Espiritualidade e Sociedade



Humberto Schubert Coelho

>   O Legado literário de Suely Caldas Schubert: reflexo de uma vida espírita

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Humberto Schubert Coelho
>   O Legado literário de Suely Caldas Schubert: reflexo de uma vida espírita


É com grande prazer que escrevo, pela primeira vez, sobre o legado literário de Suely Caldas Schubert. A perspectiva de neto e por boa parte de minha vida frequentador do mesmo centro espírita caracterizam um ponto de partida muito peculiar para este ensaio; um ponto de partida que condicionará vantagens e desvantagens únicas, mas que assumimos como oportunidade de ofertar algum acréscimo ao muito que já se sabe sobre a autora e sua obra.

São coletivamente reconhecidas como justas, por diversos motivos, a apreciação e a análise do impacto da obra de Suely Schubert sobre o Movimento Espírita.

Em primeiro lugar, cabe mencionar o pioneirismo desta que foi talvez a palestrante de maior destaque do sexo feminino. Conquanto a cultura espírita seja a mais inclusiva entre todas as culturas religiosas – assumindo que ao menos culturalmente o Movimento Espírita expressa-se mais ou menos como um movimento religioso – é também verdade que o cenário social brasileiro das décadas de 1970 a 1990 não era tão convidativo e estimulante para mulheres desacompanhadas dispostas a viajar por todos os rincões. O que algumas décadas antes teria sido impossível, na última terça parte do século XX pode ter parecido natural a muitos, mas nem por isso confortável para os que aceitavam o desafio, de modo que tal era a função das personalidades mais fortes e determinadas. Algumas das barreiras ao sexo feminino que hoje identificamos com precisão não eram então sequer percebidas, tal era a naturalidade com que se sustentavam preconceitos verdadeiramente tácitos, quase inconscientes.

A esses desafios invisíveis e constrangimentos não tão imperceptíveis da época, somavam-se dificuldades de ordem pessoal. A vida financeira e familiar exigia seus cuidados específicos, e entre a escrita prolífica e as atividades na Sociedade Espírita Joanna de Ângelis ou na Aliança Municipal Espírita de Juiz de Fora era natural que a administração do tempo fosse difícil. A mais grave das funções da escritora, contudo, eram os atendimentos espirituais. Célebre por seu conhecimento teórico-prático sobre a desobsessão, pessoas conhecidas ou desconhecidas, locais ou distantes, procuravam-na na esperança de algum alívio para aflições geralmente ligadas à mediunidade, mas, às vezes, também de qualquer outro tipo.

Era muito comum chegarmos a casa da minha avó, com hora marcada ou casualmente, e encontrarmos ali pessoas que traziam variados e quase sempre graves problemas pessoais. Sabíamos de pessoas que ligavam desesperadas a alta madrugada para pedir socorro e atendimento espiritual para um filho em crise, um assédio espiritual ou transtorno mental. Muitíssimas vezes ela largava seus afazeres e tomava um taxi, quando possível ou dali mesmo, ao telefone, orava com a pessoa e prestava os primeiros esclarecimentos acerca dos fenômenos experimentados.

 

 

Outra face digna de menção é a fundação de enorme número de grupos mediúnicos, em todas as partes do Brasil, alguns no exterior. Tornada referência em mediunidade, as pessoas procuravam-na quando não logravam sucesso na formação de reuniões mediúnicas, e aproveitavam o ensejo de uma palestra para contar com uma visita de “consultora” ou “assessoria” na prática mediúnica.

Tais idiossincrasias, contudo, servem-nos aqui apenas de preâmbulo à apresentação da literatura de Suely Schubert. Como ela mesma diz – tendo, num primeiro momento, se negado a responder às minhas perguntas para esta matéria – a pessoa tem seus defeitos e limitações, e grande parte de seus méritos deixam notar, mais de perto, a presença de grande número de amigos e colaboradores da seara espírita. Ainda acostumados ao destaque dos indivíduos, algumas vezes nos esquecemos de que quase todas as obras contam também com ambiente adequado, instituições fortes e o amparo de grande número de figuras cujo suor permanece oculto nos bastidores. A obra, por outro lado, tem vida própria, e seus méritos são objetivos, estão ali para apreciação universal.

