1. A visão comum de ciência
Constitui crença generalizada
que o conhecimento fornecido pela ciência distingue-se por um
grau de certeza alto, desfrutando assim de uma posição
privilegiada com relação aos demais tipos de conhecimento
(o do homem comum, por exemplo). Teorias, métodos, técnicas,
produtos, contam com aprovação geral quando considerados
científicos. A autoridade da ciência é evocada
amplamente. Indústrias, por exemplo, freqüentemente rotulam
de “científicos” processos por meio dos quais fabricam
seus produtos, bem como os testes aos quais os submetem. Atividades
várias de pesquisa nascentes se auto-qualificam “científicas”,
buscando afirmar-se: ciências sociais, ciência política,
ciência agrária, etc.
Essa atitude de veneração
frente à ciência deve-se, em grande parte, ao extraordinário
sucesso prático alcançado pela física, pela química
e pela biologia, principalmente. Assume-se, implícita ou explicitamente,
que por detrás desse sucesso existe um “método”
especial, uma “receita” que, quando seguida, redunda em
conhecimento certo, seguro.
A questão do “método
científico” tem constituído uma das principais
preocupações dos filósofos, desde que a ciência
ingressou em uma nova era (ou nasceu, como preferem alguns), no século
17. Formou-se em torno dela e de outras questões correlacionadas
um ramo especial da filosofia, a filosofia da ciência.
Investigações pioneiras sobre o “método
científico” foram conduzidas por Francis Bacon
(1561-1626). Secundadas no século 17 por declarações
de eminentes cientistas, como Galileo, Newton,
b, e, no século seguinte, pelos Enciclopedistas, suas teses
passaram a gozar de ampla aceitação até nossos
dias, não tanto entre os filósofos, mas principalmente
entre os cientistas, que até hoje muitas vezes afirmam seguir
o método baconiano em suas pesquisas. Isso é singular,
visto que os estudos recentes em história da ciência
vêm revelando que os métodos efetivamente empregados
pelos grandes construtores tanto da ciência clássica
quanto da moderna têm pouca conexão com as prescrições
do filósofo inglês.
De forma simplificada, podemos identificar
nas múltiplas variantes dessa visão da atividade científica
e da natureza da ciência - a que chamaremos visão
comum da ciência - algumas pressuposições
centrais:
a) A ciência começa
por observações. Bacon propôs que a
etapa inicial da investigação científica deveria
consistir na elaboração, com base na experiência,
de extensos catálogos de observações neutras
dos mais variados fenômenos, aos quais chamou “tábuas
de coordenações de exemplos” (Novum Organum,
II, 10). Como exemplo, elaborou ele mesmo uma lista de instâncias
de corpos quentes, visando iniciar o estudo científico do
calor. Essa tábua é então complementada por
duas outras, igualmente de longa extensão, reunindo “instâncias
negativas” (corpos privados de calor) e casos de corpos que
possuem uma “disposição” para o calor.
b) As observações
são neutras. As referidas observações
podem e devem ser feitas sem qualquer antecipação
especulativa, sem qualquer diretriz teórica. A mente do cientista
deve estar limpa de todas as idéias que adquiriu dos seus
educadores, dos teólogos, dos filósofos, dos cientistas;
ele não deve ter nada em vista, a não ser a observação
pura.
c) Indução.
As leis científicas são extraídas
do conjunto das observações por um processo supostamente
seguro e objetivo, chamado indução, que consiste na
obtenção de proposições gerais (como
as leis científicas) a partir de proposições
particulares (como os relatos observacionais). Servindo-nos de uma
ilustração simples, a lei segundo a qual todo papel
é combustível seria, segundo a visão que estamos
apresentando, obtida de modo seguro de um certo número de
observações de pedaços de papel que se queimam.
A lei representa, pois, uma generalização da experiência.
O processo inverso, de extração de proposições
particulares de uma lei geral, assumida como verdadeira, cai no
domínio da lógica, sendo um caso de dedução.
Durante a primeira metade do século
XX, uma plêiade de eminentes filósofos empreendeu aperfeiçoar
aquilo que vimos denominando de concepção comum de ciência,
em um sofisticado programa filosófico, conhecido como positivismo
lógico. Esse movimento, cujo núcleo original formou-se
em torno do chamado Círculo de Viena, na década
de 1920, exerceu uma influência marcante sobre a comunidade
científica, que perdura até nossos dias, não
obstante críticas severas ao positivismo lógico haverem
surgido ainda na década de 1930.
2. Objeções à visão
comum da ciência
Iniciemos nossa simplificada exposição
das objeções à visão comum da ciência
examinando brevemente a questão da justificação
da indução. Dentro do âmbito restrito de nossa
discussão, o processo dedutivo não apresenta maiores
dificuldades; podemos assumir que se a verdade de uma proposição
estiver assegurada, também o estará a de todas as proposições
que dela decorrerem dedutivamente, pelo uso das leis da lógica.
Tais leis, no entanto, não asseguram a validade do processo
indutivo. Voltando ao nosso exemplo, nenhum conjunto de observações
de incineração de pedaços de papel, por maior
e mais variado que seja, é suficiente para justificar logicamente
a lei segundo a qual todo papel é combustível. Não
há contradição formal, lógica, em se afirmar
que embora todos os pedaços de papel já examinados tenham
se queimado, esta folha não é combustível. Isso
pode contrariar o senso-comum, as leis da química e da física,
mas não as da lógica.
