Humberto
Schubert Coelho
> Mistificação e esoterismo: Os riscos do espiritualismo
Todo o tipo
de espiritualismo, que não deve ser confundido com religião,
possui vantagens e desvantagens muito particulares. Isto porque o
espiritualismo é um conjunto de princípios filosóficos
que se propõe a explicar o cosmo em contraposição
ao materialismo. Esta contraposição resume-se tão
somente em defender a existência de um elemento espiritual no
universo, seja intelectual ou apenas volitivo.
Schopenhauer e Nietzsche, embora ateus, não são de modo
algum materialistas, senão marcadamente espiritualistas, pois
acreditam numa força imaterial (e, portanto, espiritual) intrínseca
ao universo, a vontade. O Budismo, além de apresentar vertentes
ateístas nega também uma realidade concreta ao intelecto
e a vontade conforme as entendemos, mesmo assim também pode
ser considerado espiritualista, pois para os budistas a matéria
é um subproduto da natureza mental-volitiva do eu. A maioria
dos espiritualistas, porém, crê em Deus ou numa força
absoluta, dotada de realidade concreta.
Os espiritualistas concordam quanto à insuficiência dos
sentidos na apreensão da realidade. Para eles, é necessária
uma espécie de intuição ou sensibilidade especial
para o elemento sutil da vida enquanto tal que transcende a materialidade,
e, portanto, os sentidos físicos. Nietzsche identificava através
desta sensibilidade metafísica uma pulsão vital, a vontade
de poder, que orientaria a evolução das espécies
e produziria formas cada vez mais fortes, até culminarem no
super-homem. Já os Yogis acreditam investigar diretamente a
energia sutil através de técnicas refinadas de meditação
e controle respiratório, de modo a adquirirem suas habilidades
extraordinárias, especialmente a resistência a todo o
tipo de desconforto e privação material. Judeus, cristãos
e muçulmanos acreditam numa espécie de capacidade intuitiva
para reconhecer a validade dos profetas, de modo que o “espírito
reconhece o espírito”, e suas escrituras compartilham
um elemento bem seletivo que identifica as almas propensas à
recepção da mensagem divina como dotadas de “olhos
e ouvidos espirituais”. O Espiritismo leva ao extremo o enfoque
na sensibilidade espiritual, apontando para o intercambio permanente
entre o mundo físico e o além, para a interconexão
entre todos os seres, vivos ou mortos, e enfatizando a capacidade
universal de movimentar energias sutis através de qualquer
ato mental.
Todas as formas de espiritualismo, exatamente por trabalharem com
esta sensibilidade para os fenômenos mais discretos e sutis
da natureza, correm o risco de superexcitar a imaginação,
dando margem a todo tipo de superstição e crendice.
É, portanto, um risco grave para os espiritualistas a falta
de cautela em relação a novidades, modismos e personalismos.
O Espiritismo em particular prega o trato científico dos elementos
espirituais da natureza, buscando evitar exatamente a proliferação
de crenças e dogmas conflitantes quão ineficazes. E
conquanto seja difícil manter o Espiritismo sob a tutela de
rigores científicos, estando ele difundido em todas as camadas
da sociedade, as referencias mínimas ao método crítico
permanecem questão de urgência se o que se pretende é
evitar a progressiva fragmentação em seitas esotéricas.
Fique bem entendido que não apoio qualquer discriminação
contra grupos que comportam novidades e particularidades, mas a definição
de esotérico é a mais apropriada neste caso. Isto porque
esotérico corresponde àquelas comunidades privilegiadas
por um conhecimento que outros não possuem, ou com tradições,
práticas e regras que só são conhecidas ou restritas
a esta comunidade. Esotérico não é um equivalente
para insensato ou irracional, mas para alguém ou alguma sociedade
que acredita estar em posse de uma revelação especial.
Embora isto seja possível, não é recomendável,
pois quem se acredita na posse de um privilégio destes não
tem como averiguar sua veracidade de forma racional.
