Resumo:
Tornou-se comum no meio espírita
afirmar-se que o Espiritismo é ciência,
filosofia e religião, ou tem um “tríplice
aspecto”, englobando as três áreas.
Essa caracterização não pode ser encontrada
exatamente nesses termos na obra de Kardec. É, porém,
correta e, em sua essência, está presente no pensamento
do criador do Espiritismo e de seus mais lúcidos continuadores.
No entanto, a questão tem dado lugar a mal-entendidos,
por causa da compreensão incorreta ou imprecisa dos conceitos
de ciência, filosofia e religião, bem como da verdadeira
natureza do Espiritismo. Este trabalho procura contribuir para
esclarecer o assunto, com o apoio da filosofia e dos próprios
textos de Kardec.
1. Introdução
Ao refundir o material da primeira
edição de O Livro dos Espíritos
(1857), preparando a segunda edição (1860), Kardec
achou por bem inserir, já na primeira linha da livro, na
folha de rosto, a seguinte frase: “Filosofia Espiritualista”.
Kardec quis, com ela, fornecer ao leitor uma caracterização
sucinta do caráter do Espiritismo, cujas bases a obra assentava.
Essa caracterização é depois detalhada de modo
implícito ou explícito no resto do livro e no restante
de sua produção espírita. Uma das primeiras
especializações do conceito expresso na frase é
introduzida já na Introdução do mesmo livro,
item I, no qual Kardec traça a distinção entre
espiritualismo e Espiritismo. A partir desse ponto,
tratará sempre (salvo para efeito de comparação)
do conceito mais específico de filosofia espírita.
O destaque dado por Kardec a esse
conceito indica que é por ele que devemos começar
a análise do chamado “tríplice aspecto”
do Espiritismo. Essa caracterização não pode
ser encontrada exatamente nesses termos na obra de Kardec. Não
nos ocuparemos aqui da questão histórica da origem
dessa maneira tão disseminada de compreender o Espiritismo.
Nosso objetivo neste artigo é estabelecer que ela é,
em sua essência, correta, e que está presente no pensamento
do criador do Espiritismo. Além disso, pretendemos esclarecer
alguns mal-entendidos a que a caracterização tem dado
lugar, por causa da compreensão incorreta, ou imprecisa dos
conceitos de ciência, filosofia e religião, bem como
da verdadeira natureza do Espiritismo.
2. O que é filosofia?
Antes de tentarmos entender o que
Kardec entendia por ‘filosofia espírita’,
e por que ele priorizou essa noção ao dar uma fórmula
sucinta do Espiritismo, é importante compreendermos a noção
geral de filosofia. É claro que se trata de um assunto complexo,
que requereria estudos especializados para ser abordado de forma
satisfatória. O que exporemos aqui é apenas um esboço,
mas que, tanto quanto julgamos, é correto e útil para
investigações ulteriores.
Como quase todas as palavras, filosofia
possui diversos significados. Popularmente, o termo tem hoje três
acepções principais: 1) certos valores
ou princípios de vida, muito gerais e variáveis segundo
os indivíduos ou grupos sociais; 2) certos métodos,
regras e propósitos de um empreendimento qualquer; e 3) certas
doutrinas esotéricas ou místicas. Nenhum desses três
significados corresponde à noção original,
acadêmica, de filosofia, e que foi usada por Kardec em quase
todas as ocasiões em que falou no aspecto filosófico
do Espiritismo.
Não obstante aparentemente
simples, as questões do que é e para que serve a filosofia
– no sentido acadêmico do termo –
estão entre as que mais dificuldades e divergências
causam entre os próprios filósofos profissionais.
Esse mero fato, porém, já indica algo importante sobre
a natureza da filosofia: o questionamento sistemático, incessante
e profundo de tudo o que se afirma.
As origens da filosofia remontam
à Grécia Antiga. Pela própria etimologia do
termo, notamos que a filosofia era entendida como o amor
do saber, ou a busca da verdade. Naquela época e,
em certa medida, por muitos séculos da era cristã,
a filosofia englobava todos os ramos do conhecimento puro (em contraste
com as artes e ofícios, o conhecimento “aplicado”).
Gradualmente, alguns desses ramos foram se tornando autônomos,
como a matemática, a astronomia, a história, a biologia,
a física. Mais ou menos a partir do século XVII, alguns
deles começam a ser agrupados sob outra denominação:
a de ciência.
Hoje em dia costuma-se considerar
pertencentes ao tronco principal da filosofia as disciplinas da
estética, lógica, ética, epistemologia
e metafísica. De forma muito simplificada, pode-se
dizer que a estética examina abstratamente a beleza e a feiúra;
a lógica investiga o encadeamento formal das proposições;
a ética estuda questões relativas ao bem e ao mal,
aos direitos e deveres; a epistemologia ocupa-se do conhecimento,
suas origens, fundamentos e limites, enquanto que a metafísica
procura especular sobre a natureza última das coisas. Fora
esses ramos fundamentais, há ainda diversos outros que resultam
de suas interconexões e especializações, como
a teologia, a filosofia política, a filosofia da
linguagem, a filosofia da ciência.