Eliminada a possibilidade de justificação
lógica, resta, segundo os pressupostos empiristas dos próprios
defensores dessa concepção, unicamente a justificação
empírica. No entanto, os filósofos John Locke
e David Hume apontaram, no final do século
17 e início do 18, que a justificação empírica
da indução envolve dificuldades insuperáveis.
Essa constatação veio
a exercer uma enorme influência na filosofia, estimulando, por
um lado, a retomada de doutrinas racionalistas (Kant)
e, por outro, a reformulação dos objetivos empiristas,
com o reconhecimento de que o ideal original de certeza e infalibilidade
do conhecimento geral do mundo exterior não pode ser atingido.
Procurou-se, assim, determinar condições nas quais o
salto indutivo seja feito da maneira mais segura possível.
Entre as condições que têm sido propostas destacaríamos:
d) o número de observações
de um dado fenômeno deve ser grande;
e) deve-se variar amplamente
as condições em que o fenômeno se produz; e
f) não deve existir
nenhuma contra-evidência, i.e., observação que
contrarie a lei.
Embora pareçam prima facie razoáveis, um pouco
de reflexão e inspeção cuidadosa da história
da ciência revelam que tais condições não
são nem suficientes para garantir as inferências indutivas,
nem necessárias ao estabelecimento de nossas melhores teorias
científicas.
Que não são suficientes
para assegurar a validade do processo indutivo já está
claro de nossas considerações anteriores. Dada uma proposição
geral qualquer, não importa quão numerosas e variadas
tenham sido as observações que lhe forneceram suporte
indutivo, é sempre possível que a próxima observação
venha a contrariar as anteriores, falseando a proposição
geral. Se apelarmos para o princípio da regularidade da natureza,
estaremos na obrigação de justificá-lo. Mas tal
princípio evidentemente não é de natureza lógica;
e se lhe quisermos dar justificação empírica,
caímos de novo no problema da indução.
Além disso, podemos ver que
as condições enumeradas também não são
necessárias para as mais importantes teorias científicas.
Primeiro, quando à condição (d), atentemos para
o fato de que alguns dos mais fundamentais experimentos científicos
não foram repetidos senão umas poucas vezes, ou mesmo,
como é comum, foram realizados apenas uma vez. Muitas das generalizações
empíricas nas quais mais certeza depositamos resultaram de
uma única observação. Quem, por exemplo, duvidaria
que a explosão de bombas atômicas causa a morte de seres
humanos após Hiroshima haver sido arrasada?
Quanto à condição
(e), notemos que a variação das condições
de observação também não tem ocorrido
ao longo do desenvolvimento da ciência. Essa exigência
é inexeqüível, se interpretada rigorosamente, já
que os fatores que em princípio podem influir são em
número indefinido. Por exemplo, para verificarmos a lei da
queda dos corpos, teríamos que variar não somente a
forma e a massa do corpo que cai, e o meio no qual se move, mas também
a sua temperatura, a sua cor, a hora do dia na qual o experimento
é feito, a estação do ano, o sexo do experimentador,
o seu cheiro, etc. Isso faz ver que há sempre pressuposições
teóricas guiando a escolha das condições que
devem ser controladas ou variadas; são nossos pressupostos
teóricos que nos causam riso diante de algumas das condições
que acabamos de enumerar. Este ponto será retomado adiante,
dada a sua importância.
Finalmente, nem mesmo a condição
(f) tem sido respeitada pela ciência. As teorias científicas
nascem e se desenvolvem em meio a inúmeras “anomalias”
ou contra-exemplos empíricos. A teoria
de Copérnico conviveu, até o advento do telescópio,
com o contra-exemplo da observação da invariância
das dimensões de Vênus ao longo do ano. A mecânica
newtoniana atingiu a glória mesmo tendo que aguardar décadas
antes que pudesse entrar em acordo com as observações
da trajetória da Lua; e nem foi abandonada no século
19 quando não pôde dar conta da órbita de Urano.
A hipótese de Prout sobre os pesos atômicos dos elementos
químicos esperou quase um século antes que seu conflito
com abundantes experiências fosse removido.
Passemos agora às objeções
ao princípio (a) da visão comum da ciência: começo
da investigação científica por observações.
O comentário que fizemos sobre
a variação das condições de observação
já indica uma dificuldade: se não tivermos nenhuma diretriz
teórica para guiar as observações, estas nunca
poderão ser concluídas, já que a rigor teríamos
que considerar uma infinidade de fatores. Essa constatação
de que, por uma questão de princípio, a investigação
científica não pode
principiar com observações puras é reforçada
pelo testemunho histórico. Os catálogos baconianos são
uma ficção, nunca tendo sido elaborados por qualquer
cientista. O cientista, quando vai ao laboratório, sempre tem
uma idéia, ainda que provisória e reformulável,
do que deve ou não ser observado, controlado, variado.
