Espiritualidade e Sociedade



Humberto Schubert Coelho

>   Lógica & Metafísica: Entre o livre-arbítrio e a lei de causalidade: uma análise lógica e metafísica

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Humberto Schubert Coelho
>   Lógica & Metafísica: Entre o livre-arbítrio e a lei de causalidade: uma análise lógica e metafísica

 


Resumo

A lei de causa e efeito é uma das estruturas mais básicas de ordenação da natureza, sem a qual nenhum conhecimento seria possível. Entender fenômenos significa conhecer-lhes as causas que motivaram sua existência, e ser capaz de prever em que condições fenômenos semelhantes podem ocorrer. Contudo, ou a causalidade opera de maneira puramente mecânica, e nesse caso temos uma visão determinista do mundo, ou existe a possibilidade de causar eventos a partir de decisões livres de um agente consciente. Nesse último caso, não apenas reconhecemos esse agente como responsável pelos eventos que produziu como também temos de explicar de que maneira agentes livres alteram a ordem causal natural.

 


O filósofo Immanuel Kant reconheceu como um conflito da razão o fato de ela elaborar duas ordens de causalidade possíveis, a mecânica e a livre. A ordem mecânica é causada apenas passivamente, de maneira cega, como as bolas de bilhar que não escolhem sua trajetória, a força que comunicam às outras no impacto, e, consequentemente, as mudanças de direção ocasionadas. Tudo isso ocorre de maneira exata e, portanto, previsível. Agentes livres, isto é, pessoas, são capazes de um
tipo muito diferente de ação, caracterizada justamente pela intenção e pela espontaneidade. Assim, ao escolher erguer o braço ou dizer algo a alguém, não sou determinado por nenhuma força externa ou interna que me obrigue a erguer o braço ou dizer o que pretendo dizer. Essa discrepância, contudo, parecia um problema para Kant, pois entendemos a natureza como um sistema mecânico de causa e efeito, e uma ação livre acrescentaria ao sistema mecânico uma causa não mecânica. Ele investiu grande energia nesse impasse em sua Crítica da razão pura, mas o resultado não soa satisfatório, e estava condicionado à mentalidade fortemente mecanicista da época.


O problema com o modelo de Kant era a assunção de um dualismo na realidade. Sem assentar sobre uma causa única, o sistema filosófico não conseguia conciliar dois mundos aparentemente opostos. Filósofos posteriores, na virada do século XIX, entenderam a necessidade premente de produzir para a filosofia uma perfeita unidade sistemática. A melhor solução encontrada foi a pressuposição de uma unidade absoluta de toda realidade, material e pensante, de modo que todos os eventos estivessem em harmonia, e a contradição entre as leis naturais e as morais não passaria de uma contradição aparente, condicionada por uma perspectiva limitada e não global, não integral da realidade.

 

 

Em suas investigações metafísicas, Allan Kardec parece ter alcançado solução semelhante para
o problema da acomodação entre a lei de causa e efeito e a lei moral. Para começar, O Livro dos Espíritos resgata a noção de Deus como princípio absoluto da causalidade (causa prima). Sendo derivadas, tanto as causas materiais quanto as inteligentes estão, assim, acomodadas sob o governo da causa diretora primária da realidade. Kant definira a existência dessa causa primeira como hipótese ideal reguladora do pensamento, isto é, questão de fé racional, mas reconhece que sem ela a razão é incapaz de compreender satisfatoriamente a realidade.

Definindo a liberdade, os autores de O Livro dos Espíritos afirmam que a liberdade plena só existiria no pensamento (1), já que todas as ações materiais estão limitadas e condicionadas pelas demais leis naturais e pelas ações de outros seres pensantes. Do que discutimos anteriormente, então, resulta um problema. Nada parece impedir e obstaculizar a causalidade natural, mas o ser humano encontra muitos empecilhos à sua liberdade, e só a tem plena no pensamento. Ademais, outro problema agrava essa situação, o livre-arbítrio frequentemente é mal utilizado e leva ao constrangimento e tolhimento da liberdade do próprio agente e/ou da liberdade alheia. Assim como na tradição filosófica pouco anterior, portanto, o modelo espírita reconhece o livre-arbítrio como o “ponto problemático” da lei de causa e efeito.