Uma das principais correntes filosóficas
contemporâneas propõe que a filosofia não deve
ser entendida como a formulação ou defesa de teses
ou conjuntos de teses sobre o que quer que seja, mas simplesmente
como o desenvolvimento de métodos de análise
crítica e sistemática, a serem aplicados
especialmente ao chamado conhecimento científico. Nessa perspectiva,
o filósofo seria alguém que tenta explicitar os conceitos,
os pressupostos, a estrutura lógica e as implicações
das teorias científicas, políticas, religiosas, etc.
Semelhante atitude crítica – que não se confunde
com uma crítica leviana, estouvada ou interesseira –
seria a essência da filosofia, o elemento comum que permearia
a grande variedade de linhas filosóficas existentes.
Embora quando se olhe para as abstrações
e sutilezas tipicamente discutidas pelos filósofos se possa
concluir que a filosofia para nada serve, a referida proposta talvez
permita encontrar, num plano afastado do das necessidades materiais
cotidianas, uma finalidade útil para a filosofia: a elucidação
das bases, métodos e implicações das ciências
e de outras disciplinas intelectuais, contribuindo assim para a
identificação de fundamentos falsos ou inseguros,
de falácias argumentativas, de dogmas encobertos.
Ensinando, ou pelo menos convidando,
o homem a refletir criticamente sobre tudo o que se afirma ou faz
em todos os setores, a filosofia de alguma forma auxilia o aprimoramento
de seu intelecto e, talvez, de seus sentimentos, que o diferenciam
de um mero ser que come, bebe, dorme e se reproduz.
3. A filosofia espírita
Passando agora à noção
de filosofia espírita, uma observação preliminar
importante é que no tempo de Kardec o sentido original, amplo,
da palavra ‘filosofia’ ainda prevalecia, em boa medida.
Assim, ao dizer que o Espiritismo era uma filosofia,
Kardec não estava excluindo seu caráter científico,
muito pelo contrário. Além disso, como a ética
ou moral é uma das áreas da filosofia – e isso
até hoje –, aquela designação também
não excluía o aspecto moral do Espiritismo, que é
a essência da chamada religião espírita. Detalharemos
esses pontos nas seções seguintes deste trabalho.
Há referências à
filosofia, ou à filosofia espírita,
em todas as obras de Kardec. O significado preciso das expressões
varia, é claro, segundo o contexto. De um modo geral, podemos
identificar duas acepções principais
da expressão, uma ampla e outra restrita.
Na acepção ampla,
Kardec entende pela expressão alguma teoria, conjunto de
teses, ou atividade intelectual que se caracterizam pela racionalidade,
e se inserem portanto na tradição da filosofia acadêmica
de cultivo do saber pelo saber. Nesse sentido a filosofia engloba
a própria ciência e a moral, como já apontamos.
Há dezenas de passagens nas obras de Kardec em que a expressão
é usada nessa acepção. A primeira é,
naturalmente, a já mencionada frase da folha de rosto.Vejamos
algumas outras, restringindo-nos, por falta de espaço, ao
Livro dos Espíritos (os itálicos
do termo ‘filosofia’ são nossos).[2]
LE, Prolegômenos: “Este
livro é o repositório de seus ensinos. Foi escrito
por ordem e mediante ditado de Espíritos superiores, para
estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta
dos preconceitos do espírito de sistema.”
LE, Prefácio da 2a edição
(que não é mais reproduzido nas edições
atuais): “O ensino relativo às manifestações
dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns,
forma uma parte distinta da filosofia espírita,
podendo constituir objeto de um estudo especial” [a ser desenvolvido
no Livro dos Médiuns].
LE, Conclusão, item V: “Três
períodos distintos apresenta o desenvolvimento dessas idéias:
primeiro, o da curiosidade, que a singularidade dos fenômenos
produzidos desperta; segundo, o do raciocínio e da filosofia;
terceiro, o da aplicação e das conseqüências.
O período da curiosidade passou; a curiosidade dura pouco.
Uma vez satisfeita, muda de objeto. O mesmo não acontece
com aquilo que se dirige à razão e evoca reflexões
sérias. Começou o segundo período, o terceiro
virá inevitavelmente.”
LE, Conclusão, item VII:
“O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes:
o fato das manifestações, os princípios de
filosofia e de moral que delas decorrem e a aplicação
desses princípios. Daí, três classes, ou, antes,
três graus de adeptos: [...]” [3]
Na acepção
restrita da expressão ‘filosofia espírita’,
Kardec refere-se a tópicos clássicos tratados pelos
filósofos, como a existência e atributos de Deus, a
distinção alma-corpo, as idéias inatas, o livre-arbítrio,
a objetividade dos critérios morais, etc. Na maior parte
das vezes em que ele usa o termo ‘filosofia’ nesse sentido
mais específico, quer ressaltar um ponto de central importância:
a capacidade que o Espiritismo tem de tratar com segurança,
clareza e plausibilidade alguns dos mais espinhosos e desafiadores
problemas filosóficos. Em alguns casos o ponto é mencionado
genericamente; em outros ele considera explicitamente esses problemas.
Vejamos alguns exemplos, começando com alguns trechos do
primeiro tipo (destacamos o termo ‘filosofia’).