É interessante ainda lembrar
que há casos notáveis de descobertas de leis científicas
estimuladas por fatores não-empíricos. Um exemplo típico
é a idéia ocorrida ao físico francês Louis
de Broglie de que a matéria dita “ponderável”
(elétrons, átomos, etc.) apresentaria um comportamento
ondulatório. Essa idéia, que contribuiu decisivamente
para os desenvolvimentos que levaram ao surgimento da mecânica
quântica, não se baseava de modo direto em nenhuma evidência
empírica disponível na época (1924), mas na consideração
estética, de simetria, de que se a luz, tida como de natureza
ondulatória, apresentava, em determinadas circunstâncias,
um comportamento corpuscular (fato esse, aliás, também
constatado depois de haver sido previsto teoricamente por Einstein),
então os corpúsculos materiais igualmente deveriam,
em certas circunstâncias, comportar-se como ondas.
As objeções que se têm
levantado contra o princípio (b), da neutralidade das observações,
são demasiadamente complexas para serem tratadas neste texto
voltado a um público leigo. De forma simplificada, a análise
filosófica e psicológica do processo de percepção
fornece evidência de que o conteúdo mental (idéias,
conceitos, juízos) formado quando se observa um determinado
objeto ou conjunto de objetos varia significativamente de indivíduo
para indivíduo, conforme sua bagagem intelectual. Em certo
sentido, a apreensão da realidade se faz parcialmente mediante
“recortes” próprios de cada observador, determinados
por sua experiência prévia, as teorias que aceita, os
objetivos que tem em vista. A tarefa de isolar elementos completamente
objetivos, ou pelo menos inter-subjetivos, em nossas experiências
está envolta em dificuldades maiores do que se supôs
nas etapas iniciais do desenvolvimento da filosofia empirista moderna,
quando se propunha que o material básico de todo conhecimento
era um conjunto de “idéias”, “impressões”,
“conceitos” ou “dados sensoriais” comuns.
Parece que em cada ocasião em que a mente interage com algo,
esses dados sensoriais já vêm inextricavelmente associados
a interpretações, condicionadas pelos fatores apontados.
Tais constatações, porém,
não devem conduzir a um subjetivismo completo, incompatível
com aquilo que de fato se faz em nosso dia-a-dia e na ciência.
Aliás, parte da atividade científica consiste justamente
em se buscar uma descrição tão objetiva quanto
possível do mundo, e o que está sendo aqui exposto visa
apenas a indicar que esse ideal tem que ser buscado por meio de um
controle crítico incessante dos fatores subjetivos inelimináveis.
Ao contrário do que poderia resultar de uma abordagem estritamente
kantiana dessa questão, defendemos que a “grade”
intelectual segundo a qual percebemos a realidade não é
fixa, determinada de forma totalmente independente de nosso arbítrio,
mas pode ser adaptada por esforços deliberados, com a finalidade
de se encontrar uma representação das coisas que mais
se aproxime daquele ideal, maximizando-se simultaneamente a coerência
e o poder explicativo de nosso conjunto de crenças e teorias.
3. Popper e o falseacionismo
Objeções incisivas à
concepção comum de ciência, então vestida
nas roupagens do positivismo lógico, foram levantadas já
em 1934 pelo filósofo austríaco (mais tarde naturalizado
britânico) Karl Popper, exatamente
quando essa doutrina vivia o seu apogeu. Tais objeções,
enfeixadas no livro Logik der Forschung, publicado em Viena naquele
ano, foram ignoradas durante quase trinta anos, só recebendo
atenção no final da década de 1950, quando os
próprios positivistas lógicos já haviam admitido
muitas limitações no seu programa original. Em 1959,
o livro de Popper foi revisto, ampliado e vertido para o inglês,
sob o título The Logic of Scientific Discovery. A
partir de então (e, é claro, não somente pela
influência desta obra) instalou-se um período de significativos
avanços na filosofia da ciência, com o aperfeiçoamento
e crítica das teses popperianas, e com o aparecimento de outras
concepções de ciência, entre as quais se destacam
as de Thomas Kuhn e Imre Lakatos.
A idéia central de Popper
é a de substituir o empirismo justificacionista-indutivista
da concepção tradicional por um empirismo não-justificacionista
e não-indutivista, que ficou conhecido por falseacionismo.
Popper rejeita que as teorias científicas sejam construídas
por um processo indutivo a partir de uma base empírica neutra,
e propõe que elas têm um caráter completamente
conjetural. Teorias são criações livres da mente,
destinadas a ajustar-se tão bem quanto possível ao conjunto
de fenômenos de que tratam. Uma vez proposta, uma teoria deve
ser rigorosamente testada por observações e experimentos.
Se falhar, deve ser sumariamente eliminada e substituída por
outra capaz de passar nos testes em que a anterior falhou, bem como
em todos aqueles nos quais tenha passado. Assim, a ciência avança
por um processo de tentativa e erro, conjeturas e refutações.
“Aprendemos com nossos erros”, enfatiza Popper, que traça
um paralelo (com restrições importantes) entre a evolução
da ciência e a evolução das espécies, segundo
a teoria de Darwin-Wallace:
Nosso conhecimento consiste, em
cada momento, daquelas hipóteses que mostraram sua (relativa)
adaptação, por terem até então sobrevivido
em sua luta pela existência, uma luta competitiva que elimina
as hipóteses não-adaptadas.
