> Questões acerca da natureza
do Espiritismo - II
Neste artigo analisa-se criticamente a proposta de revisão
de certos termos utilizados em Espiritismo, que alguns alegam ser
necessária para a “modernização”
da doutrina ou para sua “adaptação” ao
progresso da ciência. [1]
Questão:
Algumas pessoas alegam que é necessário atualizar
os termos técnicos utilizados no Espiritismo. Para elas o
uso de termos como ‘fluidos’, ‘mediunidade’,
etc. prejudica a posição científica do Espiritismo.
Há alguma fundamentação, em filosofia da ciência,
para essas criticas? Sendo uma ciência independente,
dedicada ao estudo de fenômenos que escapam ao escopo das
ciências clássicas, o Espiritismo não teria
a liberdade de definir seus próprios termos? Historicamente,
o Espiritismo precede à metapsíquica e à parapsicologia,
sendo também anterior às novas concepções
de matéria e energia da física atual. Isso não
lhe daria a posição de pioneiro no estudo e definição
dos fenômenos espíritas, cabendo-lhe o direito de estabelecer
sua própria nomenclatura?
Resposta:
As considerações sobre a natureza da linguagem apresentadas
no primeiro artigo desta série já forneceram o essencial
para esclarecer o presente problema. Igualmente, as afirmações
corretas implícitas nas próprias interrogações
do final da questão tornam a resposta quase desnecessária.
Todavia, gostaria de acrescentar algo em sentido explícito.
De fato, propostas de revisão
do vocabulário técnico do Espiritismo são bastante
comuns hoje, especialmente por parte de pessoas com alguma familiaridade
com disciplinas acadêmicas. Os termos mencionados como exemplo
parecem, em particular, causar-lhes certo incômodo, sendo
freqüentemente substituídos por palavras como ‘energia’
e ‘paranormalidade’, ‘sensibilidade’, etc.
Imagina-se estar assim conferindo maior cientificidade ao Espiritismo,
livrando-o de noções “ultrapassadas” do
século XIX. Ora, o mais elementar senso filosófico
mostra que não é no vocabulário que assenta
o caráter científico ou não de uma disciplina.
As palavras são, como foi
lembrado no artigo anterior, meros símbolos para a expressão
de conceitos; se estes não encontrarem respaldo em uma teoria
científica coerente, abrangente e empiricamente adequada
(isto é, adaptada aos fatos), de nada adiantará modificá-las.
Por outro lado, uma teoria científica não será
substancialmente alterada pela modificação de seu
vocabulário. Logo, qualquer alegação de que
o Espiritismo tem de passar por uma atualização não
pode limitar-se à substituição de palavras,
como ingenuamente se procura fazer. Essa alegação
só se poderia justificar a partir de uma análise profunda,
exaustiva e meticulosa da teoria espírita e de todos os fatos
de que trata, que revelasse racionalmente que ela não lhes
dá explicação adequada, ou contém falhas
de consistência lógica, propondo-se concretamente uma
outra teoria melhor que a possa substituir. No parágrafo
14, n. 8, de O Livro dos Médiuns Kardec resume
as condições para uma crítica sustentável
do Espiritismo (e, aliás, de qualquer outra ciência)
que, por sua lucidez e atualidade, merece ser aqui reproduzida:
O Espiritismo não pode considerar crítico sério
senão aquele que tudo tenha visto, estudado e aprofundado
com a paciência e a perseverança de um observador
consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais
esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos
algures, que não nos romances da ciência; aquele
a quem não se possa opor fato algum que lhe seja desconhecido,
nenhum argumento de que já não tenha cogitado e
cuja refutação faça, não por mera
negação, mas por meio de outros argumentos mais
peremptórios; aquele, finalmente, que possa indicar, para
os fatos averiguados, causa mais lógica do que a que lhe
aponta o Espiritismo. Tal crítico ainda está por
aparecer.
