O conceito de Deus é
o fundamento de toda a filosofia ocidental, porque não é
possível pensar coerentemente a realidade sem um nexo de
integração entre as múltiplas ordens de realidade,
que incluem o pensamento e o sentimento, além da matéria.
Como filosofia, o Espiritismo não poderia deixar de referir-se
a esse conceito fundamental, e ele de fato o faz de maneira consistente,
radicando todos os demais aspectos de seu edifício teórico
sobre um conjunto de ideias sobre Deus e Seus atributos
A filosofia, antes de sua recente
perversão através da ideologia do relativismo cultural,
caracterizou-se em grande parte pela meditação sobre
o pensamento mais alto possível, sobre as causas últimas
de todas as coisas e leis naturais. A ideia da “coisa mais elevada
pensável” foi definida por Aristóteles como teologia,
a ciência de Deus, e, então, a era clássica da
filosofia (Sócrates, Platão e Aristóteles) chegava
ao término com a tese central de que uma causa inteligente
e absoluta era fundamento de todo o ser.
A filosofia helenista, que domina a cultura Ocidental entre o império
de Alexandre e os primeiros três séculos do Império
Romano, reconhecendo-se incapaz de alçar o voo do espírito
até às paragens divinas do pensamento clássico,
voltou-se para o mundo, buscando solucionar o problema mais premente
da felicidade, não raro, contudo, retornando ao conceito de
Deus como único fundamento possível para a solução.
Com o Cristianismo, o mundo viu o nascimento de um pensamento não
mais especulativo, mas transcendentemente inspirado e escorado na
experiência e familiaridade com o divino; o que dobrou corações
até então impermeáveis aos convites do intelecto
e fez nascer no planeta Terra a noção de amor, estreitamente
urdida à de um Deus de infinita compaixão paternal e
comprometimento pessoal com suas criaturas, que surgem na qualidade
de filhos, o que distava muito da ideia impessoal e quase apenas lógica
de um Deus Força ou Lógos, dos gregos.
O Ocidente colheu os amargos frutos de seus excessos e ambições,
vindo a colapsar por dolorosos séculos enquanto civilização,
mas não deixou de amadurecer, no silêncio das almas,
aqueles elevados conceitos, vendo construir-se diante de si a paciente
harmonização entre o racionalismo grego e a mística
cristã, ao ponto de produzirem, como expressões máximas
do entendimento do significado do cristianismo, um modelo prático,
na figura de Francisco de Assis, e um modelo teórico, na figura
de Tomás de Aquino, deixando para sempre o legado do alto voo
do espírito na Idade Média.
Veio a Reforma, que principiou como reação espiritualista
e moral às muitas formas de perversão da Igreja de Roma.
Os reformadores empreenderam esforços titânicos para
extirparem de si e da cristandade os ritualismos vazios, a submissão
da Igreja de Cristo à ordem mundana, a imoralidade e licenciosidade
do clero, mas não lograram converter corações
– porque os seus próprios não estavam –
à puríssima vida cristã, terminando por edificar
igrejas muito semelhantes à que pretendiam derrubar ou reformar.
Esse anticlímax, no entanto, não impediu o movimento
renovador da Renascença e da Reforma de cumprir parcialmente
o seu propósito, inaugurando a liberdade e uma respectiva pluralidade
de interpretações do mundo, da vida e das próprias
Escrituras Sagradas, o que daria ensejo ao pensamento moderno.
É na esteira das ideias de liberdade individual e de um patrimônio
da consciência, então, que inúmeros missionários
seguem levando o pensamento cada vez mais adiante, ora em termos meramente
materiais, para melhoria da vida corpórea, ora em termos mais
espirituais e morais, em perfeita sintonia com as expressões
superlativas da sabedoria de Sócrates, Platão e Jesus.
Produzindo o pensamento moderno, subjetivista e crítico, Descartes
diz em seus Princípios de Filosofia (1644): “17.
Quanto mais perfeições concebemos em uma coisa, tanto
mais devemos também crer que suas causas são ainda mais
perfeitas” (Descartes 1995, 31).
Ora, a causa da alma não pode ser senão algo melhor,
isto é, mais pensante, mais livre e moralmente superior à
própria coisa, ou não a poderia ter produzido. É
irracional pretender que a alma humana derive do nada, da matéria,
que não possuem os seus atributos e perfeições.
