Um dos problemas capitais enfrentados pela filosofia
hodierna é o de definir sua própria fase de existência.
Afinal, o que significam as divisões em filosofia moderna e
contemporânea, tal como se no-las apresentam no quadro didático
do magistério? Seria a filosofia contemporânea marcada
pela pós-metafísica, ou pós-modernidade; mas
nesse caso, o que exatamente resta de filosófico na filosofia,
se ela assumidamente renuncia ao esforço de remontar às
causas últimas e sintetizar o real numa fórmula compreensível?
É tão precária
a divisão da filosofia em etapas que os especialistas discutem
ainda seriamente onde começa e termina a Era Moderna. Certamente
a Modernidade cultural se inicia no século XVII com Bruno,
Descartes, Bacon, Galileu, Copérnico (a recepção
dele, pois a pessoa viveu antes) e Kepler, ou melhor dizendo, com
a revolução científica, que acompanhou também
o processo estético-cultural de formação das
línguas nacionais. Bem mais difícil é saber se
a filosofia acompanhou imediatamente esta revolução,
ou se, como pensam alguns, permaneceu escolástica e subordinada
à teologia até Hume e Kant, mais de um século
depois. E isto é essencial para definir de quem a filosofia
contemporânea quer se diferenciar.
Na visão mais ortodoxa
a modernidade filosófica se enquadra entre Descartes e Hegel,
aproximadamente, período marcado pela metafísica da
subjetividade. Cum grano salis, os pensadores deste período
compartilham o ponto de vista subjetivo da fundamentação
do saber e do ser, terminando por identificar a ambos. A partir do
positivismo, do marxismo, da psicanálise e, com mais propriedade
filosófica e profundidade, de Nietzsche, inicia-se o processo
de crítica antropológica da metafísica moderna,
substituindo-se as certezas metafísicas por explicações
sociais, econômicas, linguísticas, psicológicas,
etc. Se com Comte e Marx a filosofia foi “substituída”
pela “ciência” social - ou, mais corretamente, um
primeiro esboço dela -, ocorrendo o mesmo em relação
a Freud, com Nietzsche vemos a implosão da filosofia a partir
de sua própria autoanálise, ainda que com forte comprometimento
do reducionismo antropológico. Nietzsche decretou o erro de
Descartes como sendo a absolutização do sujeito em uma
forma pura, imaterial, e extramundana, e a metafísica que se
lhe seguiu nada mais seria do que uma insistência nessa elevação
esquizofrênica da subjetividade ao estado divino, puro.
O jovem Nietzsche
Tal diagnóstico se cercou não
apenas de toda a vasta crítica antropológica disponível,
como da análise do próprio Nietzsche sobre os processos
de abafamento cultural empreendidos pela tradição cristã.
Com sua invulgar erudição, Nietzsche discerniu perfeitamente
os movimentos da arte, da religião e da ciência na Antiguidade
clássica e em sua mutação no ideal ascético
estóico-cristão, vendo nisso um processo de decadência,
o que não é de todo incorreto.
Nesse particular a afirmação
cartesiana de um purismo da subjetividade soou-lhe como retrocesso
ou continuação acrítica do pensar medieval, pelo
que a condenou duramente. Nietzsche viu em Descartes a desumana separação
entre espírito e corpo, entre intelecto e vida, entre sujeito
e mundo, reivindicando um retorno à vitalidade de uma filosofia
comprometida com esta existência, a concreta. Segundo o célebre
teocida, ao contrário de uma alma matemática, puramente
abstrata e em oposição ao corpo, era preciso resgatar
o ideal heroico grego de uma alma dotada de paixões, de pulsões
vitais, de amor pelo corpo e pelo mundo. O espírito para Nietzsche
é o regulador da saúde humana, a sensibilidade absolutamente
encarnada que frui ao máximo a dor e a alegria, a beleza e
a tragédia da existência. Por isso mata ele o Deus arquiteto,
o puro intelecto, em prol de um retorno dos deuses gregos da música
e da dança, do sorriso e da lágrima, deuses, enfim,
que afirmem a vida humana, ao invés de a negar.