 

De um modo geral, pode-se descrever a literatura de Suely como intimista, porque expõe com franqueza posições pessoais e vieses, não revelando qualquer preocupação em impressionar o leitor. Lê-se em seus livros exatamente o que a autora pensa, e o que pensa geralmente está ligado ao uso ou proveito que aquele texto pode ter. O estilo é elegante, sem formalidade. O beletrismo natural da autora não resvala em hermetismo, e o texto eleva sem dificultar a leitura. A personalidade de Suely é sumamente avessa à intriga, ao sensacionalismo, à afetação e aos artifícios retóricos que objetivam o choque, fazendo com que o texto destoe, por isso, de uma grande parte da literatura espírita mais recente.

Contrariamente ao que muitos pensam antes de efetivamente ler os livros, suas obras são inteiramente autorais e não psicográficas, mas ela registra inspiração em todos os textos, alguns mais que outros. Como é típico aos médiuns inspirados, os horários estabelecidos para a redação muitas vezes são burlados por eclosões espontâneas de ideias, que podem acontecer a qualquer
horário, inclusive durante o sono, levando-a a registrar o pensamento às vezes imediatamente.

Obsessão/Desobsessão, a primeira peça escolhida para nossa consideração sobre o lugar da obra de Suely na cultura espírita, não apenas exemplifica as características supramencionadas como sintetiza a visão kardequiana da autora. Separado em curtos tópicos que cobrem as definições fundamentais, os problemas e o funcionamento dos processos obsessivos e das terapêuticas desobsessivas, o livro reflete tanto o propósito didático quanto o atomismo analítico de Kardec.

Em 1978, Suely era diretora do Departamento de Orientação da Mediunidade na Aliança Municipal Espírita de Juiz de Fora, e, diagnosticando uma demanda permanente de instrução e debate sobre a prática desobsessiva, organizou um seminário. Para este seminário – e prevendo a utilidade futura de trabalhos semelhantes – escreveu uma apostila com mais de 50 páginas. Como destacamos antes, a trajetória formativa propiciada pela família e pelo Centro Espírita foram fundamentais para criar essa especialização em mediunidade. Uma avó de Suely desde o século XIX já era espírita e médium; e o Centro Espírita Ivon Costa havia reunido nos anos 1960 e 1970 um time tão extraordinário de trabalhadores que até hoje muito se fala de sua diversidade de talentos e grande dedicação, com destaque para seu grupo mediúnico.

O seminário e a apostila foram muito bem recebidos pelos presentes, e a notícia correu, chegando à própria FEB. O então presidente da FEB Francisco Thiesen teria comentado com ela que o material merecia ser transformado em livro, enfatizando o caráter original e a grande utilidade da obra.

Francisco Thiesen, que prefacia o livro, escreveu: “Este compêndio foge à teorização excessiva e à inovação sem proveito, destacando-se no informar e esclarecer, instruir e consolar, adequando e dosando os ensinos segundo o desdobramento de roteiro inteligente aliado às necessidades da desobsessão” (Suely 1981).

De fato, o livro reúne as condições raras da despretensão e da alta qualidade. Seu propósito eminentemente prático e consolador se manifesta no chamamento ao autoexame consciencial e moral, sem o que qualquer fórmula é mero rito exterior. Não cai, contudo, nos vícios muito frequentes de discursos espíritas ingênuos, como a pieguice e a visão açucarada do quadro. O leitor experimenta vivamente as angústias, os escolhos e os riscos envolvidos no doloroso processo, mas vislumbra também, na esteira de Kardec, Denis e outras grandes referências da filosofia espírita, que os calhaus do caminho são também o material com que as almas experientes pavimentam a estrada da ascensão.

Confesso minha preferência pessoal pelo oitavo capítulo, “A escravização do pensamento”, que destaca a responsabilidade dos sócios (obsessor e obsidiado) no relacionamento tormentoso.

Ao lado de Obsessão/Desobsessão, que se tornou um clássico sobre o tema e consolidou firmemente a reputação de Suely como especialista em obsessão e desobsessão, suas duas obras biográficas experimentaram sucesso invulgar.