(Objective Knowledge, p. 261.)
A cientificidade de uma teoria reside, para Popper, não
em sua impossível prova a partir de uma base empírica,
mas em sua refutabilidade. Ele argumenta que somente as teorias
passíveis de serem falseadas por observações
fornecem informação sobre o mundo; as que estejam fora
do alcance da refutação empírica não possuem
“pontos de contato” com a realidade, e sobre ela nada
dizem, mesmo quando na aparência digam, caindo no âmbito
da metafísica. Alguns dos exemplos preferidos de Popper de
teorias irrefutáveis, e portanto não-científicas,
são a astrologia, a psicanálise e o marxismo.
Vejamos agora como a concepção
falseacionista posiciona-se diante das características da ciência
que constituíram embaraço à concepção
indutivista tradicional.
Primeiramente, notemos que a visão
falseacionista escapa completamente ao problema da justificação
da indução, já que nela não se pretende
que as teorias sejam provadas indutivamente. O vínculo empírico
das teorias se localiza em sua refutabilidade. E aqui o falseacionismo
explora habilmente a assimetria lógica que existe entre os
processos de inferência de proposições particulares
a partir de proposições gerais e de gerais a partir
de particulares: se nenhum conjunto finito de proposições
particulares pode levar logicamente uma proposição geral,
a falsidade de uma proposição particular acarreta logicamente
a falsidade da proposição que representa a sua generalização.
Ilustremos o ponto retomando o nosso exemplo da lei segundo a qual
todo papel é combustível. Conforme mencionamos, essa
lei não pode ser provada logicamente por observações
de pedaços de papel que se queimam. Porém se encontrarmos
um único pedaço de papel incombustível, concluiremos
logicamente que a referida lei é falsa.
Uma segunda vantagem da concepção
falseacionista está em não pretender que a investigação
científica comece por observações.
Discorrendo sobre as relações entre observação
e teoria, Popper afirma:
Acredito que a teoria - pelo menos
alguma expectativa ou teoria rudimentar - sempre vem primeiro, sempre
precede a observação; e que o papel fundamental das
observações e testes experimentais é mostrar
que algumas de nossas teorias são falsas, estimulando-nos
assim a produzir teorias melhores.
Conseguintemente, digo que não
partimos de observações, mas sempre de problemas -
seja de problemas práticos ou de uma teoria que tenha
topado com dificuldades. (Objective Knowledge,
p. 258.)
Isso isenta o falseacionismo de várias
das objeções filosóficas, notadamente da relativa
à necessidade de diretrizes teóricas na condução
das observações, e também o colocam em concordância
com o processo que efetivamente ocorre ao longo da história
da ciência.
Por fim, além do apelo intuitivo
do falseacionismo (em nossa vida prática, pelo menos, freqüentemente
aprendemos com nossos erros), cabe mencionar que o compromisso com
essa posição filosófica força a formulação
das teorias de maneira clara e precisa. De fato, não é
fácil ver como uma teoria obscura ou imprecisa possa ser submetida
a testes rigorosos e, ainda que o seja, poderá ser sempre salva
de um veredicto desfavorável por meio de reinterpretações,
de manobras semânticas, o que trai sua irrefutabilidade, e portanto
o seu caráter não-científico.
4. Limitações do falseacionismo
Embora represente um avanço
em relação à concepção comum de
ciência, o falseacionismo, tal qual o descrevemos acima, de
modo simplificado, padece de várias limitações.
Não faríamos justiça plena a Popper atribuindo-lhe
essa forma tosca de falseacionismo, não obstante haja evidência
textual que poderia ser evocada para essa atribuição,
como gostam de notar seus opositores.
Foge ao escopo deste nosso trabalho
efetuar uma análise dos muitos matizes do pensamento popperiano,
bem como avaliar as críticas que lhe foram feitas. Diremos
apenas que mesmo as versões mais sofisticadas do falseacionismo
não estão isentas de dificuldades, o que deu lugar ao
surgimento de diversas teorias da ciência alternativas. Essas
teorias vão desde a metodologia dos programas científicos
de pesquisa, de Lakatos, que representa um desdobramento das linhas
popperianas, até o auto-denominado “dadaísmo metodológico”,
de Paul Feyerabend, que nega a existência de qualquer método
na ciência. Daremos abaixo uma descrição breve
das idéias centrais de Lakatos, não somente por suas
virtudes intrínsecas, mas também por servir bem às
nossas análises posteriores. Antes, porém, exporemos
de forma sucinta algumas das objeções que se têm
levantado contra o falseacionismo, e que motivaram o desenvolvimento
das concepções lakatosianas.
A dificuldade mais fundamental enfrentada
pelo falseacionismo é o chamado “problema de Duhem-Quine”.
