Ramos da Ciência Surgidos
no Século XX permitem Novo Entendimento quanto à fronteira
existente entre a Inteligência e o Instinto
O tema Inteligência e Instinto é desenvolvido na Codificação
da Questão 71 à Questão 75 de O Livro
dos Espíritos e, com mais detalhe, do Item 11 ao Item 19
do Capítulo III de A Gênese. Por falta de espaço
em um artigo desta natureza, não transcreveremos as questões,
as respostas dos Espíritos e o raciocínio do Codificador,
nem teceremos comentários a eles. Uma clara compreensão
de nosso trabalho, no entanto, não prescinde de tal estudo,
motivo pelo qual incentivamos nosso amável leitor que não
as deixe de estudar antes de prosseguir.
Como dissemos em nosso outro artigo, publicado nesta
revista (RIE),
o quadro atual de conhecimento no estudo do comportamento animal
é fruto da maturação de duas abordagens científicas
que surgiram nas décadas de 20 e 30 do século XX,
quais sejam, respectivamente, a Psicologia Associativa
e a Etologia. A primeira teve início nos
EUA, com a participação de psicólogos e com
enfoque nos comportamentos de exemplares de animais testados em
experimentos de laboratório, associando tais comportamentos
a aprendizado. A segunda, na Europa, com a participação
de zoólogos e com enfoque nos comportamentos espécie-específicos
de exemplares observados em seu habitat natural, associando tais
comportamentos a instintos inatos ou herdados geneticamente. Durante
um certo tempo houve acirrado debate entre os estudiosos partidários
das duas abordagens, debate esse que ficou conhecido em inglês
como o “the nature x nurture controversy” (a
controvérsia natureza x criação).
Hoje em dia, no entanto, prevalece a noção de que
o comportamento animal deva ser visto sempre segundo seus
dois componentes, o instintivo e o aprendido, que aparecem,
um e outro, em maior ou menor grau, conforme a circunstância
que se apresenta.
Antes de prosseguirmos em nosso estudo, convém
notarmos que nenhuma das duas abordagens ao estudo do comportamento
animal que deram origem ao atual estágio de conhecimento
científico havia ainda surgido por ocasião da Codificação.
Em conseqüência desse fato, tudo o que vamos falar sobre
comportamento animal daqui em diante são elementos de observação
de que Allan Kardec não dispunha quando escreveu na Codificação
sobre inteligência e instinto.
“Todo ato maquinal é instintivo
... Ao ato instintivo falta o caráter do ato inteligente
...”
(GE III, 12)
Os termos comportamento instintivo ou comportamento inato
são usados para designar os comportamentos que os
etologistas entendem como herdados e controlados geneticamente,
o que nós, espíritas, entenderíamos como patrimônio
da alma. É caracterizado um comportamento instintivo quando
animais de uma mesma espécie seguem todos a mesma seqüência
de ações quando sob as mesmas condições
ambientais. Comportamentos instintivos podem ser de três tipos:
taxias, que são movimentos automáticos de um organismo,
aproximando-se de um estímulo ou se afastando dele, como
ocorre com os cupins em relação à luz; reflexos,
que são respostas involuntárias de um organismo frente
a um estímulo, como o retrair da mão de um animal
quando ela toca um objeto quente, e padrões fixos de ação
(PFA) ou instintos propriamente ditos, que são padrões
complexos de comportamento, porém, geralmente, inflexíveis
e que envolvem todo o corpo do animal, podendo necessitar de um
estímulo externo para serem disparados. Exemplos simples
são casais de aves alimentando bocas abertas (não
necessariamente filhotes), reação de medo a predadores
e a resposta de fuga ou ataque de um animal frente à agressão.
Um exemplo mais complexo são os milhares de movimentos que
uma aranha repete quase sem alteração cada vez que
tece suas teias de aparência sempre igual.
O
termo comportamento aprendido é usado para designar
alterações no comportamento como resultado
de experiências vividas. As modalidades existentes
são as seguintes: estampagem, que é um comportamento
que possui componente inato e aprendido e é adquirido em
um período específico e limitado de tempo na vida
do organismo. Patinhos recém-nascidos, por exemplo, identificarão
como sua “mãe” (protetora) e semelhante (outro
indivíduo da espécie à qual pertencem) um objeto
de razoável tamanho que se mova e emita sons, desde que este
for a primeira coisa que vejam junto a si no momento em que nascem
e por um breve período após. Daí em diante
seguirão o objeto onde ele for. A estampagem persiste pela
vida do indivíduo. Esse comportamento se chama de estampagem
porque equivale a uma estampa gravada para sempre no indivíduo.