LE, Conclusão, item 1: “Pois
bem! Sabei, vós que não credes senão no que
pertence ao mundo material, que dessa mesa, que gira e vos faz sorrir
desdenhosamente, saiu toda uma ciência, assim como a solução
dos problemas que nenhuma filosofia pudera ainda resolver.”
LE, Conclusão, item 6: “Mesmo
quem não testemunhou nenhum fenômeno material relativo
às manifestações dos Espíritos diz para
si próprio: à parte esses fenômenos, há
a filosofia, que me explica o que nenhuma
outra havia explicado. Nela encontro, por meio unicamente do raciocínio,
uma solução racional para os problemas
que no mais alto grau interessam ao meu futuro. Ela me dá
calma, segurança, confiança; livra-me do tormento
da incerteza.”
QE, Preâmbulo: No terceiro
capítulo, publicamos um resumo de O Livro dos Espíritos,
com a solução, pela doutrina espírita, de certo
número de problemas do mais alto interesse, de ordem psicológica,
moral e filosófica, que diariamente são propostos,
e aos quais nenhuma filosofia deu ainda resposta satisfatória.
[...] Procurem resolvê-los por qualquer outra teoria, sem
a chave que nos fornece o Espiritismo; comparem suas respostas com
as dadas por este, e digam quais são as mais lógicas,
quais as que melhor satisfazem à razão.”
Vejamos agora algumas passagens com referências a problemas
filosóficos tradicionais, que têm solução
adequada pelo Espiritismo. Indicamos sumariamente entre colchetes
o problema em questão.
LE, Introdução, item
17 [a continuidade evolutiva na criação]: “A
razão nos diz que entre o homem e Deus outros elos necessariamente
haverá, como disse aos astrônomos que, entre os mundos
conhecidos, outros haveria, desconhecidos. Que filosofia já
preencheu esta lacuna? O Espiritismo no-la mostra preenchida
pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes
seres não são mais do que os Espíritos dos
homens, nos diferentes graus que levam à perfeição.
Tudo então se liga, tudo se encadeia, desde o alfa até
o ômega.”
LE, item 222 [a desigualdade das
aptidões face à justiça divina]: “Qual
a filosofia ou a teosofia capaz de resolver estes problemas?
É fora de dúvida que, ou as almas são iguais
ao nascerem, ou são desiguais. Se são iguais, por
que, entre elas, tão grande diversidade de aptidões?”
LM, par. 35, n. 2 [o futuro do homem]:
“O Livro dos Espíritos. Contém a doutrina completa,
como a ditaram os próprios Espíritos, com toda a sua
filosofia e todas as suas conseqüências morais.
É a revelação do destino do homem, a iniciação
no conhecimento da natureza dos Espíritos e nos mistérios
da vida de além-túmulo.”
ESE, cap. 5, item 6 [a dor face
à justiça divina]: “Que dizer, enfim, dessas
crianças que morrem em tenra idade e da vida só conheceram
sofrimentos? Problemas são esses que ainda nenhuma filosofia
pôde resolver, anomalias que nenhuma religião pôde
justificar e que seriam a negação da bondade, da justiça
e da providência de Deus, se se verificasse a hipótese
de ser criada a alma ao mesmo tempo que o corpo e de estar a sua
sorte irrevogavelmente determinada após a permanência
de alguns instantes na Terra.”
CI, parte 1, cap. 1, item 13 [a
questão do materialismo e do panteísmo]: Apresente-se-lhe,
porém, um futuro condicionalmente lógico, digno em
tudo da grandeza, da justiça e da infinita bondade de Deus,
e ele repudiará o materialismo e o panteísmo, cujo
vácuo sente em seu foro intimo, e que aceitará à
falta de melhor crença. O Espiritismo dá coisa melhor;
eis por que é acolhido pressurosamente por todos os atormentados
da dúvida, os que não encontram nem nas crenças
nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo
tem por si a lógica do raciocínio e a sanção
dos fatos, e é por isso que inutilmente o têm combatido.”
G, cap. 4, item 11 [a origem das
faculdades espirituais do homem]: “Mas a história do
homem, considerado como ser espiritual, se prende a uma ordem especial
de idéias, que não são do domínio da
Ciência propriamente dita e das quais, por este motivo, não
tem ela feito objeto de suas investigações. A Filosofia,
a cujas atribuições pertence, de modo mais particular,
esse gênero de estudos, apenas há formulado, sobre
o ponto em questão, sistemas contraditórios, que vão
desde a mais pura espiritualidade, até a negação
do principio espiritual e mesmo de Deus, sem outras bases, afora
as idéias pessoais de seus autores. Tem, pois, deixado sem
decisão o assunto, por falta de verificação
suficiente.”
G, cap. 4, item 12 [origem e destino
do homem]: “Esta questão, no entanto, é a mais
importante para o homem, por isso que envolve o problema do seu
passado e do seu futuro. A do mundo material apenas indiretamente
o afeta. O que lhe importa saber, antes de tudo, é donde
ele veio e para onde vai, se já viveu e se ainda viverá,
qual a sorte que lhe está reservada. Sobre todos esses pontos,
a Ciência se conserva muda. A Filosofia
apenas emite opiniões que concluem em sentido diametralmente
oposto, mas que, pelo menos, permitem se discuta, o que faz com
que muitas pessoas se lhe coloquem do lado, de preferência
a seguirem a religião, que não discute.
