Espiritualidade e Sociedade



Pedro Camilo de Figueirêdo

>   Espiritismo em xeque: em torno da reportagem da BBC Brasil sobre a visão espírita do suicídio

Artigos, teses e publicações

Pedro Camilo de Figueirêdo
>    Espiritismo em xeque: em torno da reportagem da BBC Brasil sobre a visão espírita do suicídio

 

 

 

 

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A REPORTAGEM DA BBC BRASIL

 

No dia 17 de abril de 2024, a BBC publicou uma interessante matéria, intitulada “A crença espírita no 'Vale dos Suicidas' que angustia parentes em luto”. A matéria começa com a experiência de Maria Cecilia Cencini, que teve um filho vitimado pelo suicídio e que, a partir daí, foi em busca de informações que lhe trouxessem explicações e consolo, tendo “esbarrado” na obra Memórias de um suicida, cuja leitura não conseguira concluir.

Em linhas gerais, o texto da jornalista Mariana Alvim passa em revista conceitos e ideias sobre suicídio presentes em O livro dos espíritos e O céu e o inferno, de Allan Kardec, demarcando e enfatizando a prática do suicídio como transgressão grave às leis divinas e a dureza dos sofrimentos que pode passar quem escolhe esse caminho.

Em seguida, a matéria trata de aspectos do livro Memórias de um suicida, psicografado pela médium Yvonne do Amaral Pereira e publicado em 1956, enfatizando o “caráter bastante excessivo” das descrições sobre um Vale dos Suicidas e os suplícios ali enfrentados, sempre questionando a existência e as características dos sofrimentos relatados na obra.

Tratando da angústia de familiares de suicidas ante a perspectiva de que seus entes queridos possam estar em sofrimento na vida espiritual, bem como de aspectos do luto e de como tais informações podem ter repercussão negativa, Marina Alvim apresenta também diversos olhares críticos, que partem de lideranças espíritas e de estudiosos simpatizantes, em contraste com a opinião de uma liderança espírita que tenta ressaltar os aspectos positivos não somente da visão espírita sobre o suicídio, como também da obra de Yvonne Pereira.

No último parágrafo, a jornalista registra, com a fala de Bruno, irmão de alguém que cometeu suicídio, aquilo que se apresenta como sua conclusão e principal fio condutor da matéria:

“Tá certo que [o suicídio] é uma atitude antinatural. Mas a gente vê que Deus é misericordioso. Jesus na cruz falou para o ladrão: 'Se se arrependeu de coração, eu te digo hoje, estarás comigo no paraíso'", diz Bruno. "Então, essa fala de Jesus é contraditória com essa afirmação do Vale dos Suicidas. Sempre me pauto por Cristo, as ações dele no Evangelho, e me pergunto: 'Como ele lidaria com esse assunto hoje?'"

 

CRÍTICA E AUTOCRÍTICA

Sim, é verdade que nós, os espíritas, precisamos olhar para o suicídio e os suicidas com outros olhos, numa perspectiva mais humana, empática e acolhedora. No entanto, ao que parece, as críticas que são apresentadas na reportagem referem-se muito mais a leituras e repetições equivocadas do que, propriamente, àquilo a que de fato o espiritismo se propõe: uma doutrina que consola e conforma, que esclarece e educa.

Primeiro, é necessário lembrar que os escritos de Kardec sobre a condição dos suicidas no além partem das informações trazidas pelos próprios espíritos, seja os responsáveis pela consolidação da teoria espírita (como é o caso, marcadamente, de O livro dos espíritos), seja de suicidas que retornaram para contar como se sentiam (como é o caso de O céu e o inferno, que apresenta relatos de casos).



De um modo geral, o suicídio contraria o fluxo natural da vida, e é compreensível que a interrupção violenta de um fluxo vital acarrete consequências para o espírito. Essas consequências são apresentadas em uma teorização que parte, inclusive, do que dizem os espíritos que passaram por tais experiências – e essas experiências sempre apontam para possibilidades, nunca para determinantes incondicionais. Isso quer dizer que, conquanto todo suicida sempre se defronte com a mesma realidade (a vida continua, para além da morte do corpo físico, e os problemas de que tentou fugir, em certa medida, também permanecem, não sendo possível “ausentar-se” de si mesmo, mesmo depois de morrer), a natureza, a forma e a intensidade dessa nova experiência será sempre particular, guardando relação com o “conjunto da obra”: conhecimentos, crenças, valores e hábitos de vida, sem falar do momento em si do suicídio (a condição psicológica mais ou menos alterada, a presença ou não de transtornos mentais e afetivos) e suas motivações.