Vimos acima que uma proposição geral como ‘Todo
papel é combustível’ pode ser falseada por uma
proposição particular como ‘A folha de papel x
não é combustível’, cuja verdade usualmente
se admite apoiar na experiência. No entanto, as teorias reais
ou de algum interesse nunca são proposições gerais
isoladas, mas conjuntos de tais proposições, e não
podem, além disso, ser submetidas a testes empíricos
senão quando suplementadas por teorias e hipóteses auxiliares
(como as referentes ao funcionamento dos aparelhos eventualmente empregados
na observação), proposições acerca das
condições iniciais e de contorno, etc. Se então
esse complexo de proposições permite inferir uma proposição
que conflita com alguma proposição empírica,
o máximo que a lógica nos informa é que o conjunto
de proposições está refutado, caso se assuma
a verdade da proposição empírica. Mas não
nos habilita a singularizar como responsável por essa refutação
uma das proposições do conjunto, nem mesmo o subconjunto
delas que constitui a teoria particular que estamos procurando testar.
Ilustremos a dificuldade considerando
uma situação que, segundo a concepção
falseacionista, representaria a refutação de uma dada
teoria mecânica por observações astronômicas.
Para fixar idéias, tomemos essa teoria como sendo a mecânica
newtoniana, que consiste de três leis dinâmicas, as conhecidas
“leis de Newton”, que denotaremos por L1, L2 e L3, e da
lei da gravitação universal, que denotaremos por G.
Uma eventual refutação dessa teoria por uma proposição
empírica, E, implica necessariamente a possibilidade de se
deduzir a partir dela uma proposição T logicamente incompatível
com E. Em outros termos, diríamos neste caso que a previsão
teórica T (a respeito, por exemplo, da trajetória de
um dado planeta) foi contrariada pela experiência, expressa
através da proposição E, estando assim refutada
a teoria mecânica em questão.
O problema está em que o conjunto
de leis L1, L2, L3 e G não basta para a dedução
de nenhuma proposição do tipo de T. Para tanto, deve
ser complementado por várias outras proposições,
classificadas em duas categorias principais: De um lado, estão
as proposições gerais (A1, A2, A3, ... ) de teorias
auxiliares, como por exemplo as de teorias ópticas envolvidas
na construção e operação dos telescópios
usados na observação do planeta, na correção
das aberrações ópticas introduzidas pela atmosfera
terrestre, etc. De outro lado, há as proposições
particulares (I1, I2, I3, ... ) referentes às chamadas condições
iniciais do problema, como sejam as empregadas para especificar as
massas e posições iniciais do planeta, da Terra, do
Sol e dos demais planetas e satélites. Temos então que
é somente o amplo conjunto de proposições L1,
L2, L3, G, A1, A2, A3, ... I1, I2, I3, ... que permite inferir uma
proposição T imediatamente confrontável com a
observação. Se agora encontrarmos que essa proposição
T é empiricamente falsa, poderemos concluir somente que a vasta
conjunção de proposições que permitiu
deduzi-la é falsa; mas a lógica não dá
nenhuma indicação de qual (ou quais) proposição
que a compõe é falsa; sabemos apenas que pelo menos
uma deverá sê-lo, mas não qual. Assim, o conflito
de T com a observação não pode ser interpretado
como uma refutação da teoria mecânica em análise
(e mesmo que pudesse, não saberíamos qual das leis que
a compõem é falsa), pois a falha pode estar em qualquer
uma das inúmeras proposições subsidiárias
A1, A2, A3, ... I1, I2, I3, ... . Conforme se verifica pelo exame
cuidadoso das situações reais de teste das teorias científicas,
esse conjunto de proposições subsidiárias é
em geral bastante extenso.
Quine expressou metaforicamente o
problema em foco dizendo que “nossas proposições
sobre o mundo externo enfrentam o tribunal da experiência sensível
não individualmente, mas corporativamente” (“Two
dogmas of Empiricism”, seção 5). Recorreu
ainda a duas imagens para figurar as relações entre
teoria e experiência:
A totalidade de nosso assim chamado
conhecimento ... é um tecido feito pelo homem, que toca a
experiência somente em suas bordas. Ou, mudando a imagem,
a ciência é como um campo de força cujas condições
de contorno são a experiência. Um conflito com a experiência
na periferia causa reajustes no interior do campo ... A reavaliação
de algumas proposições acarreta a reavaliação
de outras, devido às interconexões lógicas
entre elas ... Mas o campo é de tal modo subdeterminado por
suas condições de contorno (a experiência),
que há muita liberdade de escolha sobre quais proposições
devem ser reavaliadas à luz de qualquer experiência
individual contrária. (Ibid., seção
6.)
Conforme vemos, o problema de Duhem-Quine
incide sobre os próprios fundamentos da concepção
falseacionista de ciência. Sua relevância é acentuada
pelo testemunho da história da ciência, que fornece muitos
exemplos de conflitos entre previsões teóricas e observações
que foram resolvidos não pelo abandono da teoria particular
que levou à previsão, mas por ajustes nas teorias subsidiárias
requeridas para a efetivação do teste. Mencionamos anteriormente
alguns exemplos importantes, que agora relembraremos, junto com mais
alguns.