OP, pp. 86-7 [o problema mente-corpo]:
Onde acaba o poder da alma sobre os corpos? Qual a parte dessa força
inteligente nos fenômenos do Magnetismo? Qual a do organismo?
Aí estão questões de muito interesse, questões
graves para a Filosofia, como para a Medicina. [...] Tínhamos,
como se vê, grandes motivos para avançar que o estudo
dos fenômenos magnéticos guarda fortes relações
com a filosofia e a psicologia.
QE, pp. 169-70, 189 [a imortalidade
da alma] As manifestações não são, pois,
destinadas a servir aos interesses materiais; sua utilidade está
nas conseqüências morais que delas dimanam; não
tivessem, elas, porém, como resultado senão fazer
conhecer uma nova lei da Natureza, demonstrar materialmente a existência
da alma e sua imortalidade, e já isso seria muito, porque
era largo caminho novo aberto à Filosofia. [...]
Nas lições de filosofia clássica,
os professores ensinam a existência da alma e seus atributos,
segundo as diversas escolas, mas sem apresentar provas materiais.
[...] Quando um cientista emite uma hipótese, sobre um ponto
de ciência, procura com empenho e colhe com alegria tudo o
que possa demonstrar a veracidade dessa hipótese; como, pois,
um professor de filosofia, cujo dever é provar a
seus discípulos que eles têm uma alma, despreza os
meios de lhes fornecer uma patente demonstração?
Esses trechos ilustram bem a afirmação
de Kardec em O que é o Espiritismo (diálogo com o
cético, p. 65) de que “O Espiritismo prende-se
a todos os ramos da Filosofia [...]”. E note-se que tal
afirmação é confirmada não só
por passagens como as citadas, em que o termo ‘filosofia’
aparece explicitamente (e há ainda muitas outras em que isso
ocorre), mas também pelos estudos efetivamente desenvolvidos
por Kardec acerca de numerosos outros tópicos filosóficos.
4. O que é ciência? [4]
Como já ressaltamos, aquilo
que hoje chamamos ciência derivou da filosofia, tal
qual entendida nos primeiros tempos de nossa cultura ocidental.
É importante, pois, identificar os traços que servem
para distinguir o conhecimento científico de outros tipos
de conhecimento. Essa é uma das questões de que se
ocupa um dos ramos especiais da filosofia mencionados anteriormente,
a filosofia da ciência.
Notadamente na segunda metade do
século XX, progressos significativos foram realizados nessa
área. Reconhece-se hoje entre os especialistas que uma certa
concepção de ciência cujas
origens remontam à época do nascimento da ciência
moderna, no século XVII, e que é comum até
hoje entre o público leigo, padece de sérias inadequações.
Ela não resiste nem a variados argumentos filosóficos
levantados mais recentemente, nem ao confronto com a descrição
da gênese, evolução e estrutura das disciplinas
científicas maduras, ou seja, da física, da química
e da biologia. A versão mais bem articulada dessa concepção
é a doutrina filosófica conhecida como positivismo
lógico, que teve seu apogeu nas décadas de 1920 e
1930.
Grosso modo, essa
visão comum de ciência pressupõe que uma ciência
inicia seu desenvolvimento com um período longo de coleta
de dados experimentais (dados empíricos,
na linguagem filosófica); nessa etapa não
compareceriam hipóteses teóricas de nenhuma espécie.
Uma vez de posse de um conjunto suficientemente grande e variado
de dados, os cientistas aplicariam então certos métodos
supostamente seguros e neutros para obter as teorias científicas,
que seriam descrições objetivas da realidade investigada.
O exame cuidadoso da história
da ciência e os argumentos filosóficos
desenvolvidos pelos filósofos da ciência
contemporâneos mostraram que essa caracterização
da ciência não somente não corresponde ao que
de fato ocorreu e continua ocorrendo com as ciências bem estabelecidas,
como também pressupõe procedimentos impossíveis
de serem levados a cabo. Observação e teoria, experimento
e hipótese nascem e se desenvolvem juntos, num complexo processo
simbiótico de suporte recíproco. A acumulação
prévia de dados neutros, ainda que fosse possível,
seria inútil. Nenhum conjunto de dados leva de modo lógico
a leis científicas; a imaginação criadora do
homem desempenha papel essencial na gênese das teorias científicas.
A imagem de ciência a que
os filósofos da ciência chegaram a
partir das pesquisas recentes indica que uma ciência autêntica
consiste, de modo simplificado, de um núcleo teórico
principal, formado por leis fundamentais, introduzidas a título
de hipóteses. Esse núcleo é circundado
por hipóteses auxiliares, que o complementam e efetuam sua
conexão com os dados empíricos. Essa estrutura teórica
mais ou menos hierarquizada faz-se acompanhar de determinadas regras,
nem sempre explícitas, que norteiam o seu desenvolvimento.
De um lado, há a regra “negativa”, que estipula
que nesse desenvolvimento os princípios do núcleo
teórico devem, o quanto possível, ser mantidos inalterados.
