Resumo
A lei de causa e efeito é uma das estruturas mais básicas
de ordenação da natureza, sem a qual nenhum conhecimento
seria possível. Entender fenômenos significa conhecer-lhes
as causas que motivaram sua existência, e ser capaz de prever
em que condições fenômenos semelhantes podem
ocorrer. Contudo, ou a causalidade opera de maneira puramente
mecânica, e nesse caso temos uma visão determinista
do mundo, ou existe a possibilidade de causar eventos a partir
de decisões livres de um agente consciente. Nesse último
caso, não apenas reconhecemos esse agente como responsável
pelos eventos que produziu como também temos de explicar
de que maneira agentes livres alteram a ordem causal natural.
O filósofo Immanuel Kant reconheceu como
um conflito da razão o fato de ela elaborar duas ordens de
causalidade possíveis, a mecânica e a livre. A ordem
mecânica é causada apenas passivamente, de maneira cega,
como as bolas de bilhar que não escolhem sua trajetória,
a força que comunicam às outras no impacto, e, consequentemente,
as mudanças de direção ocasionadas. Tudo isso
ocorre de maneira exata e, portanto, previsível. Agentes livres,
isto é, pessoas, são capazes de um
tipo muito diferente de ação, caracterizada justamente
pela intenção e pela espontaneidade. Assim, ao escolher
erguer o braço ou dizer algo a alguém, não sou
determinado por nenhuma força externa ou interna que me obrigue
a erguer o braço ou dizer o que pretendo dizer. Essa discrepância,
contudo, parecia um problema para Kant, pois entendemos a natureza
como um sistema mecânico de causa e efeito, e uma ação
livre acrescentaria ao sistema mecânico uma causa não
mecânica. Ele investiu grande energia nesse impasse em sua Crítica
da razão pura, mas o resultado não soa satisfatório,
e estava condicionado à mentalidade fortemente mecanicista
da época.
O problema com o modelo de Kant era a assunção
de um dualismo na realidade. Sem assentar sobre uma causa única,
o sistema filosófico não conseguia conciliar dois mundos
aparentemente opostos. Filósofos posteriores, na virada do
século XIX, entenderam a necessidade premente de produzir para
a filosofia uma perfeita unidade sistemática. A melhor solução
encontrada foi a pressuposição de uma unidade absoluta
de toda realidade, material e pensante, de modo que todos os eventos
estivessem em harmonia, e a contradição entre as leis
naturais e as morais não passaria de uma contradição
aparente, condicionada por uma perspectiva limitada e não global,
não integral da realidade.
Em suas investigações
metafísicas, Allan Kardec parece ter alcançado solução
semelhante para
o problema da acomodação entre a lei de causa e efeito
e a lei moral. Para começar, O Livro dos Espíritos
resgata a noção de Deus como princípio absoluto
da causalidade (causa prima). Sendo derivadas, tanto as causas
materiais quanto as inteligentes estão, assim, acomodadas sob
o governo da causa diretora primária da realidade. Kant definira
a existência dessa causa primeira como hipótese ideal
reguladora do pensamento, isto é, questão de fé
racional, mas reconhece que sem ela a razão é incapaz
de compreender satisfatoriamente a realidade.
Definindo a liberdade, os autores de O Livro dos Espíritos
afirmam que a liberdade plena só existiria no pensamento
(1), já que todas as ações materiais estão
limitadas e condicionadas pelas demais leis naturais e pelas ações
de outros seres pensantes. Do que discutimos anteriormente, então,
resulta um problema. Nada parece impedir e obstaculizar a causalidade
natural, mas o ser humano encontra muitos empecilhos à sua
liberdade, e só a tem plena no pensamento. Ademais, outro problema
agrava essa situação, o livre-arbítrio frequentemente
é mal utilizado e leva ao constrangimento e tolhimento da liberdade
do próprio agente e/ou da liberdade alheia. Assim como na tradição
filosófica pouco anterior, portanto, o modelo espírita
reconhece o livre-arbítrio como o “ponto problemático”
da lei de causa e efeito.
1. Ver Kardec, “O Livro dos Espíritos”,
q. 833 e 835.
Dizer que o agente é livre implica em três coisas diferentes.