A teoria astronômica de Copérnico
conflitava com a observada constância nas dimensões de
Vênus e Marte ao longo do ano. O heliocentrismo não foi
por isso tido como refutado por todos; muitos preferiram colocar em
dúvida a assumida capacidade de nosso sistema visual perceber
pequenas variações de tamanho de objetos brilhantes
pequenos. O mesmo ocorreu com relação a inúmeras
previsões mecânicas empiricamente falsas que os opositores
do sistema copernicano deduziram da hipotética rotação
da Terra: a produção de ventos fortíssimos na
direção oeste; a projeção de todos os
corpos soltos sobre a superfície da Terra; o desvio para oeste
de corpos em queda livre; a Lua seria deixada para trás pela
Terra em seu movimento de translação, etc. Bruno, Galileo,
Kepler e outros não viram nessas abundantes conseqüências
falsas da teoria heliocêntrica a sua refutação,
preferindo atribuí-las às teorias mecânicas subjacentes,
muito embora o desenvolvimento de uma nova mecânica, capaz de
produzir previsões empíricas corretas a partir da teoria
heliocêntrica, devesse ainda aguardar a contribuição
de Newton, no final do século 17.
Por sua vez, a mecânica newtoniana
dava resultados incorretos para a trajetória da Lua. Isso não
foi interpretado como sua refutação; o ajuste empírico
da teoria foi alcançado em meados do século 18, por
modificações nas técnicas matemáticas
envolvidas nos cálculos da trajetória lunar. Caso semelhante
se deu com as previsões da teoria newtoniana para a órbita
de Urano, incompatível com as observações astronômicas
do início do século 19. Desta vez, a refutação
da teoria foi evitada pelo questionamento das condições
iniciais do problema, introduzindo-se a hipótese de um corpo
celeste até então nunca observado, que modificaria as
forças gravitacionais que atuam sobre aquele planeta. Esse
hipotético corpo foi mais tarde detectado empiricamente, sendo
o que hoje se conhece como o planeta Netuno.
Também já aludimos à
hipótese que Prout propôs em 1815 acerca dos pesos atômicos
dos elementos químicos, que conviveu durante quase cem anos
com farta evidência empírica contrária. A discrepância
foi atribuída a pressuposições referentes aos
processos de purificação química. Aqui também
esse redirecionamento da refutação mostrou-se justificado
pelos desenvolvimentos científicos de nosso século.
Finalizando esta breve exposição
das dificuldades do falseacionismo, temos ainda que mencionar que
a ênfase que dá ao processo de falseamento das teorias
conduz freqüentemente a uma subestimação do papel
das confirmações no desenvolvimento da ciência.
(Entendemos aqui ‘confirmação’ não
no sentido da concepção tradicional de ciência,
que em geral se confunde com ‘prova’; por esse termo significamos
apenas a evidência empírica favorável.)
Na versão tosca que lhe demos
acima, o falseacionismo não reconhecia a importância
das confirmações. Um tanto impiedosamente, poderíamos
isolar muitas passagens dos escritos de Popper que parecem apoiar
esse ponto de vista, como por exemplo esta prescrição
feita à página 266 de seu Objective Knowledge: “Tenha
por ambição refutar e substituir suas próprias
teorias.” Ou ainda estas frases de Conjectures and Refutations:
“Observações e experimentos ... funcionam na ciência
como testes de nossas conjeturas
ou hipóteses, i.e., como tentativas de refutação”
(p. 53). “Todo teste genuíno de uma teoria é uma
tentativa de falseá-la ou refutá-la” (p. 36).
Não podemos disfarçar
nossa estranheza diante de tais afirmações, dado seu
contraste com a atitude usual dos cientistas, que vem norteando o
desenvolvimento da ciência. Naturalmente, quando considerado
em seu conjunto, o pensamento popperiano mostra-se mais refinado.
Popper trata mesmo com alguma extensão o assunto da “evidência
corroborativa”. Não é claro, todavia, que ele
tenha feito justiça plena ao papel que a confirmação
efetivamente desempenha na ciência. Vejamos, por exemplo, este
seu comentário específico sobre a questão: “Evidência
confirmatória não deve contar, exceto quando é
o resultado de um teste genuíno da teoria, ou seja, quando
possa ser apresentada como uma tentativa séria, não
obstante mal sucedida, de falsear a teoria.” (Conjectures and
Refutations, p. 36; o destaque é de Popper.) O desacordo com
o que se observa na prática da ciência reside não
no reconhecimento de que as “confirmações devem
contar somente se são o resultado de predições
arriscadas” (ibid., p. 36), mas na insistência
em interpretar observações e experimentos como tentativas
deliberadas de refutação. Definitivamente,
parece não haver exemplos de cientistas que se tenham empenhado
ansiosamente na refutação de suas próprias teorias,
ou daquelas com as quais simpatizem. E o que vimos acima nos autoriza
a concluir que se esse fosse o objetivo precípuo dos cientistas,
não lhes faltariam razões para dar como refutadas todas
as teorias científicas.
Além disso, há que observar
a irrelevância de certas refutações para a ciência.
Este ponto foi expresso com clareza por Chalmers
em seu livro What Is This Thing Called Science? (pp. 51-2):
É um erro tomar a falseação
de conjeturas ousadas e altamente falseáveis como ocasiões
de significantes avanços na ciência ... Avanços
significantes distinguem-se pela confirmação
de conjeturas ousadas ou pela falseação
de conjeturas prudentes. Casos do primeiro tipo são informativos,
e constituem uma importante contribuição ao conhecimento
científico, exatamente porque assinalam a descoberta de algo
previamente não-cogitado ou tido como improvável ...
