Espiritualidade e Sociedade



Humberto Schubert Coelho

>   O Conceito de Deus

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Humberto Schubert Coelho
>  O Conceito de Deus

 

 

O conceito de Deus é o fundamento de toda a filosofia ocidental, porque não é possível pensar coerentemente a realidade sem um nexo de integração entre as múltiplas ordens de realidade, que incluem o pensamento e o sentimento, além da matéria. Como filosofia, o Espiritismo não poderia deixar de referir-se a esse conceito fundamental, e ele de fato o faz de maneira consistente, radicando todos os demais aspectos de seu edifício teórico sobre um conjunto de ideias sobre Deus e Seus atributos

 

 

A filosofia, antes de sua recente perversão através da ideologia do relativismo cultural, caracterizou-se em grande parte pela meditação sobre o pensamento mais alto possível, sobre as causas últimas de todas as coisas e leis naturais. A ideia da “coisa mais elevada pensável” foi definida por Aristóteles como teologia, a ciência de Deus, e, então, a era clássica da filosofia (Sócrates, Platão e Aristóteles) chegava ao término com a tese central de que uma causa inteligente e absoluta era fundamento de todo o ser.

A filosofia helenista, que domina a cultura Ocidental entre o império de Alexandre e os primeiros três séculos do Império Romano, reconhecendo-se incapaz de alçar o voo do espírito até às paragens divinas do pensamento clássico, voltou-se para o mundo, buscando solucionar o problema mais premente da felicidade, não raro, contudo, retornando ao conceito de Deus como único fundamento possível para a solução.

Com o Cristianismo, o mundo viu o nascimento de um pensamento não mais especulativo, mas transcendentemente inspirado e escorado na experiência e familiaridade com o divino; o que dobrou corações até então impermeáveis aos convites do intelecto e fez nascer no planeta Terra a noção de amor, estreitamente urdida à de um Deus de infinita compaixão paternal e comprometimento pessoal com suas criaturas, que surgem na qualidade de filhos, o que distava muito da ideia impessoal e quase apenas lógica de um Deus Força ou Lógos, dos gregos.

O Ocidente colheu os amargos frutos de seus excessos e ambições, vindo a colapsar por dolorosos séculos enquanto civilização, mas não deixou de amadurecer, no silêncio das almas, aqueles elevados conceitos, vendo construir-se diante de si a paciente harmonização entre o racionalismo grego e a mística cristã, ao ponto de produzirem, como expressões máximas do entendimento do significado do cristianismo, um modelo prático, na figura de Francisco de Assis, e um modelo teórico, na figura de Tomás de Aquino, deixando para sempre o legado do alto voo do espírito na Idade Média.

Veio a Reforma, que principiou como reação espiritualista e moral às muitas formas de perversão da Igreja de Roma. Os reformadores empreenderam esforços titânicos para extirparem de si e da cristandade os ritualismos vazios, a submissão da Igreja de Cristo à ordem mundana, a imoralidade e licenciosidade do clero, mas não lograram converter corações – porque os seus próprios não estavam – à puríssima vida cristã, terminando por edificar igrejas muito semelhantes à que pretendiam derrubar ou reformar. Esse anticlímax, no entanto, não impediu o movimento renovador da Renascença e da Reforma de cumprir parcialmente o seu propósito, inaugurando a liberdade e uma respectiva pluralidade de interpretações do mundo, da vida e das próprias Escrituras Sagradas, o que daria ensejo ao pensamento moderno.

É na esteira das ideias de liberdade individual e de um patrimônio da consciência, então, que inúmeros missionários seguem levando o pensamento cada vez mais adiante, ora em termos meramente materiais, para melhoria da vida corpórea, ora em termos mais espirituais e morais, em perfeita sintonia com as expressões superlativas da sabedoria de Sócrates, Platão e Jesus.

