-> Questões
acerca da natureza do Espiritismo - IV
Neste artigo são tecidas algumas considerações
acerca da ciência oficial ou acadêmica, que serão
úteis para o esclarecimento de certas questões sobre
a ciência espírita, nos artigos subseqüentes desta
série. [1]
Questão:
Costuma-se dizer que a “ciência” aprova
ou rejeita determinado ponto. O que devemos entender por isso? Existe
realmente uma “posição oficial” da ciência?
Nesse caso quais seriam os órgãos ou pessoas que poderiam
ter tal prerrogativa, de determinar a posição oficial
da ciência? Parece-nos que na época de Kardec essa
frase normalmente se referia às grandes academias e aos órgãos
oficiais dos estados europeus. Há hoje algo equivalente?
Resposta:
A autoridade de que a ciência desfruta hoje em dia entre o
público em geral pode ser aquilatada pelo fato de ser freqüentemente
explorada para induzir à aceitação de determinadas
teses, processos, sistemas políticos, produtos de consumo,
etc. Há um efeito quase que intimidador associado à
rotulação de algo como ‘científico’.
Bens de consumo variados, desde cremes dentais até sofisticados
aparelhos eletrodomésticos são ditos terem sido elaborados
por processos científicos, ou submetidos a testes científicos.
Geralmente despreparadas para avaliar por si próprias se,
em cada caso, a qualificação é ou não
pertinente, as pessoas tornam-se vítimas de manipulações
diversas.
Mesmo no plano das idéias e teorias – e isso é
o que mais de perto nos interessa aqui –, a demanda por cientificidade
é notória. Diversas disciplinas mais recentes na história
do pensamento, ou menos seguras de seus fundamentos e métodos,
procuram de alguma forma modelar-se pelas disciplinas mais estabelecidas
e bem sucedidas, como a física, a química e a biologia,
inquestionavelmente consideradas científicas. Em nome desse
processo de modelagem, porém, têm-se produzido verdadeiras
aberrações científicas, que retardam o desenvolvimento
das disciplinas nascentes ou em vias de consolidação.
Embora a proposta de aprender-se algo acerca da natureza da ciência,
ou do chamado “método científico”, pela
inspeção das disciplinas paradigmaticamente científicas
seja adequada e mesmo indispensável, a falta de preparo filosófico
tem amiúde levado ao seu fracasso parcial ou total.
Bastante diverso foi o resultado alcançado por Allan Kardec
no desenvolvimento do Espiritismo. Possuidor de sólida formação
filosófica e científica, ele soube imprimir às
investigações dos novos fenômenos um cunho genuinamente
científico, conforme procurei destacar nos artigos da lista
de referências bibliográficas. A ciência espírita,
cujos fundamentos ele lançou, têm por objeto de estudo
o elemento espiritual do ser humano. Esse elemento manifesta-se
em múltiplos fenômenos psicossomáticos, anímicos
e mediúnicos, sendo estes últimos os que desencadearam
as pesquisas iniciais e permitiram o estabelecimento das leis básicas
da teoria.
Nos referidos trabalhos, argumento, ademais, que o Espiritismo constitui
a única abordagem científica disponível para
essa gama de fenômenos. As propostas alternativas surgidas
após ele invariavelmente incorreram nas aludidas distorções
de concepção, por falta, entre outras coisas importantes,
de uma adequada percepção das diferenças de
objetos de estudo relativamente às ciências exatas.
Em sua lucidez, Kardec reconheceu-as prontamente, apontando-as em
diversas de suas obras, como por exemplo no item 7 da Introdução
de O Livro dos Espíritos e ao longo das primeiras partes
de O que é o Espiritismo e O Livro dos Médiuns. Estruturou
então a teoria espírita em conformidade com as peculiaridades
dos fenômenos de que trata, conferindo-lhe, ademais, consistência
lógica, simplicidade, poder explicativo, abrangência,
coerência e integração harmônica com ciências
limítrofes, atributos igualmente necessários para
qualquer disciplina que queira fazer jus ao título de ‘científica’.
Feitas essas observações preliminares (que serão
parcialmente desenvolvidas nos artigos restantes desta série),
posso adentrar agora mais diretamente o tópico específico
da pergunta formulada. Felizmente, posso poupar-me à maior
parte da tarefa, recomendando ao leitor a consulta dos artigos de
Aécio P. Chagas, “O que é a Ciência?”
e “A Ciência confirma o Espiritismo?”, incluídos
na lista de referências bibliográficas. Nesses trabalhos
a questão da ciência oficial, relativamente aos interesses
espíritas, foi tratada de modo seguro e esclarecedor. Não
me cabe aqui reproduzir seu conteúdo. Limitar-me-ei a relembrar
alguns dos tópicos principais da análise do Prof.
Chagas, estendendo um pouco a discussão para responder de
forma explícita a pergunta que foi feita.
Uma distinção importante destacada nos trabalhos mencionados
é aquela entre “ciência-conhecimento”,
“ciência-atividade” e “ciência-comunidade”.
Quando se afirma que a ciência aprova isso ou aquilo, a frase
é passível de dupla interpretação: Ou
significa que a coisa faz parte (ou pode ser deduzida) do corpo
teórico paradigmático de uma das ciências
maduras (física, química e biologia); ou, em sentido
secundário, que a comunidade científica tem
uma opinião mais ou menos geral a seu respeito, embora ela
ainda não faça parte de nenhuma teoria bem estabelecida.
A idéia de uma “posição oficial”
da ciência só é razoável se entendida
com referência às teorias que, à época,
integram os paradigmas das ciências maduras. Felizmente, não
existe na ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões,
partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. É
inerente à natureza da ciência contemporânea
a distribuição do poder de avaliação
em múltiplas instâncias, entre as quais se encontram
as academias, departamentos universitários, institutos de
pesquisa, agências de fomento e, principalmente, os periódicos
especializados.
Os profissionais acadêmicos não ignoram que os jornais
e revistas especializados canalizam hoje o grosso da produção
científica, possuindo complexo sistema de filtragem que em
inglês se chama de “double-blind refereeing”:
os trabalhos submetidos para publicação são
enviados anonimamente a vários membros conceituados da própria
comunidade científica, que os examinam criticamente e anonimamente.
Teses discrepantes dos paradigmas que não sejam maciçamente
apoiadas por evidências experimentais e argumentos racionais
são barradas por esse sistema. Se quisermos, podemos dizer
que conflitam com a “posição oficial”,
mas apenas nesse sentido específico. Não estou afirmando
que o sistema seja infalível, mas ao lado de procedimentos
semelhantes de rigor na preparação de profissionais,
contratação, etc., asseguram o rigor das teorias,
técnicas e processos da ciência, possibilitando o seu
progresso seguro.
No tempo de Kardec as publicações periódicas
eram em número bem menor e não haviam ainda assumido
o papel central que desempenham hoje; o conhecimento científico
era veiculado principalmente em livros e memórias, publicados
sob iniciativa individual ou das academias. Estas últimas
ocupavam, conforme se sugere na pergunta, um papel muito importante;
as instâncias avaliatórias da ciência eram, pois,
mais centralizadas. Não raro isso deu margem a abusos e decisões
erradas, como aliás observou Kardec várias vezes,
ao discutir o caráter falível das corporações
científicas. Hoje abusos e erros naturalmente ainda ocorrem,
porém são geralmente detectados com mais facilidade
pela enorme e integrada malha da comunidade científica.
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