Meses atrás, fui convidado
por um grupo espírita do Brasil para fazer uma palestra on-line
sobre o tema deste texto, “A obsessão nossa de cada
dia”.
Dentre as abordagens possíveis
para o tema, decidi fazer uma busca em textos escritos pelo Irmão
X através de Francisco Cândido Xavier. Crônicas,
contos, cartas, apólogos e outros escritos do Irmão
X são sempre muto bem-vindos para tratarmos de temas do cotidiano,
pois falam de perto às nossas necessidades mais caras.
Dentre os dois textos escolhidos para
tratar do assunto, “O guia”, do livro Estante da
vida, chamou-me atenção de forma peculiar. A
obra foi publicada em 1969 e, naturalmente, retrata a sociedade
da época, com seus costumes e arranjos.
Nele, Irmão X narra as “aventuras” de um dia
de estágio seu ao lado de um espírito que, na nomenclatura
kardequiana, podemos identificar como espírito familiar,
aquele que nos acompanha de perto nas lides do dia a dia, auxiliando-nos
o quanto possível nas tarefas que nos competem.
Aurelino Piva era responsável por cuidar de d. Sinésia,
uma senhora de classe média que era casada, tinha dois filhos
e contava com uma “secretária do lar” para auxiliá-la
nas tarefas domésticas. Desde as 4h manhã, quando
se desdobra para amenizar os efeitos dos excessos alimentares da
noite anterior; passando pelos cuidados para que as crianças
não brigassem tanto entre si; alcançando zelos com
as condições de saúde do esposo; e atravessando
todas as atenções dispensadas durante um dia inteiro
de cuidados – surpreendemos o espírito Aurelino Piva
a desdobrar-se para que d. Sinésia permanecesse “tão
hígida quanto possível”, pois, conforme suas
palavras, “Um dia tranquilo no corpo físico é
uma bênção que devemos enriquecer de harmonia
e esperança”.
Nada obstante todos os esforços de Aurelino ante os obstáculos
do dia, notamos d. Sinésia assumir atitudes bastante “familiares”
a todos nós: excesso no comer e na ingestão
alcoólica; preguiça para despertar, visto que, embora
tenha acordado às 6h, somente às 8h decidiu levantar-se
da cama; pessimismo ante os problemas que o dia
anunciava; indiferença para com os problemas
de saúde do marido; ingratidão pelo dia admirável
que tivera, sob o olhar atendo de Aurelino.
À noite, após um dia intenso de trabalho, num momento
em que Aurelino se senta ao lado de Irmão X para uma conversa
mais despreocupada, d. Sinésia fere o dedo com uma agulha
que manejava para enfeitar um vestido.
Devido esse contratempo, d. Sinésia reclama,
esbravejando:
“— Oh! meu Deus! meu Deus!... ninguém me ajuda!
Vivo sozinha, desamparada!... Não há mulher mais infeliz
do que eu!...”
Face à perplexidade do Irmão X, que acompanhou todas
as operosidades do dia para que a assistida tivesse um dia de paz,
Aurelino aduz, sem se perturbar:
“— Acalme-se, meu caro. Auxiliemos nossa irmã
a reequilibrar-se. Esta irritação
não há de ser nada. Ela também, mais tarde,
vai desencarnar como nós, e será guia...”.
Não há como ler a história desse “um
dia de vida” de d. Sinésia sem pensarmos nos nossos
próprios dias. Excessos, preguiça, pessimismo, indiferença,
ingratidão, reclamação e irritação
são alguns dos muitos sentimentos que ocupam nossas horas
e nossos dias na Terra, quase sempre sem nos darmos conta dos esforços
que pessoas que nos amam, seja no mundo físico, seja no mundo
espiritual, empreendem para que tenhamos serenidade para lidar com
as incumbências diárias.
Às vezes, atribuímos a obsessores, encarnados e desencarnados,
a responsabilidade pelos nossos infortúnios, mas o certo
é que, na grande maioria das vezes, somos nós mesmos,
enredados por disposições semelhantes à de
d. Sinésia, que construímos e alimentamos “a
obsessão nossa de cada dia”.
Quem precisa de obsessor, quando pode contar consigo na tarefa de
criar as “condições favoráveis”
para o próprio insucesso?