O Espiritismo nega firmemente a ideia de uma revelação
restrita ou especial para um grupo étnico ou religioso qualquer,
e isto por motivos científicos e filosóficos. Científicos
porque um fenômeno natural tem de apresentar-se universalmente,
e não apenas para os crentes. Filosófico porque este
privilégio contraria a justiça divina, senso absurdo
supor que um conhecimento benéfico ao gênero humano fosse
reservado a um grupo de eleitos. Quando os romanos se queixaram a
Paulo, alegando que os judeus tinham uma tradição profética
que facilitava a vida regrada, o apóstolo dos gentios rebateu
como absurda a ideia de que Deus só revelara suas leis aos
judeus:
“Porque
os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder
como também a sua própria divindade, claramente se
reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos
por meio das cousas que foram criadas. Tais homens são por
isso indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus
não o glorificam como Deus... antes se tornaram nulos em
seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o
coração insensato. Inculcando-se por sábios,
tornaram-se loucos, e mudaram a glória do Deus incorruptível
em semelhança da imagem do homem corruptível, bem
como de aves, quadrúpedes e répteis... Pois eles mudaram
a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em
lugar do Criador...”
ROMANOS: I, 20.
O que Paulo já estabelecia
nas epístolas só aumenta com o surgimento da ciência
e a Idade da Razão. A revelação não pode
contrariar o conhecimento comum, nem a fé contradizer a lógica
e a observação mundana. Por mais que haja formas complementares
de conhecimento, todos devem submeter-se aos critérios de validade
pública para que possam integrar um corpo doutrinário
coerente. Ao assumir uma revelação exclusiva estaremos
cortando os laços com os critérios de validade universal
do conhecimento, que consistem na exposição e discussão
pública dos fenômenos. O fenômeno mediúnico
já é por demais melindroso para que descuidemos de uma
averiguação cuidadosa.
Para evitar os personalismos e a criação de facções
esotéricas, cada qual pretendendo gozar de informações
específicas e privilegiadas sobre o mundo dos espíritos,
Kardec formulou cláusulas científicas e racionais muito
precisas. Entre elas citamos só de passagem o controle universal
do ensino dos espíritos e as repetidas afirmações
de Kardec e dos espíritos sobre o privilégio da dúvida
sobre a certeza.
O controle universal do ensino dos espíritos é o fio
da balança científica de Kardec. Como a maioria dos
fenômenos é de caráter intelectual, e a sua medição
física impossível, o julgo científico da doutrina
espírita não pode prescindir de um controle comparativo
das comunicações em si. Ao tempo de Kardec já
haviam inúmeras teorias e até mesmo crenças enraizadas
sobre a natureza do mundo espiritual, de modo que ele identificou
suas contradições e os perigos de mistificação
inerentes a prática da mediunidade. A resposta técnica
para o problema foi o da amostragem geral das comunicações
espíritas em diferentes cidades e países, por diferentes
médiuns e preferencialmente através de comunicações
espontâneas. Desta forma elimina-se toda a possibilidade de
personalismo, pois os julgamentos são baseados na maioria dos
resultados, e não naqueles peculiares a este ou aquele grupo.
A semelhança ou unanimidade em relação a temas
muito complexos, a identidade de terminologias, metáforas,
exemplos e hipóteses vindos de médiuns desconhecidos
e em condições incomunicáveis, depõem
contra qualquer possibilidade de adotar-se uma concepção
formulada por influencia do meio ou da personalidade dos médiuns.
Adicionalmente ao controle universal das informações
Kardec propunha a postura crítica mais rigorosa mesmo em relação
aqueles conhecimentos que parecessem unânimes majoritários
entre os médiuns.
Longe de adotá-los apenas segundo o critério “democrático”
do controle universal, expunha-os ao crivo da razão e questionava
a sua pertinência, coerência, aplicabilidade e se a teoria
em questão acrescentava algo ao que já se sabia.
