13 de janeiro de 2011
É indiscutível que o
pensamento ocidental tenha surgido na Grécia. O helenismo é
o traço marcante de todas as culturas mediterrâneas após
o reinado universal de Alexandre da Macedônia, e essa predominância
do espírito grego só fez crescer com a expansão
do Império Romano.
Os críticos religiosos e exegetas
querem acusar Paulo de “platonizar” o cristianismo. Há
inúmeros tratados, cada qual com sua cota de verdade, sobre
como o pequeno movimento judaico transformou-se sob a influência
de inúmeros intelectuais gregos numa filosofia abrangente.
Todos ignoram, entretanto, que o ambiente cultural e intelectual da
Palestina à época de Augusto já era marcadamente
helenizado.
Historiadores mais cuidadosos como
Eduard Zeller nos lembram de que o popular movimento místico
e moralizador dos essênios nada mais era do que uma síntese
do judaísmo com as filosofias gregas, particularmente o estoicismo
e o platonismo. Foi em um desses ambientes que nasceu a Septuaginta:
uma comunidade de judeus helenizados do Egito, os quais acrescentaram
à Bíblia o nada ortodoxo Eclesiastes. Paulo, como a
maioria dos doutores da lei, dominava o grego e o latim. A Síria,
a Capadócia, a Lídia e as ilhas gregas eram morada de
grandes comunidades judaicas já muito helenizadas, a ponto
de permitirem o nascimento de seitas distintas, algumas ecléticas
o bastante para abraçar elementos do esoterismo persa, dos
mistérios caldeus ou da mitologia egípcia.
A imagem que Paulo nos passa pelas
suas epístolas é a de um enorme cosmopolitismo onde
a convivência com todos esses elementos era natural e inevitável.
Seria muito ingênuo imaginar que essas influencias não
existissem à época de Jesus, mas fossem onipresentes
quinze, vinte anos após a crucificação.
A evidência da presença
grega na Palestina e na vida intelectual israelita é importante
indício de que Jesus, se não amplamente versado em filosofia
grega, era ao menos familiarizado com o intercâmbio entre esta
e a sua cultura. Os relatos de suas discussões com os sacerdotes
do templo de Jerusalém ainda na infância, o domínio
das escrituras e a erudição apresentados nos debates
com os fariseus, com Pilatos e com Nicodemos atestam a educação
invulgar de Jesus.
Por fim, mas não menos importante,
a boa convivência com samaritanos, romanos, gregos, sírios
e toda a espécie de interlocutor, sem restrições
ou distinções, frequentemente valorizando estrangeiros
não judeus em detrimento dos sacerdotes (como na parábola
do bom samaritano), ou mulheres em detrimento dos homens, demonstram
o universalismo da mensagem de Jesus, em franca contradição
com a ortodoxia hebraica e suas tradições. Não
foi com esforço ou alterações que Paulo estendeu
a Boa Nova aos gentios; foi graças à sua própria
essência universalizante.
Não fosse a doutrina de Jesus
universal, jamais poderia pretender-se absoluta, e esta é uma
exigência das mais essenciais para a religião cristã.
A absolutidade do cristianismo, com seus matizes, prós e contras,
depende integralmente de sua mensagem não estar restrita a
comunidade judaica. Nenhuma das chamadas religiões mundiais,
aliás, merece esse posto enquanto restringe a atuação
de seu deus ou salvação a um grupo étnico ou
cultural. Esta é uma premissa metafísica básica
das religiões mundiais: o seu deus precisa ser universal, onipresente.
E o cristianismo não quer apenas afirmar a universalidade de
seu deus, mas o caráter absoluto da sua revelação.
A questão torna-se extremamente
problemática com o advento da modernidade e o confronto com
outras religiões mundiais. Ainda mais dramático é
o confronto entre a exigência de absolutidade do Cristianismo
e o fundo cético e relativista da Modernidade. A crítica
histórica e científica das sagradas escrituras gerou
o célebre conflito entre ciência e religião, típico
e exclusivo da cultura ocidental, embora agora já absorvido
por todos os demais povos civilizados. A resistência do clero
(não do Cristianismo enquanto tal) contra o avanço do
esclarecimento e a reação deste, consistindo numa equivalente
exclusão do diálogo com a religião, provocou
a cisão do espírito ocidental responsável ainda
hoje pela fragmentação do pensamento, perda dos valores
e referenciais coletivos, deterioração das noções
básicas de identidade histórica dos povos ocidentais,
entre outras dificuldades.