Entrementes, Suely e Thiesen tornaram-se amigos, e este concebeu a ideia de lhe entregar um acervo de cartas de Chico Xavier para que ela escrevesse uma análise das mesmas. A presidência da FEB passara a Wantuil de Freitas, que acumulou ampla correspondência com Chico entre 1943 e 1964. A princípio, Suely negou o convite, mas após a insistência de Thiesen reconsiderou.

A acolhida extremamente favorável de Testemunhos de Chico Xavier por parte do público se deveu, talvez, àquele mesmo tom intimista que a autora habilmente usa para construir quadros muito sinestésicos que aproximam ela, leitor e biografado. A personalidade cativante e alguns detalhes até então desconhecidos da vida do grande médium certamente contribuem para tornar o livro fascinante, mas o mérito literário de Suely é o de colocar o leitor em um “relacionamento” com Chico Xavier, ao mesmo tempo em que o texto transborda com a presença da própria autora,
cuja veneração pelo biografado é inequívoca.

Significativa parcela da força do livro, portanto, tem a ver com a capacidade de construir uma narrativa que manifesta admiração sem soar idólatra, e que é tanto uma descrição quanto um encomio.

Apesar do estilo fino e rebuscado, o intimismo psicológico de Suely leva-nos a sentir a subjetividade de Chico, o que um tom jornalístico ou uma crônica dificilmente poderiam oferecer. Comparado aos demais textos sobre a intimidade e os casos da vida de Chico Xavier – e há muitos excelentes – Testemunhos não nos impressiona pelo que diz sobre Chico, e sim pelo que diz de Chico. É claro, isso que o texto nos revela sobre a intimidade psíquica de Chico Xavier é já uma construção do olhar de Suely, mas uma construção plausível, persuasiva por força da qualidade e profundidade da interpretação espírita-cristã dos fatos que apresenta, e isso torna essa biografia única.

 

No prefácio, por exemplo, Suely escreve: “As lutas, as dores, as perseguições são íntimas companheiras do médium e lhe maceram o corpo e a alma, afixando cicatrizes profundas.

São as “marcas do Cristo” de que nos fala o apóstolo Paulo.

O seu maior livro é a sua vida, que ele escreve página a página com as tintas do próprio suor, com sofrimentos e lágrimas na jornada sacrificial a que se impôs. Entretanto, fá-lo com amor e por amor. A sua obra psicográfica e caritativa é a mais eloqüente lição de Doutrina Espírita.” (Suely 1991, 19)

O semeador de estrelas tira proveito dos mesmíssimos benefícios de abordagem, sendo também vazado pelos privilégios de um relacionamento mais estreito e duradouro entre a autora e o biografado, Divaldo Pereira Franco.

Aqui cabe mais uma digressão histórico-biográfica. Suely passou a frequentar a mocidade do Centro Espírita Ivon Costa aos 14 anos. A maioria dos membros, que a convidaram, tinha 18. Após dois anos, ela começou a fazer seus primeiros estudos, sendo que dois marcaram-na particularmente: “Precursores do Espiritismo desde Swedenborg” e “Tipos de Mediunidade”. Observa-se que a jovem tinha já um gosto pelos dois temas fundamentais de sua obra, as análises histórico-biográficas e a mediunidade.

Pouco depois, tomando notícia de um novo orador de extraordinário talento por meio de periódico espírita, Suely decidiu escrever ao jovem e famoso palestrante para agendar um estudo. Começava com essa singela carta uma amizade de mais de meio século entre ela e Divaldo.

Todas as vezes que Divaldo veio a Juiz de Fora hospedou-se na casa de minha avó – e aqui, particularmente, cabe usar o recurso do intimismo tão caro a Suely para apresentar o quadro da forma como eu o experimentei desde muito pequeno. As visitas anuais de Divaldo à nossa cidade
eram ocasião especial para a família. Suely fazia um almoço especial e nos reuníamos todos no dia da palestra ou na manhã seguinte. Era um momento familiar e ao mesmo tempo muito espiritual, pois impactava a todos a índole animada e gentil do grande médium e orador.

Esta amizade – ou, possivelmente, um relacionamento prévio ao próprio encontro – rendeu também um tipo de proximidade entre Suely e Joanna de Ângelis, que teria inspirado a escrita do livro. Ela é extremamente reservada quanto aos contatos com esse Espírito, mas é impossível deixar de observar a devoção que tem por ele e a impressão de sublimidade que sua presença provoca na autora.