1 - Que é livre para iniciar uma nova série causal material
impossível sem o concurso de um agente inteligente. Ao decidir
desviar o curso de um rio, o homem não age apenas como força
natural, senão também como transformador intencional
do curso natural dos eventos. Por isso dizemos que os seres inteligentes
compõem um princípio peculiar da natureza, capaz de
intelectualizar a matéria. 2 - Que é responsável
pelos seus atos, isto é, que os efeitos são julgados
tendo em vista uma causa livre, e não mecânica. Na ordem
natural, não culpamos a causa material pelos efeitos, mesmo
quando esses se mostrem danosos. Trata-se da ação “cega”
da matéria. Ninguém considera mau o leão que
abate uma pessoa, pois, para o leão, o animal humano é
fonte de alimento como qualquer outro. Atribuímos responsabilidade
moral aos agentes livres por sabermos que eles poderiam ter escolhido
outro curso de ação. São causadores conscientes
e livres de tudo o que escolheram fazer. 3 - Que esta força
peculiar da natureza (a força inteligente e livre) pode ser
medida segundo a intensidade. Como toda a força natural possui
grandeza relativa, a liberdade e a capacidade de ação/execução
humana também tem de respeitar esse princípio na medida
em que é causa natural de eventos, no mundo físico.
Podemos medir essa intensidade materialmente, pelo grau de recursos
ou poder sobre outros seres humanos que cada agente possui, ou podemos
medir a intensidade de forma puramente moral, pela capacidade de superar
os condicionamentos das paixões e impor sua vontade de acordo
com a recomendação da razão. A esta segunda forma
de poder chamamos santidade, força de vontade, ascendência
espiritual ou grandeza de espírito.
O livre-arbítrio depende, portanto,
de duas condições: compreensão clara das possibilidades
de escolha e vontade para fazer valer a decisão da razão
sobre as influências das paixões. Não poucos pensadores
materialistas tentaram invalidar a filosofia moral negando exatamente
a capacidade ou mesmo a legitimidade da imposição da
vontade racional sobre os desejos, defendendo estes últimos
como mais naturais e, portanto, mais verdadeiros. Esta posição
não deixa de conter certa verdade, uma vez que a capacidade
de administrar racionalmente o comportamento e as emoções
é, de fato, excepcional, ao passo que a subserviência
aos interesses egoísticos e automatismos biológicos
é a regra no comportamento humano. Dessas condições
de funcionamento do livre-arbítrio derivam duas grandes máximas
da filosofia espírita: amai-vos e instruí-vos. Amar
é fazer da boa vontade o móbil das nossas ações,
escolhendo sempre conforme o valor moral e não conforme o arrastamento
dos interesses produzidos pelas paixões. Instruir é
dar a conhecer as condições e as possibilidades de vivência,
permitindo a cada indivíduo julgar por si e calcular as consequências
de seus atos e escolhas.
A esta altura, o amigo leitor treinado em filosofia já observou
que a “lógica moral” destacada no título
do presente ensaio faz dupla referência a uma lógica
categorial e operacional, de tipo clássico, como também
a uma lógica metacategorial, isto é, sobre as condições
de possibilidade de vigência das próprias estruturas
básicas da moralidade: quais livre--arbítrio, liberdade,
responsabilidade, lei moral etc. Em outras e mais simples palavras,
a formação dos princípios morais inclui tanto
“achar” princípios elementares de funcionamento
do pensamento coerente (lógica) quanto desvelar a formação,
origem ou produção metafísica dos próprios
parâmetros e elementos, coisa de que, lamentavelmente, nenhum
pensador espírita ainda se ocupou. Consequentemente, tomamos
emprestados os axiomas e princípios conforme expostos em O
Livro dos Espíritos e, quando muito, comparamo-los com
uma filosofia moral estabelecida na tradição filosófica.
Na base de tão grande problema da filosofia espírita
está a relativa negligência para com a metafísica,
a qual muitos pensadores espíritas seguem qualificando segundo
as concepções de meados do século XIX, e em favor
de modelos positivistas ou simplesmente cientificistas. (2)
2. Tratei desse problema em (Coelho, 2019).
Resolver problemas filosóficos
depende de os desdobrar de princípios primeiros, só
elaboráveis metafisicamente. Na metafísica espírita,
o princípio de liberdade deriva do conceito panenteísta
de fundamento da realidade. Como em todo modelo panenteísta,
um Deus de vivos tem de ser um Deus vivo, e um Deus vivo, necessariamente,
tem de ser Deus de vidas livres em constante autoformação.
Da crítica aos modelos desgastados de Deus, portanto, que aparece
com perfeita clareza no primeiro capítulo de O Livro dos
Espíritos e de A Gênese, firma-se a exigência
por um conceito de Deus eminentemente moral e espiritual, contraposto
a modelos antropomórficos, mecanicistas ou panteístas.
Desse conceito espiritualizado de Deus, decorre inevitavelmente o
conceito forte de liberdade, e um conceito de progresso do livre-arbítrio
que acompanha o progresso da consciência, do entendimento. Em
moldes obviamente idealistas, um Deus que é eminentemente consciência
produz consciências eminentemente autônomas. A causa inteligente
do mundo não poderia querer causar outra coisa senão
um mundo de liberdade, um mundo moral.