainda que tenha toda a fé, até o ponto
de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada serei.
E mesmo que tenha distribuído os meus bens
para alimentar os pobres e entregado meu corpo para ser queimado,
se não tiver caridade, tudo isso de nada me servirá.
A caridade é paciente; é branda
e benfazeja; a caridade não é invejosa; não
é temerária, nem precipitada; não se enche
de orgulho.
Não é desdenhosa; não cuida
de seus interesses; não se agasta, nem se azeda com coisa
alguma; não suspeita mal.
Não se rejubila com a injustiça,
mas se rejubila com a verdade.
Tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo
sofre. [...]
Agora, estas três virtudes: a fé,
a esperança e a caridade permanecem; porém a maior
delas é a caridade.
Essa passagem é comentada por Kardec no item
7 do capítulo 15 do Evangelho Segundo o Espiritismo. Antes
de indicar o contexto em que aparece, vejamos as linhas gerais da
abordagem do tema caridade nessa importante obra.
4. A caridade em O Evangelho Segundo o
Espiritismo
Estamos agora diante de uma tarefa difícil. Boa parte dos
capítulos do Evangelho Segundo o Espiritismo tratam,
direta ou indiretamente, da caridade. Há, por exemplo, diversos
capítulos dedicados ao estudo de virtudes envolvidas na caridade,
como a humildade (cap. 7), a pureza de coração (cap.
8), a afabilidade e a paciência (cap. 9), a misericórdia
(cap. 10), a piedade filial (cap. 14), o desprendimento dos bens
terrenos (cap. 16), etc. Num plano mais geral, há os capítulos
sobre o amor, “Amar o próximo como a si mesmo”
(cap. 11) e “Amai os vossos inimigos” (cap. 12), que
contêm diversas reflexões sobre a prática do
amor, ou seja, sobre a caridade. Mas são sobretudo os capítulos
13 e 15 os que exploram mais a fundo a dimensão ativa do
amor. O primeiro deles, “Não saiba a vossa mão
esquerda o que dê a vossa mão direita”, salienta
o desinteresse que deve, idealmente, caracterizar todas as ações
caritativas. É nesse capítulo que também se
chama a atenção para a grande abrangência da
noção de caridade, que vai muito além da mera
ajuda material. Merecem referência especial nesse capítulo
as instruções dos Espíritos, sobre a caridade
material e a caridade moral, a beneficência, a piedade, os
órfãos, os benefícios pagos com a ingratidão
e, por fim, a beneficência exclusiva.
Na impossibilidade de comentarmos aqui todos esses tópicos,
preferimos centralizar a nossa análise no outro capítulo
sobre a caridade, o capítulo 15, “Fora da caridade
não há salvação”, pela relação
direta que apresenta com as seções precedentes deste
trabalho. Se o Evangelho Segundo o Espiritismo representa
um dos pontos altos de toda a obra kardequiana, este certamente
está entre seus capítulos de maior relevância.
Qualquer tentativa de resumi-lo certamente implicará distorções
e perdas. Qualquer acréscimo que se lhe queira fazer corre
o risco ser redundante. Dessa forma, não nos abalançaremos
aqui nem a uma coisa nem a outra, recomendando vivamente ao leitor
que o releia na íntegra, estudando e meditando cada uma de
suas frases. Procuraremos tão-somente indicar a extraordinária
concatenação dos tópicos, apontando sua inserção
no contexto das análises que fizemos aqui.
Esse foi um dos capítulos que menos alterações
sofreu da primeira edição, de 1864, intitulada Imitação
do Evangelho segundo o Espiritismo, para a terceira edição,
definitiva, de 1866. Com a exceção do acréscimo
de um pequeno parágrafo elucidativo no final do item 7 (na
numeração da terceira edição), os textos
foram mantidos na íntegra. Apenas as citações
do Novo Testamento, que na primeira edição se encontravam
agrupadas no início, foram didaticamente distribuídas
ao longo do capítulo, nos locais pertinentes. Mencionamos
esse fato porque parece-nos significativo indício da perfeição
do texto. Mesmo o exigente Kardec, que tanto procurava aprimorar
suas obras ao longo das sucessivas edições, viu muito
pouco a ser mudado aqui.
O capítulo abre com duas importantes transcrições
dos evangelhos de Mateus e Lucas, ambas acerca da questão
da “salvação”, ou da conquista da “vida
eterna”, ou ainda, na interpretação espírita
desse conceito, da “felicidade futura”. Certamente isso
liga-se ao conhecimento que Kardec tinha de que essa questão
estava histórica e conceitualmente ligada à da caridade,
conforme apontamos no início. Em ambos os trechos citados
Jesus situa claramente a caridade como a via exclusiva
da salvação. O primeiro descreve a alegoria do juízo
final (Mt. 25: 31-46). Na síntese de Kardec, “ao lado
da parte acessória ou figurada do quadro, há uma idéia
dominante: a da felicidade reservada ao justo e a da infelicidade
que espera o mau”. (Note-se que na passagem o termo ‘justos’
é explicitamente usado para designar os que foram caridosos
com o próximo necessitado.)
O segundo trecho é a famosa parábola do bom samaritano
(Lc. 10: 25-37). Novamente, é a caridade pura e independente
de qualquer fé (os samaritanos eram considerados heréticos
pelos judeus) que é dada como a “condição
única” para a salvação, visto que ela
“implicitamente abrange todas as outras: a humildade, a brandura,
a benevolência, a indulgência, a justiça, etc.,
e porque é a negação absoluta do orgulho e
do egoísmo”.