Antes mesmo de terminar o livro, Suely mantinha contato com Divaldo e outras pessoas que poderiam fornecer casos e relatos. A impressão geral do médium baiano era a de que o livro pouco acrescentaria, mas minha avó sempre foi notoriamente insistente e, uma vez convencida, sabe fazer valer sua posição. Diante do resultado final Divaldo teria dito “Suely, estou lisonjeado e comovido, mas esta figura que você retrata é uma idealização sua. Você me idealizou. Quisera eu ser assim”.

Ela não me transmitiu sua resposta, e não sei se sequer respondeu algo, mas tenho para mim que além de crer justo o enaltecimento da figura de Divaldo Franco ela compreendia que o livro tinha propósito de expor a virtude e a grandeza do trabalhador por trás da face pública, como ocorrera também em Testemunhos de Chico Xavier. Em outras palavras, sem exageros e enaltecimentos, as biografias não tinham a pretensão de apresentar descrições frias de um historiador, e sim de, através dos fatos, erigir monumentos de reconhecimento a essas figuras, importantes para ela e para a comunidade espírita.

Uma passagem me chama a atenção em O semeador de estrelas. Divaldo questiona Joanna de Ângelis, talvez com uma ponta de constrangimento ou ressentimento, pelo fato de ela escrever com rebuscamento, ao que ela responde:

“Porque o Espiritismo é, acima de tudo, uma doutrina de cultura e nós não devemos adotar a gíria ou uma linguagem vulgar para facilitar o nível da conversação. Vamos utilizar uma linguagem que eleve o grau de entendimento da criatura. Quando o homem era primitivo, grunhia. A tendência para a civilização deu-lhe o vocabulário, beleza e construção de frases. Mede-se o nível de evolução do indivíduo pela forma que ele tem de se expressar. Não apenas pela forma, mas também pelo conteúdo, no entanto, a maneira de vestir a ideia é-lhe importante.” (Suely 1998, 15-16)




Na época em que a educação naufraga, e a informação abunda desordenada e sem diretriz, pode parecer preciosismo e capricho esse cuidado com a língua, com a forma, mas se pensarmos que todas as almas hábeis e capazes exploram da melhor maneira todas as ferramentas à mão, notoriamente as ciências e as artes que o gênio dos grandes Espíritos sabe domesticar e pôr a serviço da elevação coletiva, não nos deve estranhar que a literatura espírita (a boa, a original...) se valha dos estilos mais apurados, sem perda de objetividade e praticidade.

Ao final, percebe-se que os dois grandes temas abordados pela pena de Suely possuem uma forte e inevitável conexão. Seus biografados são médiuns, e as biografias contam sobre suas vidas enquanto médiuns, tanto quanto exemplos de lucidez e estatura moral. É fundamental, portanto, observar que a obra de Suely não se desvia ou afasta dessa que é preocupação central da vida da autora, a mediunidade enquanto pilar fundamental da vida espírita.

 

 

Hoje, como nossa compreensão acerca da mediunidade perdeu parte de sua significação original, nutrimos noções variadas sobre, ora uma suposta “ausência de mediunidade”, ora excessivos cuidados e preocupações que afastam as pessoas da prática mediúnica, como se hermética e antinatural fosse, ou ainda visões mágicas e oportunistas da mediunidade como veículo de ascensão social e autopromoção. Para esses males, hoje mais do que nunca, a obra de Suely Schubert tem o papel de remédio, tanto preventivo quanto curativo.

 

 

Bibliografia
SCHUBERT, Suely C. 1981. Obsessão / Desobsessão. Rio de Janeiro: FEB.
SCHUBERT, Suely C. 1998. O semeador de estrelas. Salvador: Alvorada Editora.
SCHUBERT, Suely C. 1998. Testemunhos de Chico Xavier. Brasília: FEB.


Fonte: https://cei-spiritistcouncil.com/wp-content/uploads/2021/03/Revue-Spirit-N03-abril-2021-1.pdf
> Revue-Spirit-N03-abril-2021-1

 


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