Uma delimitação precisa
da natureza absoluta do Cristianismo faz-se, portanto, urgente. Sem
esta seria melindroso lidar com qualquer aspecto da religião
crista, sob risco de desintegrá-la e reduzi-la a uma proposta
moral relativa, compatível com as expectativas e exigências
filosóficas atuais, ou retrogradar ao estado dogmático
e autoritário do absolutismo cristão conforme pregado
pela ortodoxia predominante em todas as denominações
(romana, grega e protestante) até meados do século XVIII.
De forma sintética a parte
“podre” da absolutidade do Cristianismo está na
sua exclusividade dogmática, que não dista em nada da
exclusividade e absolutismo de qualquer outra religião dogmática,
resumindo-se na ideia de que tal é a revelação
final e exclusiva para a salvação. No cristianismo ortodoxo
isto é tão presente quanto nas mitologias primitivas,
já que o conceito mais fundamentalista de trindade afirma uma
supremacia da pessoa de Jesus sobre todas as demais revelações.
Neste aspecto não há distinções significativas
em relação ao Judaísmo, o Islamismo ou o Hinduísmo,
também notadamente absolutistas. Esse aspecto negativo e dogmático
foi duramente combatido durante toda a Era Moderna, e mesmo antes
dela.
Os que melhores resultados apresentaram
contra a absolutidade dogmática do Cristianismo foram os neo-protestantes,
também conhecidos como protestantes liberais. Esse grupo, conforme
definido pelo historiador das religiões Ernst Troeltsch, é
composto por inúmeros membros de um movimento tardio de “reforma
da Reforma”, que inclui críticas históricas, racionalismo
filosófico e científico, e uma teologia cristã
mais pluralista. Seus expositores mais reconhecidos são Espinosa
(embora não fosse cristão), Lessing, Herder e o Idealismo
alemão, mas, no sentido de Troeltsch, esse neo-protestantismo
engloba movimentos contra-reformistas católicos (Fénelon,
Lammenais, Rousseau, etc), espiritualismo de vários tipos (incluindo
o Espiritismo, os Rosacruz, a Teosofia, etc), orientalismos amalgamados
ao cristianismo e outras manifestações contemporâneas
de crença, viabilizadas pelo espírito individualista
e libertário da reforma protestante.
Enquanto o protestantismo ortodoxo,
por assim dizer, elaborou uma nova base dogmática para o Cristianismo,
o neo-protestantismo ou protestantismo liberal é a proliferação
de interpretações livres do Cristianismo, baseada na
nova concepção moderna de que o espírito crítico
de interpretação individual da religião é
tão melhor quanto mais independente da ortodoxia das igrejas.
Nesse movimento está também implícito um retorno
ao Cristianismo primitivo da época “pré-clerical”.
Os seus adeptos defendem ferrenhamente a necessidade de independência
para a interpretação do “espírito”
das escrituras, e que toda a forma de ortodoxia corresponde a um condicionamento
à “letra”, seja a original, seja a estabelecida
pela teologia dogmática.
Arejado pelo confronto com a crítica
racional, histórica e cultural, o Cristianismo reestrutura-se
ainda, apesar de bolsões conservadores como os do fundamentalismo
neo-pentecostal (nossas famosas igrejas “evangélicas”)
e católico. Dentro do protestantismo de alto nível,
representado pelo Luteranismo, Anglicanismo, Presbiterianismo e outras
facções sectárias como os Quaker, e nos centros
de estudo mais sérios de outras denominações,
predomina o espírito liberal, pluralista e tolerante.
Uma supremacia arrogante não
é mais tolerável entre os cidadãos razoáveis
da era do conhecimento e da liberdade, não obstante, a natureza
do Cristianismo não se permite privar de uma força absolutizante
intrínseca à especificidade de sua revelação.