Produzindo o pensamento moderno, subjetivista e crítico, Descartes diz em seus Princípios de Filosofia (1644): “17. Quanto mais perfeições concebemos em uma coisa, tanto mais devemos também crer que suas causas são ainda mais perfeitas”
(Descartes 1995, 31). Ora, a causa da alma não pode ser senão algo melhor, isto é, mais pensante, mais livre e moralmente superior à própria coisa, ou não a poderia ter produzido. É irracional pretender que a alma humana derive do nada, da matéria, que não possuem os seus atributos e perfeições. O que se reforça no vigésimo ponto: “não somos a causa de nós mesmos” e, se não temos sequer entendimento de nós mesmos, ou das coisas, ou de como exatamente nosso intelecto compreende as coisas, como é possível que tenhamos ideia de algo sumamente perfeito acima de nós, senão porque este mesmo Deus implantou em nossa alma estas ideias (de Si e de Seus atributos), as quais são claríssimas para a alma. Apesar de termos em nós essas ideias, elas são patentemente ideias que ultrapassam a nossa capacidade intelectual. Assim a ideia do infinito, que está presente em nós, seres finitos, e é causa de embaraço." (Descartes 1995) 

John Locke (1632-1704) divide as formas de revelação divina em natural e propriamente revelada (pelos profetas e Cristo), alegando que ambas não poderiam se contradizer; no que é seguido por Isaac Newton, que também renega a doutrina da Trindade. Fénelon, ao mesmo tempo (1690-1710) refina da filosofia racionalista de Descartes uma prova mais sutil da existência de Deus, a partir da demonstração da impossibilidade do materialismo. Pouco depois (1730-1750), Voltaire protagonizaria o grande movimento das consciências em favor da liberdade e do fim das superstições e da “preguiça da razão”, fomentando uma visão secular de um Deus que não pode amar e se revelar apenas aos judeus e cristãos, devendo estar indistintamente em todos os corações de todos os povos, seus filhos. Finalmente, Alexander Baumgarten (1714-1762) clarifica a separação entre o conceito de Deus revelado diretamente, na Bíblia, e o revelado pela razão, estabelecendo que a segunda seria suficiente para levar qualquer ente de razão a glorificar o Supremo Autor de tudo.

Preparada para uma revelação maior, a Terra concebe a restauração do espiritualismo na Era Moderna com Gothold E. Lessing, (1729-1781) que em A educação do gênero humano propõe a revelação progressiva, isto é, que a verdade é desvendada de maneira similar ao avanço da ciência, sem que em qualquer momento presente tenhamos a posse da verdade, mas apenas o acúmulo dos estudos, revelações e meditações proporcionais à nossa capacidade; e que, quando estamos prontos, Deus permite uma nova revelação direta, por meio de profetas e místicos, ou alguma alma mais madura elabora novos elementos a partir de seu esforço. Estas almas mais maduras, conclui Lessing, não podem ter sido assim concebidas por Deus, em vantagem sobre as demais almas, mas devem ter começado simples e ignorantes como as demais. A única solução racional para equacionar de um lado a justiça de Deus e, de outro, a diferença entre o amadurecimento dos espíritos seria o princípio da reencarnação.

Estudando com Pestalozzi, Kardec teve o privilégio de instruir-se em um ambiente bilíngue (franco-alemão), que lhe permitia conhecer as elaborações dos grandes pensadores franceses e alemães em profundidade. O próprio Pestalozzi era um pensador iluminista, que via a Deus como princípio causal de todas as coisas, não estando restrito aos traços culturais que caracterizam a Sua apresentação aos judeus e primeiros cristãos. Desta tradição iluminista, Kardec aprendeu que o Evangelho deveria ser lido segundo as luzes da razão, e nunca o contrário, isto é, nunca dobrando a razão para acomodá-la a algo contido nas Sagradas Escrituras. Não podia ser assim, pois, como observa Kardec, as Sagradas Escrituras foram escritas com linguagem mística e simbólica (Kardec 2005) que impede a interpretação literal e obriga ao uso de uma chave de leitura crítica.

Para a razão, tanto quanto para a Bíblia, Deus é o ponto fulcral em torno do qual gravitam todas as ideias e pensamentos, atuais ou possíveis. Isto porque nenhuma ideia possui sustentação enquanto apartada de um fundamento metafísico, um nexo de sentido capaz de justificá-la.