A belíssima contribuição
de Nietzsche à reavaliação dos erros do cristianismo
cultural convive, entretanto, com um erro capital, a saber, o de malbaratar
a compreensão correta da subjetividade cartesiana e, por consequência,
de toda a metafísica moderna. Enquanto Nietzsche e seus parceiros,
os sociólogos e psicólogos reducionistas, viam na metafísica
da subjetividade um mero rearranjo das concepções escolásticas
e platônicas, a crítica mais moderna resgata já
em Platão e especialmente na metafísica moderna o sentido
preciso da subjetividade, não como elemento isolado, mas região
distanciada ou profunda da vida mental.
O que incomodava aos críticos
do século XIX e XX era naturalmente a concepção
de imortalidade da alma e a sua oposição ao corpo, bem
como a consequência ética de que a vida não se
justificava na existência atual, mas somente em referência
a uma outra. Ora, os sociólogos queriam esgotar o drama da
existência na realidade socioeconômica atual, o mesmo
valendo para a psicologia em seu campo de ação. O que
a nova visão da metafísica demonstra, no entanto, é
que esse medo materialista não tem razão de ser diante
da visão mais completa e acabada da subjetividade, visão
esta que estava implícita em toda a tradição
metafísica.
A crença na imortalidade da
alma, ou sua defesa racional, não é mais do que um momento
secundário da percepção compartilhada pelo materialismo
de que há uma esfera subjetiva irredutível aos processos
explicativos da realidade material. O que mesmo o naturalismo mais
duro dos dias de hoje admite, uma “certa dificuldade”
de reduzir o subjetivo ao fisiológico, é a atestação
empírica de que há uma duplicidade ontológica
radical, talvez intransponível. É com base nessa percepção
universal que metafísicos desde Pitágoras afirmaram
a possibilidade, quando não a certeza da, imortalidade, já
que a constituição da subjetividade é, aos olhos
de todos, distinta da constituição transitória
e puramente formal da matéria. Uma vez que o sujeito não
está sujeito à causalidade mecânica, identificando
intuitivamente em si o livre-arbítrio, não tem o seu
ser determinado pela sua forma, sentindo-se essencialmente como sensível,
intencional e referencial, conclui-se tão somente quanto a
sua não sujeição às regras do corpo, como
o ser perecível.
Mas enquanto esta conclusão
tem força de prova para o racionalismo, de diversos tipos,
é bem verdade que isto não basta para concluir favoravelmente
a sua existência de fato. Nisso religiosos e materialistas estão
errados. Há um argumento racional e imbatível em favor
da existência da alma, e isto têm de reconhecer os materialistas,
mas esse argumento pode ser puramente válido no âmbito
especulativo, sem que se constate sua vigência na realidade,
e isto têm de reconhecer os religiosos.
A solução ortodoxa
da religião foi pressupor, pela fé, um bom Deus que
garante o acerto de nossos juízos. A solução
espírita foi buscar uma base empírica para a sugestão
puramente especulativa de imortalidade. Em ambos os casos o materialista
pode reagir: negando-se a depositar fé no bom Deus, ou questionando
a força das evidências empíricas apresentadas
pelo Espiritismo e pela pesquisa psíquica em geral.
O que o materialista não pode
fazer, contudo, é confundir o recurso do religioso ao argumento
de fé ou a uma convicção empírica na veracidade
do argumento da imortalidade com uma crença ingênua e/ou
psicológica na sua imortalidade pessoal. Foi precisamente o
que Nietzsche fez em relação a Descartes. Tal como Marx,
Freud e outros pensadores antropológicos, reduziu o argumento
filosófico à condição de crítica
externa, depositando não apenas a razão do dualismo
cartesiano em motivos culturais e psicológicos, como ignorando
a fonte empírica, inteiramente não cultural e não
psicológica da dupla constituição do ser.
(continua em Metafísica
da Subjetividade)