É com grande prazer
que escrevo, pela primeira vez, sobre o legado literário de
Suely Caldas Schubert. A perspectiva de neto e por boa parte de minha
vida frequentador do mesmo centro espírita caracterizam um
ponto de partida muito peculiar para este ensaio; um ponto de partida
que condicionará vantagens e desvantagens únicas, mas
que assumimos como oportunidade de ofertar algum acréscimo
ao muito que já se sabe sobre a autora e sua obra.
São coletivamente reconhecidas como justas, por diversos motivos,
a apreciação e a análise do impacto da obra de
Suely Schubert sobre o Movimento Espírita.
Em primeiro lugar, cabe mencionar o pioneirismo desta que foi talvez
a palestrante de maior destaque do sexo feminino. Conquanto a cultura
espírita seja a mais inclusiva entre todas as culturas religiosas
– assumindo que ao menos culturalmente o Movimento Espírita
expressa-se mais ou menos como um movimento religioso – é
também verdade que o cenário social brasileiro das décadas
de 1970 a 1990 não era tão convidativo e estimulante
para mulheres desacompanhadas dispostas a viajar por todos os rincões.
O que algumas décadas antes teria sido impossível, na
última terça parte do século XX pode ter parecido
natural a muitos, mas nem por isso confortável para os que
aceitavam o desafio, de modo que tal era a função das
personalidades mais fortes e determinadas. Algumas das barreiras ao
sexo feminino que hoje identificamos com precisão não
eram então sequer percebidas, tal era a naturalidade com que
se sustentavam preconceitos verdadeiramente tácitos, quase
inconscientes.
A esses desafios invisíveis e constrangimentos não tão
imperceptíveis da época, somavam-se dificuldades de
ordem pessoal. A vida financeira e familiar exigia seus cuidados específicos,
e entre a escrita prolífica e as atividades na Sociedade Espírita
Joanna de Ângelis ou na Aliança Municipal Espírita
de Juiz de Fora era natural que a administração do tempo
fosse difícil. A mais grave das funções da escritora,
contudo, eram os atendimentos espirituais. Célebre por seu
conhecimento teórico-prático sobre a desobsessão,
pessoas conhecidas ou desconhecidas, locais ou distantes, procuravam-na
na esperança de algum alívio para aflições
geralmente ligadas à mediunidade, mas, às vezes, também
de qualquer outro tipo.
Era muito comum chegarmos a casa da minha avó, com hora marcada
ou casualmente, e encontrarmos ali pessoas que traziam variados e
quase sempre graves problemas pessoais. Sabíamos de pessoas
que ligavam desesperadas a alta madrugada para pedir socorro e atendimento
espiritual para um filho em crise, um assédio espiritual ou
transtorno mental. Muitíssimas vezes ela largava seus afazeres
e tomava um taxi, quando possível ou dali mesmo, ao telefone,
orava com a pessoa e prestava os primeiros esclarecimentos acerca
dos fenômenos experimentados.
Outra face digna de menção
é a fundação de enorme número de grupos
mediúnicos, em todas as partes do Brasil, alguns no exterior.
Tornada referência em mediunidade, as pessoas procuravam-na
quando não logravam sucesso na formação de reuniões
mediúnicas, e aproveitavam o ensejo de uma palestra para contar
com uma visita de “consultora” ou “assessoria”
na prática mediúnica.
Tais idiossincrasias, contudo, servem-nos aqui apenas de preâmbulo
à apresentação da literatura de Suely Schubert.
Como ela mesma diz – tendo, num primeiro momento, se negado
a responder às minhas perguntas para esta matéria –
a pessoa tem seus defeitos e limitações, e grande parte
de seus méritos deixam notar, mais de perto, a presença
de grande número de amigos e colaboradores da seara espírita.
Ainda acostumados ao destaque dos indivíduos, algumas vezes
nos esquecemos de que quase todas as obras contam também com
ambiente adequado, instituições fortes e o amparo de
grande número de figuras cujo suor permanece oculto nos bastidores.
A obra, por outro lado, tem vida própria, e seus méritos
são objetivos, estão ali para apreciação
universal.