As falseações de conjeturas prudentes são informativas
porque estabelecem que o que era considerado pacificamente verdadeiro
é de fato falso ... Em contraste, pouco se aprende com a
falseação de uma conjetura ousada
ou da confirmação de uma conjetura prudente.
Se uma conjetura ousada é falseada, então tudo o que
se aprende é que mais uma idéia maluca mostrou-se
errada ... Semelhantemente, a confirmação de hipóteses
prudentes ... indica meramente que alguma teoria bem estabelecida
e vista como não-problemática foi aplicada com sucesso
mais uma vez.
5. Lakatos: uma visão contemporânea
da ciência
Do que vimos sobre as limitações
das concepções indutivista e falseacionista de ciência,
transparece que elas representam as teorias científicas e suas
relações com a experiência de modo demasiadamente
simples e fragmentário. A inspeção da natureza,
gênese e desenvolvimento das teorias científicas reais
evidencia que devem ser consideradas como estruturas complexas e dinâmicas,
que nascem e se elaboram gradativamente, em um processo de influenciação
recíproca com a experiência, bem como com outras teorias.
Essa visão da ciência é ainda apoiada por argumentos
de ordem filosófica e metodológica.
Se é verdade que as teorias
científicas devem apoiar-se na experiência - embora não
dos modos descritos pelo indutivismo e pelo falseacionismo -, residindo
mesmo nela a sua principal razão de ser, não é
menos verdade que a busca, condução, classificação
e análise dos dados empíricos requer diretrizes teóricas.
Além disso, a própria
malha conceitual através da qual formulamos nossas idéias
e experiências sensoriais constitui-se ao menos parcialmente
pela atuação de nosso intelecto. No caso específico
dos conceitos abstratos da ciência, o exame de sua criação
e evolução mostra que surgem tipicamente como idéias
vagas, só adquirindo significado gradualmente mais preciso
na medida em que as teorias em que comparecem se estruturam, embasam
e ganham coerência.
Por fim, em contraste com o que propõe
a visão indutivista (e talvez também a falseacionista),
as teorias científicas não consistem de meros aglomerados
de leis gerais. Devem incorporar ainda regras metodológicas
que disciplinem a absorção de impactos empíricos
desfavoráveis, e norteiem as pesquisas futuras com vistas ao
seu aperfeiçoamento.
O filósofo Imre
Lakatos sistematizou de maneira interessante as características
da ciência que vimos discutindo, introduzindo a noção
de programa científico de pesquisa. Iniciaremos nossa
breve e simplificada exposição das idéias centrais
de Lakatos recorrendo a este parágrafo do citado livro de Chalmers
(p. 76):
Um programa de pesquisa lakatosiano
é uma estrutura que fornece um guia para futuras pesquisas,
tanto de maneira positiva, como negativa. A heurística
negativa de um programa envolve a estipulação
de que as assunções básicas subjacentes ao
programa, que formam o seu núcleo rígido,
não devem ser rejeitadas ou modificadas. Esse núcleo
rígido é resguardado contra falseações
por um cinturão protetor de hipóteses auxiliares,
condições iniciais, etc. A heurística positiva
constitui-se de prescrições não muito precisas
que indicam como o programa deve ser desenvolvido... Os programas
de pesquisa são considerados progressivos ou degenerantes,
conforme tenham sucesso, ou persistentemente fracassem, em levar
à descoberta de novos fenômenos.
O núcleo rígido (hard
core) de um programa é aquilo que essencialmente
o identifica e caracteriza, constituindo-se de uma ou mais hipóteses
teóricas. Eis alguns exemplos. O núcleo rígido
da cosmologia aristotélica inclui, entre outras, as hipóteses
da finitude e esfericidade do Universo, a impossibilidade do vazio,
os movimentos naturais, a incorruptibilidade dos céus. O núcleo
da astronomia copernicana consiste das assunções de
que a Terra gira sobre si mesma em um dia e em torno do Sol em um
ano, e de que os demais planetas também orbitam o Sol. O da
mecânica newtoniana é formado pelas três leis dinâmicas
e pela lei da gravitação universal; o da teoria especial
da relatividade, pelo princípio da relatividade e pela constância
da velocidade da luz; o da teoria da evolução de Darwin-Wallace,
pelo mecanismo da seleção natural.
Por “uma decisão metodológica
de seus protagonistas” (Lakatos 1970, p. 133), o núcleo
rígido de um programa de pesquisa é “decretado”
não-refutável. Possíveis discrepâncias
com os resultados empíricos são eliminadas pela modificação
das hipóteses do cinturão protetor. Essa regra é
a heurística negativa do programa, e tem a função
de limitar, metodologicamente, a incerteza quanto à parte da
teoria atingida pelas “falseações”. Recomendando-nos
direcionar as “refutações” para as hipóteses
não-essenciais da teoria, a heurística negativa representa
uma regra de tolerância, que visa a dar uma chance para os princípios
fundamentais do núcleo mostrarem a sua potencialidade. O testemunho
da história da ciência parece de fato corroborar essa
regra, como vimos nos exemplos que demos acima. Uma certa dose de
obstinação parece ter sido essencial para salvar nossas
melhores teorias científicas dos problemas de ajuste empírico
que apresentavam quando de sua criação.
