Operamos por vários anos uma
lista na Internet visando divulgar a Doutrina Espírita e trocar
idéias sobre a Reencarnação e assuntos correlatos
com seguidores de outros credos e sistemas de crenças espalhados
pelo mundo. Aprendemos muito com essa atividade, pois se, em um meio
onde todos seguem os mesmos ensinamentos e partilham da mesma cultura,
as diferenças de interpretação podem ocorrer,
muito mais se dá em outro onde as pessoas seguem ensinamentos
distintos e pertencem a culturas das mais diversas espalhadas pelo
planeta.
O assunto que escolhemos para título deste trabalho foi o tema
de uma discussão que ocorreu faz um bom tempo na lista que
operávamos. Um membro da lista tinha colocado suas dúvidas
sobre o que ocorria com ele e, como sempre fazíamos, tínhamos
respondido com o cuidado de dizer que nossa resposta estava em conformidade
com nosso sistema de crenças, a Doutrina Espírita. Um
outro membro, também espírita e que mora nos EUA, respondera
logo após de nós à mensagem inicial, dando uma
interpretação um pouco diferente da que havíamos
dado. Então, comentamos o que havia dito o irmão, identificando-o
como sendo, como nós, um seguidor da Doutrina Espírita.
Foi o que bastou para que uma colega recém ingressa na lista
afirmasse, logo a seguir, que havia descoberto o problema (com a interpretação
do nosso amigo espírita). O problema, segundo ela afirmava,
era “Doutrina”. Segundo dizia, e continuou dizendo após
muitas tentativas nossas de esclarecê-la sobre o Espiritismo,
doutrinas fecham as portas das pessoas para o conhecimento, pois são
conjuntos de regras inquestionáveis que têm que ser obedecidas
cegamente por quem a elas queira seguir. Ela dizia ter conhecido várias
doutrinas e nos assegurava falar por experiência própria.
Incapazes de por em dúvida o que ela dizia baseada em sua experiência,
ficamos apenas mostrando o quanto o Espiritismo não era como
ela pensava, convidando-a a ler a Codificação, etc..
Tudo em vão.
Quem nos salvou, encerrando a discussão,
foi nossa boa amiga Annie, a mesma Ann L. Goldman que revisou algumas
versões em inglês de nossos modestos artigos na Revista
Internacional de Espiritismo, quando teve a feliz idéia
de consultar o dicionário Merrian-Webster
e constatar que estávamos diante de um problema de semântica.
Enquanto nós entendíamos – e entendemos –
que Doutrina é apenas um conjunto de ensinamentos sobre uma
área do conhecimento que, por mais completo que seja, é
sujeito à evolução, a colega entendia que Doutrina
é um conjunto de princípios (dogmas) sobre um ramo do
conhecimento ou sobre um sistema de crenças. Em nossa visão,
uma Doutrina é uma lente através da qual podemos ver
o mundo, podendo movê-la, se desejarmos olhar para esta ou aquela
direção, e não uma viseira que nos impede de
olhar para o lado e só nos deixa ver o que um condutor nos
permite.
Trouxemos este assunto à
apreciação dos amáveis leitores porque achamos
que ele tem algo importante a nos ensinar com respeito ao estudo da
nossa Doutrina.
* * *
Falemos da questão das construções
nas dimensões espirituais, às quais nos familiarizamos
inicialmente através de André Luiz e, posteriormente,
pelo que disseram diversos outros autores espirituais. Ora –
poderíamos perguntar -, se existem cidades e veículos
nas dimensões espirituais, por que não se fala nada
disso na Codificação? Tudo o que se sabe, lendo o Pentateuco
Espírita, é que, quando desencarnamos, ficamos na erraticidade.
Logo, será toda essa história de construções
no plano espiritual pura fantasia?
Qualquer um que faça uma leitura
superficial da obra Doutrinária chegará a essa conclusão.
Mas, como entendemos nossa Doutrina não como um conjunto fechado
de princípios, mas um conjunto aberto de ensinamentos em contínua
evolução, preferimos partir do pressuposto de que André
Luiz e os outros falaram a verdade e, assim, nos propomos a estudar
mais a fundo a Codificação para ver se ela nos traz
alguma informação que passa despercebida a uma primeira
leitura.
Examinando o item 3 do Cap.