De um modo geral, pode-se descrever
a literatura de Suely como intimista, porque expõe com franqueza
posições pessoais e vieses, não revelando qualquer
preocupação em impressionar o leitor. Lê-se em
seus livros exatamente o que a autora pensa, e o que pensa geralmente
está ligado ao uso ou proveito que aquele texto pode ter. O
estilo é elegante, sem formalidade. O beletrismo natural da
autora não resvala em hermetismo, e o texto eleva sem dificultar
a leitura. A personalidade de Suely é sumamente avessa à
intriga, ao sensacionalismo, à afetação e aos
artifícios retóricos que objetivam o choque, fazendo
com que o texto destoe, por isso, de uma grande parte da literatura
espírita mais recente.
Contrariamente ao que muitos pensam antes de efetivamente ler os livros,
suas obras são inteiramente autorais e não psicográficas,
mas ela registra inspiração em todos os textos, alguns
mais que outros. Como é típico aos médiuns inspirados,
os horários estabelecidos para a redação muitas
vezes são burlados por eclosões espontâneas de
ideias, que podem acontecer a qualquer
horário, inclusive durante o sono, levando-a a registrar o
pensamento às vezes imediatamente.
Obsessão/Desobsessão, a primeira peça
escolhida para nossa consideração sobre o lugar da obra
de Suely na cultura espírita, não apenas exemplifica
as características supramencionadas como sintetiza a visão
kardequiana da autora. Separado em curtos tópicos que cobrem
as definições fundamentais, os problemas e o funcionamento
dos processos obsessivos e das terapêuticas desobsessivas, o
livro reflete tanto o propósito didático quanto o atomismo
analítico de Kardec.
Em 1978, Suely era diretora do Departamento de Orientação
da Mediunidade na Aliança Municipal Espírita de Juiz
de Fora, e, diagnosticando uma demanda permanente de instrução
e debate sobre a prática desobsessiva, organizou um seminário.
Para este seminário – e prevendo a utilidade futura de
trabalhos semelhantes – escreveu uma apostila com mais de 50
páginas. Como destacamos antes, a trajetória formativa
propiciada pela família e pelo Centro Espírita foram
fundamentais para criar essa especialização em mediunidade.
Uma avó de Suely desde o século XIX já era espírita
e médium; e o Centro Espírita Ivon Costa havia reunido
nos anos 1960 e 1970 um time tão extraordinário de trabalhadores
que até hoje muito se fala de sua diversidade de talentos e
grande dedicação, com destaque para seu grupo mediúnico.
O seminário e a apostila foram muito bem recebidos pelos presentes,
e a notícia correu, chegando à própria FEB. O
então presidente da FEB Francisco Thiesen teria comentado com
ela que o material merecia ser transformado em livro, enfatizando
o caráter original e a grande utilidade da obra.
Francisco Thiesen, que prefacia o livro, escreveu: “Este compêndio
foge à teorização excessiva e à inovação
sem proveito, destacando-se no informar e esclarecer, instruir e consolar,
adequando e dosando os ensinos segundo o desdobramento de roteiro
inteligente aliado às necessidades da desobsessão”
(Suely 1981).
De fato, o livro reúne as condições raras da
despretensão e da alta qualidade. Seu propósito eminentemente
prático e consolador se manifesta no chamamento ao autoexame
consciencial e moral, sem o que qualquer fórmula é mero
rito exterior. Não cai, contudo, nos vícios muito frequentes
de discursos espíritas ingênuos, como a pieguice e a
visão açucarada do quadro. O leitor experimenta vivamente
as angústias, os escolhos e os riscos envolvidos no doloroso
processo, mas vislumbra também, na esteira de Kardec, Denis
e outras grandes referências da filosofia espírita, que
os calhaus do caminho são também o material com que
as almas experientes pavimentam a estrada da ascensão.
Confesso minha preferência pessoal pelo oitavo capítulo,
“A escravização do pensamento”, que destaca
a responsabilidade dos sócios (obsessor e obsidiado) no relacionamento
tormentoso.
Ao lado de Obsessão/Desobsessão, que se tornou um clássico
sobre o tema e consolidou firmemente a reputação de
Suely como especialista em obsessão e desobsessão, suas
duas obras biográficas experimentaram sucesso invulgar.