Eventuais discrepâncias entre as previsões da teoria
e as observações experimentais devem ser resolvidas
por ajustes nas partes menos centrais da malha teórica, constituídas
pelas hipóteses auxiliares. Regras “positivas”
sugerem ao cientista como, quando e onde essas correções
e complementações devem ser efetuadas. Essa é
uma descrição sucinta e simplificada daquilo que o
filósofo da ciência contemporâneo Imre
Lakatos chamou de programa científico de pesquisa.
[5]
A exigência fundamental de
um programa científico de pesquisa é
que a estrutura teórica como um todo forneça
previsões empíricas corretas, ou seja dê conta
dos fatos. Outras características importantes de qualquer
boa teoria científica são: a consistência: a
teoria não pode envolver contradições; a coerência:
os princípios da teoria devem apoiar-se mutuamente; a abrangência:
a teoria deve explicar, ao menos em linhas gerais, todos os principais
fenômenos de seu domínio; deve ainda exibir unidade
e simplicidade, ou seja, a explicação que fornecem
dos diversos fenômenos deve decorrer de maneira natural e
simples de um corpo de leis teóricas integrado e tão
reduzido quanto possível. Há, por fim, o vínculo
externo de não conflitar com as demais teorias científicas
bem confirmadas que tratem de domínios de fenômenos
complementares.
Tendo fornecido essa noção
geral, bastante simplificada e incompleta, da concepção
contemporânea de ciência, passemos à questão
da ciência espírita.
5. A ciência espírita
A inspeção meticulosa
e isenta das origens, estrutura e desenvolvimento do Espiritismo
revela que ele possui todos requisitos de uma ciência genuína,
segundo as caracterizações da filosofia da ciência
contemporânea, como a esboçada na seção
precedente. Em artigo anterior, “A excelência metodológica
do Espiritismo”, procuramos mostrar, além disso, que
Allan Kardec antecipou-se às conquistas recentes da filosofia
da ciência, e compreendeu muito bem a questão. Sua
visão de ciência, exposta explícita e implicitamente
em seus escritos, corresponde efetivamente à visão
que os filósofos da ciência têm hoje. Isso teve
a conseqüência feliz de que, ao travar contato com uma
nova ordem de fenômenos, Kardec empregou em sua investigação
métodos e critérios corretos, o que lhe possibilitou
a implantação de uma verdadeira ciência do espírito.
O corpo teórico fundamental
do Espiritismo encontra-se delineado em O Livro dos Espíritos.
O exame dessa obra revela a adequação da teoria com
os fatos, sua consistência e seu alto grau de coesão
e simplicidade, bem como a amplitude de seu escopo. Ademais, ali
estão implicitamente presentes as diretrizes que nortearam
os desenvolvimentos ulteriores das investigações espíritas.
Muitos desses desenvolvimentos foram, como se sabe, implementados
pelo próprio Kardec, e se acham expostos nas demais obras
que escreveu. Consoante com a natureza de uma verdadeira ciência,
o progresso experimental e teórico do Espiritismo prossegue
até hoje, pelos esforços de pesquisadores encarnados
e desencarnados.
Em contraste com os fundamentos
científicos sólidos lançados por Kardec no
estudo do elemento espiritual do homem, as linhas de pesquisa que
surgiram mais tarde, com a pretensão de competir com o Espiritismo
nessa área, não alcançaram o mesmo sucesso.
Deve-se notar, a tal respeito, que elas tiveram início justamente
na época em que o positivismo lógico fornecia
os parâmetros segundo os quais uma atividade genuinamente
científica se desenvolveria. Ora, tais parâmetros sendo
equivocados, como os filósofos perceberam depois, as linhas
de pesquisa nascentes, que alimentavam a pretensão à
cientificidade, acabaram por assimilar uma visão de ciência
irreal. Isso levou a que adotassem métodos inadequados aos
fins a que se propuseram, bloqueando-lhes as possibilidades de contribuir
significativamente para o avanço de nosso conhecimento no
domínio do espírito.
Lamentavelmente, a adoção
de uma concepção falha de ciência levou os pesquisadores
dessas linhas de investigação a não somente
empenharem de modo infrutífero os seus esforços, como
também a desprezarem, ou mesmo repelirem, as conquistas e
métodos de uma legítima ciência do espírito,
o Espiritismo. Uma análise mais detalhada desse ponto pode
ser encontrada na seção 4 de “A excelência
metodológica do Espiritismo”, e não será
reproduzida aqui.
6. A ciência espírita
e as ciências acadêmicas
Contrariamente ao que alguns críticos
mal informados acerca do Espiritismo e das teorias científicas
contemporâneas alegam, o Espiritismo não conflita com
qualquer uma das teorias científicas maduras, quer da física,
quer da química ou da biologia. É de crucial importância
notar que embora o Espiritismo seja uma ciência, ele
não se confunde com tais ciências, do mesmo modo como
elas não se confundem entre si. Os domínios
de fenômenos por elas tratados não coincidem, sendo
antes complementares.