XIV de A Gênese, quando o Codificador discorre sobre a natureza
e as propriedades dos fluidos, encontraremos claros sinais de que
Kardec tinha da erraticidade um entendimento muito mais complexo do
que a princípio o nome por ele escolhido parece indicar. Leiamos,
pois, com muita atenção, o que ele diz:
“No estado de eterização,
o fluido cósmico não é uniforme; sem deixar
de ser etéreo, sofre modificações tão
variadas em gênero e mais numerosas talvez do que no estado
de matéria tangível. Essas modificações
constituem fluidos distintos que, embora procedentes do mesmo princípio,
são dotados de propriedades especiais e dão lugar
aos fenômenos peculiares ao mundo invisível.
Dentro da relatividade de tudo,
esses fluidos têm para os Espíritos, que também
são fluídicos, uma aparência tão material,
quanto a dos objetos tangíveis para os encarnados e são,
para eles, o que são para nós as substâncias
do mundo terrestre. Eles os elaboram e combinam para produzirem
determinados efeitos, como fazem os homens com os seus materiais,
ainda que por processos diferentes.
Lá, porém,
como neste mundo, somente aos Espíritos mais esclarecidos
é dado compreender o papel que desempenham os elementos constitutivos
do mundo onde eles se acham. Os ignorantes do mundo invisível
são tão incapazes de explicar a si mesmos os fenômenos
a que assistem e para os quais muitas vezes concorrem maquinalmente,
como os ignorantes da Terra o são para explicar os efeitos
da luz ou da eletricidade, para dizer de que modo é que veem
e escutam.”
Como poderemos ver, após analisarmos
atentamente o que diz Kardec, veremos que o que André Luiz
e outros tantos Espíritos relataram sobre construções,
jardins, veículos, armas, etc, nas dimensões espirituais
está em total sintonia com o que nos ensina a Codificação.
A erraticidade para Kardec não
era um lugar vazio onde os Espíritos ficavam errando, isto
é, vagando sem destino para um ou outro lado, já que
tudo ali era igual. Não, a erraticidade para Kardec era tão
rica de detalhes quanto os Espíritos que nela estivessem a
fizessem, conscientes ou não de que eram eles que assim estavam
fazendo. E mais, para o Codificador, os Espíritos evoluídos
compreendiam como eram obtidos os efeitos da manipulação
dos fluidos ao passo que os mais atrasados, não.
Há que se levar em conta, sem
dúvida, que, ao falar conosco de formas, objetos e seres existentes
no plano espiritual, os Espíritos são forçados,
muitas vezes, a usar o mesmo nome daquilo que existe em nosso plano
de modo a nos facilitar a visualização e não
por ser, o que lá existe, rigorosamente igual ao que conhecemos
aqui. No entanto, após um atento estudo da Codificação
e uma leitura isenta das obras posteriormente escritas, não
pode restar dúvida de que não há conflito entre
a primeira e as demais.
Como pudemos ver, uma postura dogmática
adotada após um estudo superficial pode gerar desnecessárias
discussões em nosso meio. Mas, poderíamos perguntar,
e se o que disser um Espírito, encarnado ou não, não
estiver de acordo com o que diz a Codificação? Devemos,
a nosso ver, seguir o exemplo do Mestre de Lyon.
Allan Kardec foi um missionário, um sábio singular que
veio ao mundo para resgatar ensinamentos esquecidos ou dispersos em
muitas tradições, colocar ordem em tudo, esclarecer
o que estava obscuro e, com ajuda e sob a inspiração
de uma plêiade de Espíritos de escol sob a regência
de Jesus, deixar um maravilhoso manual de vida para que nós
pudéssemos, em o utilizando, trilhar com segurança os
caminhos da evolução nos passos deixados pelo nosso
amado Mestre. Com missão de tal envergadura, Kardec só
podia ser um livre pensador no sentido mais puro da palavra. Fosse
ele um dogmático, jamais teria investigado as mesas falantes,
jamais teria rompido com idéias consolidadas, jamais teria
enfrentado a ortodoxia vigente e, por isso, certamente não
teria sido o escolhido para tão nobre missão.
Se quisermos seguir o exemplo e as
recomendações de Kardec, portanto, temos que ser abertos
aos novos conhecimentos, estudar sempre as novas conquistas de todas
as áreas da ciência, sem nunca deixar de submeter, no
entanto, tudo o que estudarmos à razão e ao bom-senso
antes de incorporá-lo ao nosso entendimento.
Entendermos que toda a verdade
está explícita na Codificação ou que tudo
o que não estiver abordado nela de modo sistemático
deva ser ignorado é tornar dogmática nossa Doutrina.
Kardec jamais a engessou e, se vivo estivesse, estaria hoje falando
do que há de mais moderno em todas as áreas da ciência
e submetendo tudo aos seus rigorosos critérios de análise
para posterior publicação em sua Revue Spirite.