Entrementes, Suely e Thiesen tornaram-se amigos, e este concebeu a
ideia de lhe entregar um acervo de cartas de Chico Xavier para que
ela escrevesse uma análise das mesmas. A presidência
da FEB passara a Wantuil de Freitas, que acumulou ampla correspondência
com Chico entre 1943 e 1964. A princípio, Suely negou o convite,
mas após a insistência de Thiesen reconsiderou.
A acolhida extremamente favorável de Testemunhos de Chico
Xavier por parte do público se deveu, talvez, àquele
mesmo tom intimista que a autora habilmente usa para construir quadros
muito sinestésicos que aproximam ela, leitor e biografado.
A personalidade cativante e alguns detalhes até então
desconhecidos da vida do grande médium certamente contribuem
para tornar o livro fascinante, mas o mérito literário
de Suely é o de colocar o leitor em um “relacionamento”
com Chico Xavier, ao mesmo tempo em que o texto transborda com a presença
da própria autora,
cuja veneração pelo biografado é inequívoca.
Significativa parcela da força do livro, portanto, tem a ver
com a capacidade de construir uma narrativa que manifesta admiração
sem soar idólatra, e que é tanto uma descrição
quanto um encomio.
Apesar do estilo fino e rebuscado, o intimismo psicológico
de Suely leva-nos a sentir a subjetividade de Chico, o que um tom
jornalístico ou uma crônica dificilmente poderiam oferecer.
Comparado aos demais textos sobre a intimidade e os casos da vida
de Chico Xavier – e há muitos excelentes – Testemunhos
não nos impressiona pelo que diz sobre Chico, e sim pelo que
diz de Chico. É claro, isso que o texto nos revela sobre a
intimidade psíquica de Chico Xavier é já uma
construção do olhar de Suely, mas uma construção
plausível, persuasiva por força da qualidade e profundidade
da interpretação espírita-cristã dos fatos
que apresenta, e isso torna essa biografia única.
No prefácio, por exemplo, Suely
escreve: “As lutas, as dores, as perseguições
são íntimas companheiras do médium e lhe maceram
o corpo e a alma, afixando cicatrizes profundas.
São as “marcas do Cristo” de que nos fala o apóstolo
Paulo.
O seu maior livro é a sua vida, que ele escreve página
a página com as tintas do próprio suor, com sofrimentos
e lágrimas na jornada sacrificial a que se impôs. Entretanto,
fá-lo com amor e por amor. A sua obra psicográfica e
caritativa é a mais eloqüente lição de Doutrina
Espírita.” (Suely 1991, 19)
O semeador de estrelas tira proveito dos mesmíssimos
benefícios de abordagem, sendo também vazado pelos privilégios
de um relacionamento mais estreito e duradouro entre a autora e o
biografado, Divaldo Pereira Franco.
Aqui cabe mais uma digressão histórico-biográfica.
Suely passou a frequentar a mocidade do Centro Espírita Ivon
Costa aos 14 anos. A maioria dos membros, que a convidaram, tinha
18. Após dois anos, ela começou a fazer seus primeiros
estudos, sendo que dois marcaram-na particularmente: “Precursores
do Espiritismo desde Swedenborg” e “Tipos de Mediunidade”.
Observa-se que a jovem tinha já um gosto pelos dois temas fundamentais
de sua obra, as análises histórico-biográficas
e a mediunidade.
Pouco depois, tomando notícia de um novo orador de extraordinário
talento por meio de periódico espírita, Suely decidiu
escrever ao jovem e famoso palestrante para agendar um estudo. Começava
com essa singela carta uma amizade de mais de meio século entre
ela e Divaldo.
Todas as vezes que Divaldo veio a Juiz de Fora hospedou-se na casa
de minha avó – e aqui, particularmente, cabe usar o recurso
do intimismo tão caro a Suely para apresentar o quadro da forma
como eu o experimentei desde muito pequeno. As visitas anuais de Divaldo
à nossa cidade
eram ocasião especial para a família. Suely fazia um
almoço especial e nos reuníamos todos no dia da palestra
ou na manhã seguinte. Era um momento familiar e ao mesmo tempo
muito espiritual, pois impactava a todos a índole animada e
gentil do grande médium e orador.