1. Ver Kardec, “O Livro dos Espíritos”, q. 833 e 835.

Dizer que o agente é livre implica em três coisas diferentes. 1 - Que é livre para iniciar uma nova série causal material impossível sem o concurso de um agente inteligente. Ao decidir desviar o curso de um rio, o homem não age apenas como força natural, senão também como transformador intencional do curso natural dos eventos. Por isso dizemos que os seres inteligentes compõem um princípio peculiar da natureza, capaz de intelectualizar a matéria. 2 - Que é responsável pelos seus atos, isto é, que os efeitos são julgados tendo em vista uma causa livre, e não mecânica. Na ordem natural, não culpamos a causa material pelos efeitos, mesmo quando esses se mostrem danosos. Trata-se da ação “cega” da matéria. Ninguém considera mau o leão que abate uma pessoa, pois, para o leão, o animal humano é fonte de alimento como qualquer outro. Atribuímos responsabilidade moral aos agentes livres por sabermos que eles poderiam ter escolhido outro curso de ação. São causadores conscientes e livres de tudo o que escolheram fazer. 3 - Que esta força peculiar da natureza (a força inteligente e livre) pode ser medida segundo a intensidade. Como toda a força natural possui grandeza relativa, a liberdade e a capacidade de ação/execução humana também tem de respeitar esse princípio na medida em que é causa natural de eventos, no mundo físico. Podemos medir essa intensidade materialmente, pelo grau de recursos ou poder sobre outros seres humanos que cada agente possui, ou podemos medir a intensidade de forma puramente moral, pela capacidade de superar os condicionamentos das paixões e impor sua vontade de acordo com a recomendação da razão. A esta segunda forma de poder chamamos santidade, força de vontade, ascendência espiritual ou grandeza de espírito.

 

 

O livre-arbítrio depende, portanto, de duas condições: compreensão clara das possibilidades de escolha e vontade para fazer valer a decisão da razão sobre as influências das paixões. Não poucos pensadores materialistas tentaram invalidar a filosofia moral negando exatamente a capacidade ou mesmo a legitimidade da imposição da vontade racional sobre os desejos, defendendo estes últimos como mais naturais e, portanto, mais verdadeiros. Esta posição não deixa de conter certa verdade, uma vez que a capacidade de administrar racionalmente o comportamento e as emoções é, de fato, excepcional, ao passo que a subserviência aos interesses egoísticos e automatismos biológicos é a regra no comportamento humano. Dessas condições de funcionamento do livre-arbítrio derivam duas grandes máximas da filosofia espírita: amai-vos e instruí-vos. Amar é fazer da boa vontade o móbil das nossas ações, escolhendo sempre conforme o valor moral e não conforme o arrastamento dos interesses produzidos pelas paixões. Instruir é dar a conhecer as condições e as possibilidades de vivência, permitindo a cada indivíduo julgar por si e calcular as consequências de seus atos e escolhas.

A esta altura, o amigo leitor treinado em filosofia já observou que a “lógica moral” destacada no título do presente ensaio faz dupla referência a uma lógica categorial e operacional, de tipo clássico, como também a uma lógica metacategorial, isto é, sobre as condições de possibilidade de vigência das próprias estruturas básicas da moralidade: quais livre--arbítrio, liberdade, responsabilidade, lei moral etc. Em outras e mais simples palavras, a formação dos princípios morais inclui tanto “achar” princípios elementares de funcionamento do pensamento coerente (lógica) quanto desvelar a formação, origem ou produção metafísica dos próprios parâmetros e elementos, coisa de que, lamentavelmente, nenhum pensador espírita ainda se ocupou. Consequentemente, tomamos emprestados os axiomas e princípios conforme expostos em O Livro dos Espíritos e, quando muito, comparamo-los com uma filosofia moral estabelecida na tradição filosófica.

Na base de tão grande problema da filosofia espírita está a relativa negligência para com a metafísica, a qual muitos pensadores espíritas seguem qualificando segundo as concepções de meados do século XIX, e em favor de modelos positivistas ou simplesmente cientificistas. (2)

2. Tratei desse problema em (Coelho, 2019).

 

 

Resolver problemas filosóficos depende de os desdobrar de princípios primeiros, só elaboráveis metafisicamente. Na metafísica espírita, o princípio de liberdade deriva do conceito panenteísta de fundamento da realidade. Como em todo modelo panenteísta, um Deus de vivos tem de ser um Deus vivo, e um Deus vivo, necessariamente, tem de ser Deus de vidas livres em constante autoformação. Da crítica aos modelos desgastados de Deus, portanto, que aparece com perfeita clareza no primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos e de A Gênese, firma-se a exigência por um conceito de Deus eminentemente moral e espiritual, contraposto a modelos antropomórficos, mecanicistas ou panteístas. Desse conceito espiritualizado de Deus, decorre inevitavelmente o conceito forte de liberdade, e um conceito de progresso do livre-arbítrio que acompanha o progresso da consciência, do entendimento. Em moldes obviamente idealistas, um Deus que é eminentemente consciência produz consciências eminentemente autônomas. A causa inteligente do mundo não poderia querer causar outra coisa senão um mundo de liberdade, um mundo moral.

 

 

Bibliografia

COELHO, Humberto S. 2019. “As matrizes filosóficas do Espiritualismo Moderno”. In Espiritismo em Perspectivas, GOMES, Adriana; André S. Cunha e Marcelo Gulão. Salvador: Sagga.

KARDEC, Allan. 2003. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB.

 

 

Fonte: https://cei-spiritistcouncil.com/wp-content/uploads/2022/10/Revue-Spirit-N09_out_2022.pdf
> Ano 165 | Nº 09 | outubro de 2022 - trimestral | D L 403263/15 | ISSN 2184-8068

 

 

 


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