O que se reforça no vigésimo ponto: “não
somos a causa de nós mesmos” e, se não temos sequer
entendimento de nós mesmos, ou das coisas, ou de como exatamente
nosso intelecto compreende as coisas, como é possível
que tenhamos ideia de algo sumamente perfeito acima de nós,
senão porque este mesmo Deus implantou em nossa alma estas
ideias (de Si e de Seus atributos), as quais são claríssimas
para a alma. Apesar de termos em nós essas ideias, elas são
patentemente ideias que ultrapassam a nossa capacidade intelectual.
Assim a ideia do infinito, que está presente em nós,
seres finitos, e é causa de embaraço." (Descartes
1995)
John Locke (1632-1704) divide as formas de revelação
divina em natural e propriamente revelada (pelos profetas e Cristo),
alegando que ambas não poderiam se contradizer; no que é
seguido por Isaac Newton, que também renega a doutrina da Trindade.
Fénelon, ao mesmo tempo (1690-1710) refina da filosofia racionalista
de Descartes uma prova mais sutil da existência de Deus, a partir
da demonstração da impossibilidade do materialismo.
Pouco depois (1730-1750), Voltaire protagonizaria o grande movimento
das consciências em favor da liberdade e do fim das superstições
e da “preguiça da razão”, fomentando uma
visão secular de um Deus que não pode amar e se revelar
apenas aos judeus e cristãos, devendo estar indistintamente
em todos os corações de todos os povos, seus filhos.
Finalmente, Alexander Baumgarten (1714-1762) clarifica a separação
entre o conceito de Deus revelado diretamente, na Bíblia, e
o revelado pela razão, estabelecendo que a segunda seria suficiente
para levar qualquer ente de razão a glorificar o Supremo Autor
de tudo.
Preparada para uma revelação maior, a Terra concebe
a restauração do espiritualismo na Era Moderna com Gothold
E. Lessing, (1729-1781) que em A educação do gênero
humano propõe a revelação progressiva, isto
é, que a verdade é desvendada de maneira similar ao
avanço da ciência, sem que em qualquer momento presente
tenhamos a posse da verdade, mas apenas o acúmulo dos estudos,
revelações e meditações proporcionais
à nossa capacidade; e que, quando estamos prontos, Deus permite
uma nova revelação direta, por meio de profetas e místicos,
ou alguma alma mais madura elabora novos elementos a partir de seu
esforço. Estas almas mais maduras, conclui Lessing, não
podem ter sido assim concebidas por Deus, em vantagem sobre as demais
almas, mas devem ter começado simples e ignorantes como as
demais. A única solução racional para equacionar
de um lado a justiça de Deus e, de outro, a diferença
entre o amadurecimento dos espíritos seria o princípio
da reencarnação.
Estudando com Pestalozzi, Kardec teve o privilégio de instruir-se
em um ambiente bilíngue (franco-alemão), que lhe permitia
conhecer as elaborações dos grandes pensadores franceses
e alemães em profundidade. O próprio Pestalozzi era
um pensador iluminista, que via a Deus como princípio causal
de todas as coisas, não estando restrito aos traços
culturais que caracterizam a Sua apresentação aos judeus
e primeiros cristãos. Desta tradição iluminista,
Kardec aprendeu que o Evangelho deveria ser lido segundo as luzes
da razão, e nunca o contrário, isto é, nunca
dobrando a razão para acomodá-la a algo contido nas
Sagradas Escrituras. Não podia ser assim, pois, como observa
Kardec, as Sagradas Escrituras foram escritas com linguagem mística
e simbólica (Kardec 2005) que impede a interpretação
literal e obriga ao uso de uma chave de leitura crítica.
Para a razão, tanto quanto para a Bíblia, Deus é
o ponto fulcral em torno do qual gravitam todas as ideias e pensamentos,
atuais ou possíveis. Isto porque nenhuma ideia possui sustentação
enquanto apartada de um fundamento metafísico, um nexo de sentido
capaz de justificá-la.