Esse trecho serviu de mote para o artigo “A excelência
metodológica do Espiritismo”, citado na lista
de referências bibliográficas. Nele procuro mostrar,
ainda que de forma breve e simplificada, que as condições
para uma revisão do Espiritismo em nome da cientificidade
até hoje não foram satisfeitas. A teoria espírita
kardequiana tem tudo o que é essencial para sua classificação
como uma ciência genuína, à luz das concepções
atuais da filosofia da ciência. Não é naturalmente
o caso de repetir aqui o que expus nesse trabalho e em outros sobre
o mesmo tema. No entanto, parece-me importante particularizar um
pouco a análise, com vistas aos exemplos dados na pergunta.
A palavra ‘mediunidade’
foi criada por Kardec para designar a faculdade que certos indivíduos
possuem de servir, em maior ou menor grau e de modos diversos, de
intermediários entre os Espíritos e os homens. Essa
noção recebeu precisão e conteúdo cognitivo
por sua inserção em uma teoria completa dos fenômenos
mediúnicos, exposta principalmente em O Livro dos Médiuns
(ver o artigo “Estudo sobre a mediunidade”, citado no
final). Embora ela se encontre, como qualquer teoria científica,
em contato periférico com teorias de áreas contíguas,
de dentro e de fora do Espiritismo, possui bases de sustentação
autônomas, não tendo que sofrer alterações
substanciais ou terminológicas em virtude do que possa ocorrer
nesses domínios conexos.
As modificações que
se têm proposto para o Espiritismo geralmente limitam-se ao
plano lingüístico, como se se tivesse vergonha de escrever
ou pronunciar as palavras ‘médium’ e ‘mediunidade’,
preferindo-se antes adornar o discurso com termos rebuscados, provenientes
de linhas de investigação incipientes ou pseudo-científicas,
como a metapsíquica, a parapsicologia e diversas vertentes
ligadas à psicologia ou mesmo a doutrinas orientalistas.
É evidente que isso só
contribui para aumentar as dificuldades de compreensão e
comunicação ou, o que é pior, para dispersar
as pesquisas relativamente ao núcleo teórico paradigmático
da ciência espírita, com graves repercussões
para o seu desenvolvimento. Constitui fato reconhecido entre os
filósofos da ciência contemporâneos que as substituições
de conceitos e teorias fundamentais numa ciência somente se
justificam pela degeneração global do programa de
pesquisa no qual se inserem, juntamente com o fornecimento efetivo
de um programa alternativo que o suplante em coerência, abrangência,
precisão e fertilidade heurística. Ora, não
padece dúvida para qualquer estudioso isento que nada disso
sequer esboçou-se no caso do Espiritismo.
Considerações semelhantes
aplicam-se à palavra ‘fluido’. É certo
que ao cunhar a expressão ‘fluidos espirituais’
para denotar certos elementos materiais “sutis” que
tomam parte em processos diversos examinados pelo Espiritismo, como
a ação dos Espíritos sobre a matéria
ordinária (mediunidade, curas, passes, etc.), ou a constituição
dos corpos e da ambiência dos Espíritos (perispírito,
objetos do mundo espiritual, etc.), Kardec procurou analogias, ainda
que tênues, com certos elementos que, segundo as melhores
teorias físicas da época, participariam dos fenômenos
elétricos, magnéticos ou térmicos: os chamados
fluidos elétrico e magnético, e o calórico,
igualmente invisíveis, sutis, imponderáveis.
Ora, como não houve mais
do que analogia e apropriação de um símbolo
lingüístico para construir uma expressão nova
– ‘fluidos espirituais’, que em geral se simplificava
para ‘fluidos’, dentro do contexto espírita –
, não se segue que a teoria espírita tenha de ser
modificada terminológica ou substancialmente na caracterização
dos referidos processos porque as teorias físicas que sugeriram
as analogias tenham sido alteradas ou substituídas no curso
evolutivo da física.
Um historiador da ciência
bem informado seguramente poderá encontrar diversas situações
semelhantes no âmbito das ciências acadêmicas.
Reportemo-nos de passagem, por exemplo, ao que aconteceu na química
quando as teorias físicas sobre a estrutura da matéria
se alteraram na década de 1920, com o desenvolvimento e aceitação
da mecânica quântica. Embora os químicos tenham
levado em conta a nova teoria física, dada a proximidade
e as interseções entre as áreas, tendo-se mesmo
criado ramos e técnicas de cálculo novos na química,
as concepções e métodos referentes às
ligações químicas, estruturas moleculares,
etc. continuaram mais ou menos como eram, em um amplo espectro de
investigações teóricas e experimentais.