Somente espécies menos evoluídas estão sujeitas
à estampagem; habituação, que é uma
redução em uma resposta anteriormente apresentada
quando nenhuma recompensa ou punição se segue. Se
um barulho estranho for ouvido por um cão de guarda ele entra
em alerta. Se esse mesmo barulho voltar a ocorrer sistematicamente
na mesma hora e nas mesmas circunstâncias, dentro de certo
tempo o cão se habituará ao barulho e não mais
entrará em alerta devido a ele; condicionamento clássico,
que consiste em associar uma resposta já existente a um estímulo
novo ou substituto. É uma forma importante para alterar um
Padrão Fixo de Ação (Instinto) de modo ao animal
poder se adequar com mais precisão a circunstâncias
ambientais. Se o dono de um cão soar um sino antes de servir
a ração ao animal, este se condicionará a salivar
toda vez que ouvir tocar um sino, pois terá condicionado
a oferta de ração ao estímulo de ouvir o sino
que, a princípio, nada tem a ver com alimentação;
condicionamento instrumental ou aprendizado por tentativa e erro,
que consiste em se modificar uma resposta pré-existente a
um estímulo ou criar novas respostas. Ocorre, por exemplo,
quando o animal aprende quais comidas são saborosas e quais
não são. Testes de laboratório comuns para
avaliar a capacidade que um animal tem de aprender por tentativa
e erro são labirintos que o animal deve percorrer para receber
uma recompensa, usualmente uma comida de que gosta. Uma vez resolvido
o labirinto o animal geralmente memoriza a solução
e passa a ir direto até a meta, demonstrando que aprendeu
uma seqüência lógica e visual, e aprendizado por
“Insight” ou discriminação, que é
um tipo de comportamento que, indubitavelmente, requer inteligência,
pois o animal deve analisar a situação, examinar quais
os elementos de que dispõe e criar uma solução
inteiramente nova para atingir sua meta. Verifica-se quando, por
exemplo, um chimpanzé faz uma pilha de engradados para usar
como escada de modo a obter um prêmio em comida pendurado
fora de seu alcance, sem nunca ter visto antes essa solução.
Ou ainda, quando um corvo da Nova Caledônia dobra um pedaço
de metal com seu bico para apanhar a comida no fundo de um tubo
após ter observado um corvo maior ter se apossado do único
pedaço curvado de metal que havia disponível e ter
conseguido com o mesmo atender à mesma meta.
“A inteligência se revela
por atos voluntários, refletidos, premeditados, combinados,
de acordo com a oportunidade das circunstâncias.”
(GE III, 12)
Agora que conhecemos os termos corretos para identificar
os diversos tipos de comportamento animal é importante sabermos
que o comportamento animal em cada circunstância pode ser
um casamento de vários desses tipos, cada um deles participando
em maior ou menor grau.
“Aliás, é freqüente
o instinto e a inteligência se revelarem
simultaneamente no mesmo ato.”
(GE III, 13)
Quando um castor constrói uma barragem,
por exemplo, assume-se que a solução de construir
a barragem seja um padrão fixo de ação ou instinto.
Está na memória genética de sua espécie,
segundo os cientistas, ou na memória anímica da espécie,
segundo uma visão espírita, que a construção
de barragens é uma forma de garantir a formação
de um lago da profundidade conveniente para que ele possa construir
sua moradia ao abrigo dos predadores e possa ter uma reserva de
alimentos acessível durante o inverno, quando a superfície
do lago está congelada. Entretanto, a constatação
de se o lago precisa ou não ser aprofundado e a forma como
irá construir a barragem, se necessária, assim como
a escolha do material de que se irá utilizar para tal, são
todos comportamentos aprendidos, parte por tentativa e erro, quando
já age sozinho na fase adulta, mas parte, certamente, sob
orientação de sua mãe quando mais novo.
Um
outro exemplo, além do do castor, é o das aves que
constroem ninhos, sempre se adaptando aos materiais encontrados
nos locais para onde se mudam e às características
desses locais. A maioria das interações possíveis
em determinado ambiente é por demais complexa para que instintos
fixos delas se incumbam. A participação do comportamento
aprendido, tanto na forma de tentativa e erro como na forma de aprendizado
por “insight”, é, portanto, muito importante
para animais que se deslocam de um para outro ambiente.
Ao contrário dos instintos, que são
consolidados na espécie e passados entre as gerações,
os comportamentos aprendidos requerem, para sua fixação,
a manutenção por longos períodos das circunstâncias
que os permitiram ou provocaram seu aparecimento. É
desse modo que comunidades de determinada espécie que migraram
há séculos de uma para outra região, vão,
aos poucos constituindo uma nova espécie, com instintos modificados
em função da adaptação às novas
condições. A modificação de instintos
a partir de comportamento aprendido, após a consolidação
desse último, sugere, para os cientistas, que houve uma mudança
genética na espécie e, para nós, espíritas,
que mais um aprendizado foi adicionado ao seu patrimônio anímico.
Como vemos, a fronteira que separa a inteligência
do instinto é bastante tênue. Não só
porque vários comportamentos que eram tidos como instintivos
hoje são ditos inteligentes como pelo fato, constatado pelos
estudiosos, de que os comportamentos aprendidos por tentativa e
erro e por “insight”, que requerem inteligência
para ocorrer, podem, ao cabo de várias gerações,
ser consolidados como instintos. O instinto, portanto, ou, pelo
menos, a parte dele conquistada após a definição
da individualidade, pode ser visto como uma espécie de inteligência
fóssil enterrada nas profundas camadas da mente.