Vem depois a seção sobre “O mandamento maior”.
Conforme já observamos, esse mandamento é comum ao
Velho e ao Novo Testamentos, podendo também ser identificado,
em outras roupagens, nas demais religiões da humanidade.
Quando perguntado a respeito, Jesus simplesmente lembrou o que já
estava na Lei, o amor a Deus e o amor ao próximo. O que acrescenta
é a afirmação de que o segundo mandamento “é
semelhante ao primeiro” (Mt. 22: 35-40). Kardec comenta essa
importante frase, asseverando, em síntese, que “não
se pode verdadeiramente amar a Deus sem amar o próximo, nem
amar o próximo sem amar a Deus”. Há, pois, essencialmente
um só mandamento, “o mandamento maior”. Recordamo-nos
aqui dos versículos 20 e 21 do capítulo 4 da primeira
epístola de João: “Se alguém diz: Eu
amo a Deus, e aborrece a seu irmão, é mentiroso. Pois
quem não ama a seu irmão, a quem vê, não
pode amar a Deus, a quem não vê. E dele [Deus] temos
este mandamento, que quem ama a Deus ame também a seu irmão.”
Mas o que faz essa referência à lei do amor num capítulo
sobre a caridade? A resposta está no vínculo entre
amor e caridade que indicamos na seção 3, vínculo
destacado por Kardec no comentário da passagem evangélica
sobre o mandamento maior. É no final desse comentário
que aparece o primeiro enunciado do famoso princípio: “Fora
da caridade não há salvação”.
A propósito da caridade implicitamente contida no mandamento
maior, vale abrir um parêntese para lembrar que, numa outra
ocasião em que Jesus foi questionado sobre o assunto, apresentou
o mandamento numa versão diferente: “Fazei aos homens
tudo o que queirais que eles vos façam”, acrescentando:
“pois é nisso que consistem a lei e os profetas”
(Mt. 7:12). Nessa versão, conhecida como a “regra áurea”,
está explícito o caráter ativo do mandamento,
ou seja, a caridade. Kardec cita e comenta essa passagem no capítulo
11 do Evangelho segundo o Espiritismo, “Amar o próximo
como a si mesmo”.
Ciente da velha polêmica teológica, em que se pretendeu
usar palavras atribuídas a Paulo para justificar a tese da
salvação pela fé, Kardec transcreveu, no item
6 desse capítulo, o trecho da primeira carta do apóstolo
aos coríntios que reproduzimos no final da seção
precedente. Dá ao tópico o título “Necessidade
da caridade, segundo S. Paulo”. Seria uma provocação?
Certamente que não, pois provocações e polêmicas
eram incompatíveis com seu equilíbrio, sua serenidade
e seu espírito cristão. Foi, sim, a exposição
firme e inequívoca de uma das conseqüências da
análise espírita da moral e da religião, talvez
a conseqüência de maior importância para a Humanidade.
Apesar dessa concordância da análise espírita
com parte da interpretação católica da questão
da caridade – a saber, a importância das obras para
a salvação –, Kardec exerce a seguir a sua imparcialidade,
criticando a máxima católica de que “Fora da
Igreja não há salvação”. Após
a refutação enérgica desse princípio,
estende a crítica à máxima associada, “Fora
da verdade não há salvação”. Ambos
os princípios são mostrados não apenas carecer
de fundamentação evangélica e racional, mas
também serem nocivos ao bem da Humanidade, já que
induzem ao sectarismo, à intolerância e ao obscurantismo.
Apesar dessa concordância da análise espírita
com parte da interpretação católica da questão
da caridade – a saber, a importância das obras para
a salvação –, Kardec exerce a seguir a sua imparcialidade,
criticando a máxima católica de que “Fora da
Igreja não há salvação”. Após
a refutação enérgica desse princípio,
estende a crítica à máxima associada, “Fora
da verdade não há salvação”. Ambos
os princípios são mostrados não apenas carecer
de fundamentação evangélica e racional, mas
também serem nocivos ao bem da Humanidade, já que
induzem ao sectarismo, à intolerância e ao obscurantismo.
Obras citadas
Bíblia. Trad. João Ferreira
de Almeida.Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil, s.
d.
Bíblia. Trad. da Vulgata e anotado por Matos Soares. 5a ed.,
São Paulo, Pia Sociedade de São Paulo, s.d. (reimprimatur
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e espírita. Reformador, abril de 1998, p. 112-15 e 125-27.
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Tannery, P. (eds.) Oeuvres de Descartes. Tomo XI, p. 291-497. Paris,
Vrin, 1967. (As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento
Prado Jr. In: Descartes - Obra Escolhida, p. 295-404. São
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Brasileira, 1940.
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Xavier.) 9a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita
Brasileira, 1956.
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Espírita Brasileira, 1945.
Ferreira, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa.
1a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s. d.
Kardec, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro.
43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita
Brasileira, s.d.
–––. Imitation de l’Évangile selon
le Spiritisme. Reprodução fotomecânica do original
francês. Rio de Janeiro, Federação Espírita
Brasileira, 1979.
–––. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad.
de Guillon Ribeiro. 111a ed., Rio de Janeiro, Federação
Espírita Brasileira, s.d.
La Bible de Jérusalem. Paris, CERF, 1998.
Novo Testamento. Trad. segundo o original grego. Sociedade Bíblica
Americana, Nova York, s. d.
Novo Testamento, Salmos e Provérbios. Trad. João Ferreira
de Almeida. Os Gideões Internacionais, edições
de 1977 e 1979.
Artigo publicado em Mundo Espírita, março/2000
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