Voltando ao caso do Espiritismo,
salienta-se bem na pergunta que ele constitui “uma ciência
independente, dedicada ao estudo de fenômenos que escapam
ao escopo das ciências clássicas”, tendo “a
liberdade de definir seus próprios termos”; e, poderia
acrescentar: seus conceitos e teorias. Modificações
nesses pontos só se legitimariam, repito, na medida em que
análises rigorosas internas ao programa científico
espírita indicassem sua necessidade.
Ainda com relação
à noção de fluido, deve-se notar que ela não
é tão abominada na física como parecem crer
os reformistas. Em primeiro lugar, cumpre notar que todos os líquidos
e gases são fluidos, e seu estudo é feito em diversas
áreas da ciência, como a hidrodinâmica. Depois,
quanto à eletricidade, magnetismo e termodinâmica,
as teorias atuais prescindem dessa noção no nível
operacional, tendo assumido feições preponderantemente
matemáticas e preditivas. No entanto, quando se desce à
análise de fundamentos – e raros cientistas dedicam-se
a isso atualmente – percebe-se que, à semelhança
das demais teorias da física, estão envoltas em problemas
conceituais graves. Não é nada claro, por exemplo,
o que seja um campo elétrico ou magnético (noções
usadas nas teorias físicas que sucederam às teorias
de fluidos), não do ponto de vista de sua caracterização
matemática, é claro, mas de sua representação
intuitiva, de sua essência, do modo pelo qual surge, se propaga
e causa certos fenômenos. Lembremo-nos, por fim, que os próprios
pais da teoria eletromagnética, como Faraday e Maxwell,
não dispensaram o conceito de fluido quando se tratava de
explicar – e não simplesmente calcular – os fenômenos.
Dir-se-á talvez que Einstein
baniu esse conceito da ciência ao criar a teoria da relatividade
restrita, em 1905. Embora essa afirmação se tenha
tornado comum em certos círculos, entre os especialistas
em fundamentos não há consenso sobre o ponto, não
obstante seja claro que o chamado “éter eletromagnético”
regido por leis mecânicas não compareça na aludida
teoria. Mas essa não é a única teoria da ciência,
nem tampouco está isenta de dificuldades conceituais e teóricas
diversas. Evidentemente, este não é o lugar para adentrar
esse tópico complexo. Fica, porém, uma advertência
aos espíritas de boa vontade para que não se deixem
influenciar facilmente por tais assertivas, antes que façam
estudos profissionais, que levem em conta, por exemplo, a teoria
da relatividade geral e todas as perplexidades que envolvem as teorias
do espaço-tempo e da cosmologia contemporâneas, nas
quais noções muito próximas à de fluido
parecem estar encontrando lugar.
Apenas para concluir, vale mencionar
que virou moda nos meios espíritas e semi-espíritas
a substituição da palavra ‘fluido’ por
‘energia’, sempre no pressuposto de que é por
aí que vai a ciência. Ora, assim como as noções
de espaço, tempo, força, massa, carga elétrica,
campo, etc., a noção de energia é objeto de
inúmeras dificuldades conceituais, não se ganhando
nada em clareza, precisão e cientificidade com a sua utilização,
muito pelo contrário. Ademais, esse uso apresenta o inconveniente
de se dar numa área distante da área de sua criação
original, a física, representando uma enxertia no programa
científico espírita, fonte certa de confusões.
A respeito da utilização
das noções das palavras ‘fluido’, ‘energia’
e ‘magnetismo’ no Espiritismo, recomendo a leitura do
artigos de Aécio P. Chagas, “Polissemias no Espiritismo”
e “A ciência confirma o Espiritismo?” Outra análise
profissional do emprego impróprio de noções
científicas, em particular da noção de energia,
no Espiritismo é feita no artigo “Algumas considerações
oportunas sobre a relação Espiritismo-Ciência”,
de Ademir L. Xavier Jr., que também consta da lista de referências
bibliográficas.
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