Assim, cada caso sendo um caso, relatos como os apresentados em O céu e o inferno são sempre exemplificativos, apontam para possibilidades, para os registros colhidos da escuta daqueles personagens, jamais significando fatalidades que alcançarão a toda e qualquer pessoa que percorra esse caminho, pois sempre será “o seu” caminho.

O senso comum no meio espírita, entretanto, contribui para a difusão irrefletida de assertivas e relatos como se se tratassem de regras fatais e que ignoram as condições individuais. Disso resulta uma simplificação que leva a conclusões implacáveis, que replicam crenças em castigos, punições e sofrimentos intermináveis, reforçando antigas crenças segundo as quais as pessoas que cometem suicídio são os piores seres que existem ou já existiram. Não são!

 

A OBRA MEMÓRIAS DE UM SUICIDA

 

Grande parte da confusão de ideias e conceitos sobre o suicídio, no meio espírita, advém de uma leitura apressada e acrítica (e, às vezes, que critica sem o devido conhecimento de causa) do livro Memórias de um suicida, que ora é tomado como uma verdade absoluta e aplicável a todos os casos de suicídio, ora como um devaneio da médium e do espírito e que, por isso, é a pura expressão de uma fantasia, não devendo ser levado a sério.

O livro, psicografado pela médium fluminense Yvonne do Amaral Pereira e ditado pelo espírito Camilo Castelo Branco, apresenta as memórias, como o título indica, de UM suicida, e não o registro do que acontece, em regra, com TODOS os suicidas. Trata-se, portanto, do relato do quanto aquele espírito viveu, segundo seu sistema de conhecimentos, crenças, valores e hábitos.

Além disso, o livro foi escrito com a feição de um romance, e todo romance, ainda que baseado em fatos reais, é sempre uma criação literária que, em vários momentos, sob o influxo do estilo de seu autor, terá a possibilidade de criar e recriar os fatos, não somente ao sabor da vontade de seu autor, como também, e principalmente, conforme sua capacidade de compreensão. Por isso, tudo o que se descreve é sempre a partir do olhar de alguém (no caso, do espírito autor), segundo sua capacidade de assimilação e explicação. A isso se pode juntar os problemas da transmissão mediúnica pela psicografia, com todos os percalços da tradução do pensamento do espírito pelo médium.

O Vale dos Suicidas descrito no livro nem é uma região de punição criada por Deus, nem é o único espaço que alguém que se matou vai ocupar no Além. Trata-se do ambiente que o espírito Camilo Castelo Branco encontrou, em sua experiência, e em que surpreendeu outras tantas pessoas que fizeram a mesma opção pelo suicídio.

Considerando que o meio em que os espíritos se movimentam reflete as condições psíquicas de quem o ocupa, as condições dessa região refletem, consequentemente, o estado psíquico daqueles espíritos, o que a tornava passível de atrair outros espíritos em condições vibratórias semelhantes. Não se trata, pois, de local de castigo determinado por Deus, mas do reflexo da construção mental e emocional de seus ocupantes.

As qualificações que são feitas do suicida partem, principalmente, do sentimento do espírito em relação a si mesmo, o que guarda estreita relação com a demonização que as religiões de seu tempo – marcadamente o catolicismo – faziam dos suicidas. As caracterizações como “criminoso”, “réprobo”, “desgraçado”, “trânsfuga da lei” e assemelhadas expressam esse sentimento íntimo, fruto de uma educação precária e de um forte sentimento de culpa internalizado, jamais representando uma classificação divina para essas pessoas.

As descrições fortes, pesadas, que são feitas nos dois primeiros capítulos, contato a partir do qual muitos se desestimulam a prosseguir na leitura do livro, precisam ser contextualizadas levando-se em conta os seguintes fatores:

– o livro foi escrito entre 1926 e 1942, sendo publicado em 1956;

– naquela época, os romances eram excessivamente descritivos, para levar o leitor a formar a ideia mais próxima possível do que se desejava dizer;

– além disso, não havia qualquer discussão, no meio acadêmico ou religioso, sobre o trato humanizado do luto e das pessoas enlutadas;

– por essa época, acreditava-se que era possível educar pelo medo, o que conduziu a médium e o espírito a aceitarem a possibilidade de desestimular a prática do suicídio pelo medo/pavor que pudessem despertar nos possíveis candidatos;

– o espírito autor, tendo sido um suicida e “vivido na própria pele” as agruras dessa condição no Além, tende naturalmente a superlativizar os lances da própria experiência, o que empresta ao relato uma dimensão excessiva;

– a médium do livro, Yvonne Pereira, admitia que também fora suicida em outras vidas, o que, inclusive, marcou sua vida com um estado depressivo que durou mais de 50 anos, e essa condição também contribuiu para impulsionar a superlativização dos relatos do autor espiritual.