Para compreender o aspecto positivo da absolutidade do cristianismo
é preciso identificar as suas características elementares,
ou melhor dizendo, aquelas que prescindem de uma apologia dogmática
e podem encarar as exigências e critérios modernos sem
se desgastar.
Importantíssimo, entretanto,
é que este discurso não se prive do viés crítico
e pluralista que engrandeceu o Cristianismo moderno e o purificou
de todo o seu aspecto dogmático que, ao contrário, nivelou-o
com as crenças mais mundanas e o sectarismo típico das
ideologias de supremacia étnica e cultural. Um sintoma inconfundível
dessa patologia é o menosprezo pelas demais tradições
religiosas, e, por isso, é tão importante a estima e
o zelo respeitoso por todas as crenças, vistas como revelações
da verdade e dignificadas por esta perspectiva.
A revelação cristã
distingue-se das demais sem confrontá-las. É absoluta
por incluí-las, não por negar a sua validade. Poder-se-ia
mesmo dizer que é absoluta na exata medida em que reconhece
todas as demais e a elas se integra. O Cristianismo é absoluto
enquanto afirma a divindade de todas as criaturas, a salvação
universal, o amor a Deus e ao próximo como mandamento central,
a paternidade de Deus em relação aos homens, o perdão
incondicional das ofensas, a caridade estendida até aos inimigos,
a eficácia da intenção e do sentimento sobre
os dogmas e técnicas. Ele traz a revelação da
imortalidade geral, da misericórdia irrestrita de Deus, e da
ascensão do sentimento sobre a crença, da fé
como atitude existencial sobre a fé como adesão a um
dogma, da reforma do comportamento pela intenção, não
pela exigência social ou ritual.
Mas todas estas características,
conquanto sublimes atestados da divindade de sua origem, não
o distinguem tanto da parte superior e eminentemente espiritual de
outras grandes religiões. A humanidade produziu a contento
exemplos de santidade, concepções abrangentes de Deus,
explicações complexas e consoladoras sobre o destino
humano e o significado da vida. Aquilo que diferencia radicalmente
o Cristianismo em sua absolutidade são basicamente dois eventos:
a ressurreição e a revelação do Pai na
figura do Cristo.
A ressurreição é
o acontecimento ímpar na história mundial que comprova
a vitória sobre a morte. Nenhuma outra revelação
lhe é equivalente, pois os profetas e fundadores de religião
sempre gozaram de visões ou audições especiais,
privilegiadas, comunicadas aos seus discípulos sob exigência
de confiança nestes relatos. A ressurreição é
a exposição pública e notória da imortalidade
do espírito e da sua independência do corpo, compartilhada
irrestritamente diante de uma multidão de discípulos
de Jesus no evento da ascensão aos céus.
A conversibilidade de identidades
entre Deus e Jesus, e a autorrevelação deste segundo
como o exemplo e semelhança do Pai, conforme repetidamente
afirmado no Evangelho de João, é a revelação
completa e final de Deus, sem superação possível
no passado, presente ou futuro. Nisso a teologia cristã desdobrou
de forma filosoficamente competente a mensagem básica do Novo
Testamento.
Toda a revelação de
Deus foi e é feita a um profeta, que a transmite em palavras
humanas para a comunidade. Somente com Jesus a revelação
foi integralmente exposta em espírito e verdade, já
que ao responder à exigência de Filipe, “mostra-nos
o Pai”, Jesus deu-se a si mesmo como referência da concretude
de Deus diante dos olhos e ouvidos de todos, em exemplo de conduta,
pensamento e sentimento perfeitamente divinos. Enquanto todos os profetas
e iluminados falaram de sua experiência com o sagrado, Jesus
atualizou em si essa experiência, personificando e encarnando
os atributos divinos em sua máxima expressão possível
neste mundo. Ao trazer o Deus extraterreno e misterioso das alturas
para a forma familiar do Pai, converteu-se no Filho modelar imediatamente
presente e passível de imitação por parte de
seus discípulos, estreitando assim a relação
entre o homem e Deus e criando uma ponte permanente entre a Terra
e os Reino dos Céus.
Foi assim que respondeu a Filipe:
“Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não
me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai. Como dizes
tu: Mostra-nos o Pai?”.