Lakatos reconhece, porém, que
essa atitude conservadora tem seus limites. Quando o programa como
um todo mostra-se sistematicamente incapaz de dar conta de fatos importantes
e de levar à predição de novos fenômenos
(i.e., torna-se “degenerante”), deve ceder lugar a um
programa mais adequado, “progressivo”. Como uma questão
de fato histórico, nota-se que um programa nunca é abandonado
antes que um substituto melhor esteja disponível.
A heurística positiva de um
programa é mais vaga e difícil de caracterizar que a
heurística negativa. Segundo Lakatos, ela consiste “de
um conjunto parcialmente articulado de sugestões ou idéias
de como mudar ou desenvolver as ‘variantes refutáveis’
do programa de pesquisa, de como modificar, sofisticar, o cinturão
protetor ‘refutável’.” (op. cit. p. 135)
No caso da astronomia copernicana, por exemplo, a heurística
positiva indicava claramente a necessidade do desenvolvimento de uma
mecânica adequada à hipótese da Terra móvel,
bem como de novos instrumentos de observação astronômica,
capazes de detectar as previstas variações no tamanho
aparente dos planetas e as fases de Vênus, por exemplo. Assim,
o telescópio foi construído algumas décadas após
a morte de Copérnico pelo seu ardente defensor, Galileo, que
também principiou a criação da nova mecânica.
Esta, a seu turno, uma vez formulada por Newton, apontou para um imenso
campo aberto, no qual se deveriam buscar uma nova matemática,
medidas das dimensões da Terra, aparelhos para a detecção
da força gravitacional entre pequenos objetos, etc.
Tentando uma representação
gráfica de um programa de pesquisas lakatosiano teríamos
mais ou menos o seguinte:
A concepção lakatosiana
de ciência envolve um novo critério de demarcação
entre ciência e não-ciência. Lembremos que o critério
indutivista considerava científicas somente as teorias provadas
empiricamente. Tal critério é, como vimos, forte demais:
não haveria, segundo ele, nenhuma teoria genuinamente científica,
pois todo conhecimento do mundo exterior é falível.
Também o critério falseacionista, segundo o qual só
são científicas as teorias refutáveis, elimina
demais: como nenhuma teoria pode ser rigorosamente falseada, nenhuma
poderia classificar-se como científica.
O critério de demarcação
proposto por Lakatos, por outro lado, adequadamente situa no campo
científico algumas das teorias unanimemente tidas como científicas,
como as grandes teorias da física. Esse critério funda-se
em duas exigências principais: uma teoria deve, para ser científica,
estar imersa em um programa de pesquisa, e este programa deve ser
progressivo. Deixemos a Lakatos a palavra (1970, pp. 175-6):
Pode-se compreender muito pouco
do desenvolvimento da ciência quando nosso paradigma de uma
porção de conhecimento científico é
uma teoria isolada, como ‘Todo cisne é branco’,
solta no ar, sem estar imersa em um grande programa de pesquisa.
Minha abordagem implica um novo critério
de demarcação entre ‘ciência madura’,
que consiste de programas de pesquisa, e ‘ciência imatura’,
que consiste de uma colcha de retalhos de tentativas e erros ...
A ciência
madura consiste de programas de pesquisa nos quais são antecipados
não apenas fatos novos, mas também novas teorias auxiliares;
a ciência madura possui ‘poder heurístico’,
em contraste com os processos banais de tentativa e erro.
Lembremos que na heurística positiva de um programa
vigoroso há, desde o início, um esboço geral
de como construir os cinturões protetores: esse poder heurístico
gera a autonomia da ciência teórica.
Essa exigência de crescimento
contínuo [progressividade do programa] é minha
reconstrução racional da exigência amplamente
reconhecida de ‘unidade’ ou ‘beleza’ da
ciência. Ela põe a descoberto a fraqueza de dois tipos
de teorização aparentemente muito diferentes entre
si. Primeiro, evidencia a fraqueza de programas que, como o marxismo
ou o freudismo, são indubitavelmente ‘unificados’,
e fornecem um plano geral do tipo de teorias auxiliares que irão
utilizar para a absorção de anomalias, mas que invariavelmente
criam suas teorias na esteira dos fatos, sem ao mesmo tempo anteciparem
fatos novos. (Que fatos novos o marxismo previu
desde, digamos, 1917?) Em segundo lugar, ela golpeia seqüências
remendadas de ajustes ‘empíricos’ rasteiros e
sem imaginação, tão freqüentes, por exemplo,
na psicologia social moderna. Tais ajustes podem, com o auxílio
das chamadas ‘técnicas estatísticas’,
produzir algumas predições ‘novas’, podendo
mesmo evocar alguns fragmentos irrelevantes de verdade que encerrem.
Semelhantes teorizações, todavia, não possuem
nenhuma idéia unificadora, nenhum poder heurístico,
nenhuma continuidade. Não indicam nenhum programa de pesquisa,
e são, no seu todo, inúteis.
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