Kardec compreendeu perfeitamente
bem essa distinção, e chamou a atenção
para ela em diversos de seus textos, como por exemplo no item VII
da Introdução do Livro dos Espíritos. Ali argumentou
com segurança que “o Espiritismo não é
da alçada da ciência”, ou seja, das ciências
acadêmicas. Por outro lado, no parágrafo 16 do
primeiro capítulo de A Gênese, enfatizou a referida
complementaridade do Espiritismo e dessas ciências, afirmando
que “o Espiritismo e a ciência completam-se reciprocamente”.[6]
A percepção desses
pontos evita uma série de julgamentos e posturas equivocados,
que têm ameaçado o movimento espírita atual.
Vêem-se, com efeito, pessoas que imaginam que a ciência
espírita consiste justamente naquelas linhas de investigação
iniciadas depois de Kardec, e cuja fragilidade científica
é evidente, à luz de uma análise filosófica
cuidadosa. Outros pensam que a ciência espírita consiste
de investigações do âmbito das ciências
acadêmicas, especialmente as que envolvam experimentos conduzidos
com o auxílio de aparelhagens complexas, de uso nos laboratórios
de física, e dentro de referenciais teórico-conceituais
emprestados dessa ciência. Assume-se que é o uso desses
aparelhos e o emprego de terminologia técnica (aliás
quase sempre não compreendida por quem a usa dentro de tais
contextos) que confere cientificidade às investigações.
Dada a gravidade dos enganos envolvidos
em semelhantes posições, vale a pena nos determos
um pouco mais sobre elas. Deve-se, além dos esclarecimentos
gerais já indicados, notar que o estabelecimento dos
princípios básicos do Espiritismo prescinde completamente
do uso de qualquer aparelho e do recurso a qualquer teoria física.
O mais fundamental de tais princípios é o da existência
do espírito, ou seja, da existência de algo no homem
que é a sede do pensamento e dos sentimentos e sobrevive
à morte corporal. Como enfatizou Kardec, a comprovação
cabal desse princípio se dá mediante os fenômenos
a que denominou “de efeitos intelectuais”, quais sejam
a tiptologia, a psicofonia e a psicografia. Quem quer que reflita
com isenção sobre fenômenos dessa ordem não
terá dificuldade em reconhecer que atestam a existência
do espírito de modo inequívoco.
Nessa avaliação, é
importante notar a diferença que existe entre esse princípio
básico do Espiritismo e alguns dos princípios das
teorias físicas e químicas contemporâneas, por
exemplo. Nestes últimos casos, o “grau teórico”
(se assim nos podemos exprimir) é muito maior, ou, em outros
termos, os princípios estão muito mais distantes do
nível fenomenológico, ou seja, da observação
empírica direta. O caminho que vai da observação
até o princípio teórico é bastante indireto,
passando por uma série de teorias auxiliares, necessárias,
por exemplo, para tratar do funcionamento e interpretação
dos dados dos aparelhos envolvidos. Nessas circunstâncias,
a segurança com que os princípios podem ser afirmados
fica evidentemente limitada; há em geral possibilidades plausíveis
de explicações dos mesmo fenômenos através
de princípios teóricos diferentes. E, de fato, a história
da física e da química tem ilustrado a instabilidade
de suas teorias que avançam além do nível
da percepção direta.
No caso do referido princípio
espírita, bem como de vários outros dos princípios
básicos do Espiritismo, a situação é
bastante diversa. Trata-se de princípios pertencentes à
classe de princípios a que os filósofos denominam
“fenomenológicos”, que estão na base do
edifício do conhecimento, dado o seu alto grau de certeza.
Proposições dessa classe são, por exemplo,
as de que o fogo queima e a cicuta envenena.
Notemos que a inferência espírita
diante de um fenômeno de efeitos intelectuais – a saber,
que são causados por uma inteligência humana desencarnada
– não difere em nada das inferências que fazemos
a partir dos fenômenos ordinários. Quando, por exemplo,
o carteiro traz à nossa casa um papel no qual lemos certas
frases, não nos acudirá à cabeça a idéia
de que elas não foram escritas por um determinado amigo,
por exemplo, quando relatam fatos, contêm expressões
e expressam pensamentos peculiares e íntimos, característicos
daquele amigo. Exatamente o mesmo se dá com numerosos e variados
casos de psicografia ou outras manifestações inteligentes.
Não constitui exagero, pois, afirmar-se que a constatação
cuidadosa de uns poucos casos dessa espécie é suficiente
para eliminar qualquer dúvida acerca da sobrevivência
do ser.
É importante observar, por
fim, que além dos fenômenos especiais que formam a
classe dos fenômenos espíritas, o Espiritismo apóia-se
também em uma multidão de fenômenos ordinários,
em virtude de oferecer uma base sólida para sua compreensão.
Referimo-nos, por exemplo, às nossas inclinações
e sentimentos, às peculiaridades de nosso relacionamento
com as pessoas que nos cercam, aos acontecimentos marcantes de nossas
vidas, aos distúrbios da personalidade, aos efeitos psicossomáticos,
aos sonhos, à evolução das espécies
e das civilizações, etc.
Entendemos que a desconsideração
desse vasto corpo de evidências indiretas a favor do Espiritismo
constitui omissão séria da parte de seus críticos.