Sem condenar o esoterismo, podemos afirmar categoricamente que ele
não pertence à prática espírita, e que
inclusive a confronta. Por estas razoes somos forcados a reconhecer
que toda a forma de esoterismo constitui uma agressão dos princípios
mais básicos do Espiritismo. Não obstante, as influencias
esotéricas são perceptíveis e até frequentes
entre adeptos do Espiritismo.
Com base na definição feita até aqui
discriminamos com segurança alguns dos elementos esotéricos
que não poderiam figurar entre os ensinos e práticas
dos espíritas:
1- Os rituais:
Pois todo tipo de ritual é, por definição,
uma imposição comportamental que prescinde de justificação.
O passe a fluidificação da água, por exemplo,
são amplamente justificados dentro dos conceitos espíritas
referentes aos fenômenos naturais, e se estabeleceram por
confirmação de seus resultados positivos através
da experiência. A preferência por roupas ou adereços
da cor branca, por outro lado, não possui nenhuma destas
prerrogativas, sendo difundida de modo dogmático e ritualístico,
por forca de tradição e argumentos de autoridade.
É, pois, uma prática esotérica, na medida em
que seus defensores alegam haver razoes para o seu uso, mas estas
razoes não são justificáveis racionalmente,
apenas aceitas como revelação dos espíritos.
2- Todas as revelações provenientes de uma
só fonte: Uma vez que só podemos garantir
uma análise racional de informações amplamente
verificadas através de vários médiuns sem predisposição
prévia a determinadas ideias. Assim, todas as informações
extras transmitidas por via mediúnica devem ser colocadas
primeiramente sob suspeita até que se comprove a sua suficiente
justificação racional, não importando para
isto o renome do médium. Desta forma, a revelação
dos casos de licantropia, claramente um acréscimo em relação
às informações de que já se dispunha
na época de Kardec, só estabeleceu-se como plausível
por sua concordância lógica com a Doutrina dos Espíritos,
já que se sabe que o perispírito é elemento
plástico submisso ao pensamento e que imagens e fixações
patológicas podem imprimir-lhe condensações
energéticas de longo prazo, e também porque esta informação
foi repetida por múltiplas fontes seguras e independentes.
Por outro lado, revelações que não possuam
sintonia direta com a Doutrina dos Espíritos e que se liguem
exclusivamente a um médium ou espírito devem ser desconsideradas
sem maiores preocupações como não-espíritas.
Enquanto não se firme racional e empiricamente toda a inovação
nas revelações mediúnicas deve ser tida como
esotérica, ou seja, incomprovada, restrita a classe de revelações
especiais a determinado grupo ou pessoa, o que não quer dizer
que seja obrigatoriamente falsa.
3- Toda a informação importada de outro sistema
não científico: É comum entre os espiritualistas
flertar com outras denominações análogas. Mística
indiana, sobretudo o yoga, acumpultura, tai chi, umbanda, xamanismo,
cartomancia e outras práticas são todas mais ou menos
enquadráveis como esotéricas. Novamente isto não
implica a sua falsidade, apenas a sua insuficiência em justificar-se
racional e cientificamente. Os seus praticantes e os espíritas
simpatizantes devem ter a honestidade de não atribuir a estes
processos o nome de ciência, a não ser de modo muito
genérico, como conhecimento e experiência adquirida.
Alguns destes possuem até um aspecto científico, mas
abraçam elementos rituais, revelações não
racionalizadas, simbolismos e hábitos injustificados transmitidos
por autoridade da tradição, sendo desta forma, ao
menos parcialmente, esotéricos. Na medida em que sejam esotéricas,
nenhuma doutrina espiritualista possui afinidade com o Espiritismo.
Isto não é uma condenação a estas práticas,
mas uma exigência de que se apresentem despidas de seus elementos
esotéricos, para que então possam ser aceitas de acordo
com os critérios de racionalidade do Espiritismo.
Fonte:
http://filosofiaespiritismo.blogspot.com/2010/12/mistificacao-e-esoterismo-os-riscos-do.html
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