Ora, desde Sócrates e Platão que se sabe que as ideias
materialistas, únicas que pretendem negar que Deus seja a fonte
da realidade, acabam por colapsar diante da impossibilidade de se
justificarem a si próprias enquanto ideias. Em outras palavras,
a alternativa à filosofia, que encontra em Deus o fundamento
mental de todas as coisas, é a doutrina em si contraditória
de que o observado pela mente (a matéria) é o fundamento
da própria mente. Desta doutrina anti-filosófica decorrem
as recentes e igualmente inconsistentes doutrinas da psicanálise,
do marxismo e do positivismo, gestadas no século XIX, quando
o ódio cultural à religião não permitia
admitir que o fundo filosófico (metafísico) do pensamento
humano é a ideia de Deus.
Kardec deixa claro que
é o entendimento filosófico superior de
Jesus que está na base da fé e da profundidade moral
de sua doutrina...
Não ignorando as contribuições
das doutrinas que tinham sua ojeriza à metafísica e
à religião relativamente justificadas pelos descalabros
perpetrados pelas igrejas, é forçoso observar que o
reequilíbrio do pensamento ao cânone da racionalidade
exige a exclusão das doutrinas que embalde buscam fugir ao
fundamento idealista da realidade. Ter se alinhado a esta longa tradição
de idealismo, racionalismo e teísmo, que caracteriza a filosofia
e o pensamento em geral, em um momento de eclipse dessas ideias e
alinhamento quase automático ao seu oposto, o materialismo,
é um dos méritos da Doutrina Espírita.
É belo e sugestivo que Kardec comece e encerre o cânone
da filosofia espírita, respectivamente em O Livro dos Espíritos
e em A Gênese, com estudos sobre o conceito de Deus,
como que a evidenciar que nenhum outro assunto rouba ao Autor do cosmo
a primazia.
“A parte mais importante da revelação do Cristo,
no sentido de fonte primária, de pedra angular de toda a sua
doutrina é o ponto de vista inteiramente novo sob que considera
ele a Divindade”. (Kardec 1999, 23) Esta sentença opera
diversas marcações filosóficas: torna Jesus um
filósofo; discrimina a preocupação eminentemente
filosófica de Kardec com as causas primárias dos demais
fenômenos e coisas; aponta o modo e a perspectiva segundo os
quais se devem começar a interpretação dos fatos
e das leis morais contidos nos Evangelhos; recomenda a meditação
sobre o conceito de Deus como solução para outros problemas
filosóficos fundamentais. Tais marcações, como
pode-se perceber, operam em níveis teóricos e práticos.
Como iluminista, Kardec pensa o conceito de Deus conforme a grandeza
que o alça acima dos interesses das religiões e das
igrejas, expressões humanas e muitas vezes mesquinhas, diminutas
da ideia de Deus. Como espírita, Kardec deixa claro que é
o entendimento filosófico superior de Jesus que está
na base da fé e da profundidade moral de sua doutrina, as quais
seria impossível se apresentassem em desconformidade com um
igualmente alto fundamento.
Livre de dogmatismos, Kardec não apresenta em seu apanhado
racional dos ditados dos Espíritos um conceito estanque de
Deus. Semelhantemente a Immanuel Kant, pensador maior do século
anterior, Kardec organiza as questões de modo a evidenciarem
o caráter conjectural e postulativo do conceito de Deus. A
Doutrina dos Espíritos, assim, não apresenta uma ideia
de Deus pronta e permanente, a qual cabe ao crente acatar, e sim um
horizonte através do qual a razão vislumbra o ponto
máximo de seu entendimento atual da realidade. Embaraçada
no primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos,
a razão humana, papel figurado simbolicamente por Kardec, inquere
a si mesma e aos Céus a respeito dessa infinita e suprema inteligência
que seria a causa de todas as coisas, obtendo como respostas às
suas perguntas, diretrizes de trabalho e meditação,
não ídolos para adorar e cristalizar em pretensas certezas.
Pouco depois, traçando as balizas das leis morais, Kardec e
seus interlocutores procederiam do mesmo modo, evitando códigos
e mandamentos comportamentais, necessariamente exteriores, datados
e limitados; apontando, ao invés disso, para princípios
abstratos que permitem às consciências individuais julgarem
por si aquilo que é capaz de lhes garantir a dignidade, a paz
de espírito e a felicidade.