Todos esses fatores contribuíram para carregar essa narrativa com um discurso de culpabilização e punitivismo, embora não seja essa a conclusão a que se chega ao final do livro.

Assim sendo, não podemos exigir que um livro que foi escrito há 82 anos e publicado há quase 70 tivesse os cuidados e as atenções dos dias de hoje, em que tantas conquistas já foram feitas em torno da temática suicídio e dos “poréns” e “senões” dos meandros da mente humana (especialmente dos problemas e desafios do processo mediúnico).

As críticas precisam ser feitas para corrigir a compreensão equivocada e os discursos punitivistas, mas sempre considerando, de forma honesta e serena, os contextos e as variáveis apresentadas.

 

A MENSAGEM ESPÍRITA É DE ESPERANÇA!

Ao apresentar a sobrevivência da alma à morte do corpo como uma realidade passível de comprovação científica, como apontam, dentre outros, os estudos em torno de casos sugestivos de reencarnação, de experiências de quase e de “cartas consoladoras”, o espiritismo dissemina uma mensagem de esperança às pessoas enlutadas pelo suicídio de pessoas queridas.

Os escritos de Allan Kardec são elucidativos nesse sentido, ao mostrarem que, ainda que cometamos erros e que a consciência de culpa possa pesar em nós, ao despertarmos na realidade espiritual, sempre seremos acolhidos por espíritos dedicados à nossa felicidade. Guias espirituais, parentes desencarnados e outros espíritos com quem tenhamos laços de amor estão sempre de prontidão para nos auxiliar no “reencontro conosco mesmos” e na reconstrução dos passos incertos que tenhamos dado, no passado.

Nesse quesito, embora o livro Memórias de um suicida seja marcado, pelo senso comum e pelo olhar apressado, como uma obra que reforça a culpa e o punitivismo, ele aponta para o caminho oposto.

Quem ultrapassa os dois primeiros capítulos e avança pela história até o final, surpreende a trajetória de seu autor espiritual, Camilo Castelo Branco, rumo à descoberta de que continua “vivo”, apesar de “morto”, tendo a possibilidade de reconstituir seus caminhos, sob a Misericórdia Divina.

Memórias de um suicida é, antes de tudo, o registro de uma história de superação e esperança. Seu enredo começa com o despertar doloroso de alguém que comete suicídio, passa pelas descobertas da vida espiritual, atravessa as experiências de aprendizado e crescimento desse espírito e culmina com a sua decisão consciente de reencarnar para, numa nova existência física, edificar a própria paz.

É graças a isso que, nesses quase 70 anos de publicação, tem dissuadido muitas pessoas da prática do suicídio, contribuindo para que reavaliem suas existências, ressignifiquem as dificuldades que atravessam e decidam-se por continuar, apesar dos pesares.

Memórias de um suicida também foi uma das inspirações para a criação, no Brasil, do Centro de Valorização da Vida (CVV), fundado em 1962 por Flávio Focássio, Jacques Conchon e Valentim Lorenzetti. No livro Pelos caminhos da mediunidade serena, organizado por mim e publicado, em 2006, pela Lachâtre, a médium Yvonne Pereira fala das visitas que recebia de Jacques Conchon e de como sua obra o influenciou na fundação do CVV.

É nesse sentido que afirmamos que a mensagem espírita, tanto sobre as pessoas que escolhem o suicídio quanto para os entes queridos que ficam, é de esperança – um “esperar com temperança” não só pelo reencontro, alhures, no além, como também pelas novas oportunidades com que a Misericórdia Divina sempre nos acena, mais hoje, mais amanhã.

 

 

 

 

 

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Pedro Camilo (Salvador/BA)
Pedro Camilo de Figueirêdo é doutorando em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia, especialista em Psicanálise Clínica e professor concursado da Universidade do Estado da Bahia. É editor-responsável pelas Editoras Lachâtre e Mente Aberta. É biógrafo da médium Yvonne do Amaral Pereira, sobre quem já publicou 5 livros, dentre os quais Yvonne Pereira: uma heroína silenciosa e Pelos caminhos da mediunidade serena, pela Editora Lachâtre

 

Fonte: https://blog.lachatre.com.br/2024/04/espiritismo-em-xeque-em-torno-da.html?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTAAAR0-Ee4ZfEJx7T6q9Zri0aAQkGia3sFAO3xHJc_-ptR_KNWeQp9suM1shvU_aem_ASWlIjtanTy0IR_-QOj1bPO9LiXZrYpfZHLVM-Klypr7xlKb8phHTiJaTfuHsGa5xVhGSfbkE28IOxmOcktCcT2U

 

 

 

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