Com seu agudo senso científico, Kardec percebeu desde o início
que o alcance do Espiritismo transcendia de muito os fenômenos
mediúnicos e anímicos específicos que motivaram
o seu surgimento. “O estudo do Espiritismo é imenso”,
disse Kardec em outra passagem; “interessa a todas as questões
da metafísica e da ordem social; é todo um mundo que
se abre diante de nós”
(O Livro dos Espíritos, Introdução,
item XIII).
7. O aspecto religioso do Espiritismo [7]
Do mesmo modo como tem havido falta
de compreensão acerca do caráter científico
do Espiritismo e de suas relações com as ciências,
seu caráter religioso e suas relações com
as religiões também têm constituído
ponto de freqüentes confusões. Assim como se pode mostrar
ser o Espiritismo científico, embora não se inclua
entre as ciências ordinárias, por estudar um domínio
diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio
Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora
não se confunda com as religiões ordinárias.
Se no estabelecimento da primeira dessas teses é necessário
identificar corretamente que características de uma teoria
a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que
estabelecer critérios adequados para a classificação
de uma doutrina no âmbito religioso.
A palavra religião evoca,
por sua origem, à idéia da “re-ligação”
do homem ao Criador. Como se sabe, ao longo da história inúmeras
propostas se apresentaram de como essa “re-ligação”
deve ser entendida e efetuada, resultando daí as diversas
“religiões”.
Afora divergências sobre a
própria noção de Deus e da natureza do ser
humano, as religiões se diferenciam quanto aos requisitos
propostos para que a criatura se religue a Deus. Quase sempre, eles
incluem a adequação da conduta a certas regras
morais. Tipicamente, também incluem a satisfação
de providências formais e externas de vária ordem:
participação em cultos, rituais, cerimônias;
realização de determinados gestos; recitação
de fórmulas e rezas; adoração de imagens e
objetos diversos; promessas, penitências, jejuns, etc.
Ora, já se pode perceber
aqui algumas distinções fundamentais entre o Espiritismo
e as religiões ordinárias. Como elas, o Espiritismo
também se preocupa com o destino do homem, na Terra e no
além-túmulo, procurando instruí-lo quanto ao
que deve fazer para que alcance estados de felicidade cada vez maior.
No entanto, o Espiritismo propõe que esse objetivo pode ser
alcançado exclusivamente pela adaptação
da conduta a determinados preceitos morais. Qualquer medida de ordem
exterior é mostrada ser não somente ineficaz, mas
também, em muitos casos, nociva, por desviar a atenção
do ponto principal e induzir ao sectarismo.
Depois, uma diferença crucial
surge no modo pelo qual as regras éticas
são justificadas. As religiões ordinárias
procuram justificar as normas morais que propõem recorrendo
à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição.
Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus princípios
éticos – sintetizados no preceito cristão do
amor ao próximo – no conhecimento
que cientificamente alcança das conseqüências
das ações humanas ao longo da existência ilimitada
dos seres, conjugado à cláusula teleológica
de que todos almejam a felicidade. Não há aqui
lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente
investigação livre e racional dos fatos. Aliás
esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo
entendia a moral, pois em sua primeira carta aos
Coríntios (10:23) asseverou: “Todas as coisas são
lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas,
porém nem todas edificam.”
Em diversas de suas obras, Kardec
deu grande importância ao estabelecimento da moral
espírita, abordando o assunto em profundidade. Mostrou
que, com o conhecimento científico espírita, a moral
deixa de ser uma questão de especulações abstratas
ou de opiniões, estando indissociavelmente ligada ao estudo
dos efeitos naturais das ações humanas, em conexão
com a busca da felicidade, objetivo comum de todos os seres humanos.
Ressaltou ainda que o corpo de princípios morais obtidos
por essa via da razão e da experiência coincide com
aquele proposto por Jesus. Conforme registrou no parágrafo
56 do primeiro capítulo de A Gênese,
o Espiritismo “[dá] por sanção à
doutrina cristã as próprias leis da Natureza”.
Ora, na medida em que fornece ao
homem conhecimento seguro das regras de conduta capazes de harmonizá-lo
consigo mesmo e com os demais seres – e portanto, efetivamente,
com o plano divino –, o Espiritismo torna-se “o mais
potente auxiliar da religião”, conforme nota Kardec
nos lúcidos comentários adidos às questões
147 e 148 de O Livro dos Espíritos. A religião
aqui aludida não se confunde, evidentemente, com as doutrinas
religiosas tradicionais, com suas hierarquias, dogmas inquestionáveis
e práticas exteriores, sendo antes uma religião no
sentido próprio do termo, explicado acima.
A velha questão de se o Espiritismo
é ou não uma religião não admite, pois,
resposta unívoca, dada a duplicidade semântica do termo
‘religião’. Esse ponto foi estudado
em profundidade no artigo de Kardec intitulado justamente “Le
Spiritisme est-il une religion?”, que apareceu
na Revue Spirite de 1868.[8] Para encerrar, vejamos estes parágrafos
do famoso texto:
[...] o Espiritismo é,
assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores:
No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião,
e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os
laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos
não em uma simples convenção, mas sobre a
mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.