Ora, desde Sócrates e Platão que se sabe que as ideias materialistas, únicas que pretendem negar que Deus seja a fonte da realidade, acabam por colapsar diante da impossibilidade de se justificarem a si próprias enquanto ideias. Em outras palavras, a alternativa à filosofia, que encontra em Deus o fundamento mental de todas as coisas, é a doutrina em si contraditória de que o observado pela mente (a matéria) é o fundamento da própria mente. Desta doutrina anti-filosófica decorrem as recentes e igualmente inconsistentes doutrinas da psicanálise, do marxismo e do positivismo, gestadas no século XIX, quando o ódio cultural à religião não permitia admitir que o fundo filosófico (metafísico) do pensamento humano é a ideia de Deus.

 

Kardec deixa claro que é o entendimento filosófico superior de
Jesus que está na base da fé e da profundidade moral de sua doutrina..
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Não ignorando as contribuições das doutrinas que tinham sua ojeriza à metafísica e à religião relativamente justificadas pelos descalabros perpetrados pelas igrejas, é forçoso observar que o reequilíbrio do pensamento ao cânone da racionalidade exige a exclusão das doutrinas que embalde buscam fugir ao fundamento idealista da realidade. Ter se alinhado a esta longa tradição de idealismo, racionalismo e teísmo, que caracteriza a filosofia e o pensamento em geral, em um momento de eclipse dessas ideias e alinhamento quase automático ao seu oposto, o materialismo, é um dos méritos da Doutrina Espírita.

É belo e sugestivo que Kardec comece e encerre o cânone da filosofia espírita, respectivamente em O Livro dos Espíritos e em A Gênese, com estudos sobre o conceito de Deus, como que a evidenciar que nenhum outro assunto rouba ao Autor do cosmo a primazia.

“A parte mais importante da revelação do Cristo, no sentido de fonte primária, de pedra angular de toda a sua doutrina é o ponto de vista inteiramente novo sob que considera ele a Divindade”. (Kardec 1999, 23) Esta sentença opera diversas marcações filosóficas: torna Jesus um filósofo; discrimina a preocupação eminentemente filosófica de Kardec com as causas primárias dos demais fenômenos e coisas; aponta o modo e a perspectiva segundo os quais se devem começar a interpretação dos fatos e das leis morais contidos nos Evangelhos; recomenda a meditação sobre o conceito de Deus como solução para outros problemas filosóficos fundamentais. Tais marcações, como pode-se perceber, operam em níveis teóricos e práticos.

Como iluminista, Kardec pensa o conceito de Deus conforme a grandeza que o alça acima dos interesses das religiões e das igrejas, expressões humanas e muitas vezes mesquinhas, diminutas da ideia de Deus. Como espírita, Kardec deixa claro que é o entendimento filosófico superior de Jesus que está na base da fé e da profundidade moral de sua doutrina, as quais seria impossível se apresentassem em desconformidade com um igualmente alto fundamento.

Livre de dogmatismos, Kardec não apresenta em seu apanhado racional dos ditados dos Espíritos um conceito estanque de Deus. Semelhantemente a Immanuel Kant, pensador maior do século anterior, Kardec organiza as questões de modo a evidenciarem o caráter conjectural e postulativo do conceito de Deus. A Doutrina dos Espíritos, assim, não apresenta uma ideia de Deus pronta e permanente, a qual cabe ao crente acatar, e sim um horizonte através do qual a razão vislumbra o ponto máximo de seu entendimento atual da realidade. Embaraçada no primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos, a razão humana, papel figurado simbolicamente por Kardec, inquere a si mesma e aos Céus a respeito dessa infinita e suprema inteligência que seria a causa de todas as coisas, obtendo como respostas às suas perguntas, diretrizes de trabalho e meditação, não ídolos para adorar e cristalizar em pretensas certezas.

Pouco depois, traçando as balizas das leis morais, Kardec e seus interlocutores procederiam do mesmo modo, evitando códigos e mandamentos comportamentais, necessariamente exteriores, datados e limitados; apontando, ao invés disso, para princípios abstratos que permitem às consciências individuais julgarem por si aquilo que é capaz de lhes garantir a dignidade, a paz de espírito e a felicidade.

 

 

Bibliografia

DESCARTES, René. 1995. Los princípios de la filosofía. Barcelona: Alianza Editorial.
KARDEC, Allan. 1999. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB.
KARDEC, Allan. 2005. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB.
KARDEC, Allan. 2007. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB.



Fonte: https://cei-spiritistcouncil.com/wp-content/uploads/2021/03/02_Revue_Spirit_2021_janeiro.pdf

 

 


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