Esta amizade – ou, possivelmente, um relacionamento prévio
ao próprio encontro – rendeu também um tipo de
proximidade entre Suely e Joanna de Ângelis, que teria inspirado
a escrita do livro. Ela é extremamente reservada quanto aos
contatos com esse Espírito, mas é impossível
deixar de observar a devoção que tem por ele e a impressão
de sublimidade que sua presença provoca na autora.
Antes mesmo de terminar o livro, Suely mantinha contato com Divaldo
e outras pessoas que poderiam fornecer casos e relatos. A impressão
geral do médium baiano era a de que o livro pouco acrescentaria,
mas minha avó sempre foi notoriamente insistente e, uma vez
convencida, sabe fazer valer sua posição. Diante do
resultado final Divaldo teria dito “Suely, estou lisonjeado
e comovido, mas esta figura que você retrata é uma idealização
sua. Você me idealizou. Quisera eu ser assim”.
Ela não me transmitiu sua resposta, e não sei se sequer
respondeu algo, mas tenho para mim que além de crer justo o
enaltecimento da figura de Divaldo Franco ela compreendia que o livro
tinha propósito de expor a virtude e a grandeza do trabalhador
por trás da face pública, como ocorrera também
em Testemunhos de Chico Xavier. Em outras palavras, sem exageros e
enaltecimentos, as biografias não tinham a pretensão
de apresentar descrições frias de um historiador, e
sim de, através dos fatos, erigir monumentos de reconhecimento
a essas figuras, importantes para ela e para a comunidade espírita.
Uma passagem me chama a atenção em O semeador de
estrelas. Divaldo questiona Joanna de Ângelis, talvez com
uma ponta de constrangimento ou ressentimento, pelo fato de ela escrever
com rebuscamento, ao que ela responde:
“Porque o Espiritismo é, acima de tudo, uma doutrina
de cultura e nós não devemos adotar a gíria ou
uma linguagem vulgar para facilitar o nível da conversação.
Vamos utilizar uma linguagem que eleve o grau de entendimento da criatura.
Quando o homem era primitivo, grunhia. A tendência para a civilização
deu-lhe o vocabulário, beleza e construção de
frases. Mede-se o nível de evolução do indivíduo
pela forma que ele tem de se expressar. Não apenas pela forma,
mas também pelo conteúdo, no entanto, a maneira de vestir
a ideia é-lhe importante.” (Suely 1998, 15-16)
Na época em que a educação naufraga, e a informação
abunda desordenada e sem diretriz, pode parecer preciosismo e capricho
esse cuidado com a língua, com a forma, mas se pensarmos que
todas as almas hábeis e capazes exploram da melhor maneira
todas as ferramentas à mão, notoriamente as ciências
e as artes que o gênio dos grandes Espíritos sabe domesticar
e pôr a serviço da elevação coletiva, não
nos deve estranhar que a literatura espírita (a boa, a original...)
se valha dos estilos mais apurados, sem perda de objetividade e praticidade.
Ao final, percebe-se que os dois grandes temas abordados pela pena
de Suely possuem uma forte e inevitável conexão. Seus
biografados são médiuns, e as biografias contam sobre
suas vidas enquanto médiuns, tanto quanto exemplos de lucidez
e estatura moral. É fundamental, portanto, observar que a obra
de Suely não se desvia ou afasta dessa que é preocupação
central da vida da autora, a mediunidade enquanto pilar fundamental
da vida espírita.
Hoje, como nossa compreensão
acerca da mediunidade perdeu parte de sua significação
original, nutrimos noções variadas sobre, ora uma suposta
“ausência de mediunidade”, ora excessivos cuidados
e preocupações que afastam as pessoas da prática
mediúnica, como se hermética e antinatural fosse, ou
ainda visões mágicas e oportunistas da mediunidade como
veículo de ascensão social e autopromoção.
Para esses males, hoje mais do que nunca, a obra de Suely Schubert
tem o papel de remédio, tanto preventivo quanto curativo.