Por que então declaramos
que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão
de que há apenas uma palavra para exprimir duas idéias
diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião
é inseparável da noção de culto, evocando
unicamente uma idéia de forma, com o que o Espiritismo
não guarda qualquer relação. Se se tivesse
proclamado uma religião, o público nele não
veria senão uma nova edição, ou uma variante,
se quisermos, dos princípios absolutos em matéria
de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias,
cerimônias e privilégios; não o distinguiria
das idéias de misticismo e dos enganos contra os quais
se está freqüentemente bem instruído.
Não
apresentando nenhuma das características de uma religião,
na acepção usual da palavra, o Espiritismo não
poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado
inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz
simplesmente uma doutrina filosófica e moral.
8. Conclusões
Inegavelmente, o Espiritismo é
um empreendimento intelectual de ampla envergadura. Em diversas
ocasiões Allan Kardec ressaltou o seu caráter abrangente,
bem como a importância de considerá-lo em seu conjunto,
quando se trata de avaliá-lo e de investigar suas implicações.
Como vimos, na primeira linha da
segunda edição do Livro dos Espíritos Kardec
caracterizou-o sucintamente como “filosofia espiritualista”.
Espiritualista, porque estando centrado na constatação
de que o homem é essencialmente, enquanto ser pensante, espírito,
insere-se no âmbito das doutrinas que se contrapõem
ao materialismo. Filosofia, porque investiga esse
ser espiritual segundo uma abordagem racional, sistemática
e abrangente, típica da tradição de pesquisa
inaugurada pelos filósofos gregos, e que permeia toda a cultura
ocidental até hoje. Nesse sentido original, a filosofia abarcava
todos os ramos do saber puro. Mesmo aquilo que, a partir de uma
certa época da história do pensamento, passou a ser
chamado de ciência caía sob o escopo
da filosofia.
Assim, a caracterização
kardequiana em análise não deve ser tomada como excluindo
a dimensão científica do Espiritismo, muito pelo contrário.
Conforme deixou claro no desdobramento de suas pesquisas, Kardec
compreendeu que tal dimensão não somente existia,
mas que constituía mesmo a base sobre a qual a filosofia
espírita repousa. Note-se, por exemplo, que no preâmbulo
de O que é o Espiritismo Kardec o define
como “uma ciência que trata da natureza, origem
e destino dos Espíritos, bem como de suas relações
com o mundo corporal”. Quando bem compreendida, essa
definição não conflita com a que está
na página de rosto do Livro dos Espíritos. Apenas
salienta que os fundamentos da filosofia espírita são
científicos, e não puramente especulativos, ou derivados
de alguma tradição mística, religiosa, ou qualquer
outra. Foi a análise científica de certos fenômenos
que deu origem ao Espiritismo, e estabeleceu desde então
o núcleo teórico sobre o seu objeto de estudo, ou
seja, o espírito.
No entanto, como essa análise
conduz, por sua própria natureza, a tópicos extremamente
abrangentes e fundamentais, no que diz respeito ao conhecimento
do espírito, ela avança por domínios tipicamente
considerados filosóficos, mesmo segundo a concepção
contemporânea, mais restrita, de filosofia. O caso quiçá
mais importante dessa extensão é o da moral
(ou ética). Kardec explorou com grande lucidez
as implicações do conhecimento científico espírita
para as questões-chave da moral, dentre as quais a da fundamentação
das regras morais. Fez notar que o conhecimento científico
acerca do homem propiciado pelo Espiritismo permite o estabelecimento
de um corpo de princípios morais objetivos, e que ele coincide
com aqueles propostos pelo Cristo. Salientou ainda que tais princípios
sintetizam o que há de essencial na noção de
religião. Nesse sentido, e apenas nele, o Espiritismo
pode ser dito uma religião, adverte Kardec no famoso artigo
da Revue Spirite.
Dessa forma, os chamados “três
aspectos” (ou “partes”) do Espiritismo encontram-se
inextricavelmente ligados. Talvez mesmo devêssemos evitar
a utilização dessa expressão, porque pode induzir
à idéia errônea de que se trata de três
elementos separados ou separáveis, que agrupamos apenas por
conveniência. É significativo, a esse respeito, que
o próprio Kardec tenha evitado caracterizar o Espiritismo
em tais termos. Quando tentou sintetizar a natureza do Espiritismo,
recorreu ora à noção de filosofia, ora à
de ciência, dependendo do contexto. Mas em ambos os casos
indicou que não se tratava de uma delimitação
muito estreita da noção.
Se pensarmos no Espiritismo em termos
de filosofia, será uma filosofia apoiada em bases científicas,
e que tem como um dos objetivos centrais o estudo das questões
morais. Se pensarmos em termos de ciência, não será
uma pesquisa seca, que simplesmente constate e sistematize fatos,
mas de uma investigação de longo alcance sobre um
objeto de fundamental importância, o elemento espiritual.
Essa ciência complementa, pois, as ciências acadêmicas,
cujo objeto de estudo é o elemento material. E, pela própria
natureza de seu objeto de estudo, a ciência espírita
necessariamente diz respeito a tópicos genuinamente filosóficos,
dentre os quais ressalta, por sua importância prática,
aqueles referentes à moral.