Nos dias atuais é de impressionar
o quão pouco se sabe sobre o papel dos filósofos alemães
no desenvolvimento do Espiritismo. Certo é afirmar que, do
ponto de vista cultural, a Alemanha é o único país
a contribuir para a formação do Romantismo e do Idealismo,
correntes de pensamento essenciais ao desenvolvimento do Espiritismo
na Europa.
Não quero falar tanto de como surgiram o Romantismo e o Idealismo,
remeto o leitor ao meu artigo “O descobrimento da Alemanha por
Madame de Stael”. Basta dizer que, exceto por Rousseau, a França
não teve colaboração nas fases iniciais destes
grandes movimentos, e por mais que a França e a Grã-Bretanha
tenham importância fundamental no progresso científico
da Era Moderna, suas bases filosóficas jamais permitiriam aflorar
uma filosofia como a do Espiritismo. Infelizmente, como comentei nos
textos anteriores deste blog, a consciência histórica
do Espiritismo tende a se limitar muito a história da Roma
antiga e da França moderna.
Para desfazer este mal entendido é preciso remontar a Europa
do século XVII, quando o racionalismo se estabelecia. Todos
conhecem bem a importância de Descartes, dos empiristas ingleses
e dos cientistas como Galileu, Copérnico e Kepler. O que nem
sempre é igualmente conhecido, foi o surto de misticismo e
piedade religiosa ocorridos na Alemanha neste período. Enquanto
as outras nações civilizadas da Europa entravam na Era
Moderna pelo caminho da ciência, com uma filosofia mecanicista
para a natureza, separada do espírito, compondo o famoso dualismo
cartesiano, a Alemanha formulava uma visão mais mística,
embasada nas tradições do platonismo e do hermetismo
egípcio, onde a natureza e o espírito eram a mesma coisa.
Embora o mundo latino também tivesse os seus expoentes místicos
no mesmo período, como Giordano Bruno, este tipo de filosofia
só era adotado com muitas ressalvas e restrições,
enquanto na Alemanha, a reação à ortodoxia luterana
provocou uma adesão mais geral ao surto espiritualista. Ocorre
que o cânone luterano original fazia a salvação
da alma depender exclusivamente da fé. Isso fez nascer nos
países luteranos uma geração inteira de crentes
formais, que se justificavam apenas pela sua adesão de fé
a Bíblia, mas que não possuíam uma vida cristã.
A degeneração social chegou a um ponto intolerável
para as almas mais piedosas, que fizeram um movimento de restauração
da piedade cristã. Este movimento conhecido como Pietismo,
visava restabelecer em mundo protestante a pureza da mensagem sentimental
e mística de Jesus. Seus adeptos evitavam a igreja, cujo culto
consideravam meramente social, e faziam encontros caseiros onde a
Bíblia era lida de maneira mística e emotiva. Cada crente
visualizava as passagens do Evangelho como se estivesse presente nas
cenas narradas, e vivenciava efetivamente as curas, as repreensões
morais e as exortações à virtude feitas pelo
Cristo. Com isto o crente sentia-se em uma comunhão profunda
com o Messias e com Deus.
Filósofos iluministas como Wolff e Kant, que costumam ter má
fama entre os espiritualistas, eram pietistas convictos, e aderiam
a estas práticas. Eles também contribuíram para
dar uma linguagem mais universal ao pietismo, evocando uma moral pessoal,
vinda exclusivamente da consciência, independente de mandamentos
externos. Também entre os pietistas existiam inúmeros
indivíduos conhecidos por imensas obras de caridade. August
Hermann Francke, por exemplo, criou uma cidade inteira voltada para
a educação. Retirou crianças das ruas e da criminalidade,
oferecendo-lhes lares e ensinando-lhes profissões simples.
Em sua escola estudavam conjuntamente os filhos dos ricos e estes
órfãos recolhidos das ruas.
O ensino ia do pré-escolar até a pós-graduação
em teologia, e era tal a sua excelência que pessoas vinham de
longe para estudar na escola e faculdade criada para aqueles ex-desabrigados.
Por volta de 1700, Francke também instituiu revolucionariamente
a educação para meninas em todos estes níveis,
com o mesmo conteúdo que a dos meninos. Isto foi feito mais
de cem anos antes da formação das escolas públicas
na França.
Os pietistas se caracterizavam por uma religião privada e muito
fervorosa, mas com grande liberdade e juízo crítico.
Sem respeitarem hierarquias e dando pouca distinção
aos pastores, privilegiando o culto caseiro, eles ajudaram a reformar
a Alemanha com suas tradições conservadoras da mesma
forma que os céticos e livre-pensadores faziam nas demais nações
da Europa. A Alemanha pulou a fase atéia e sensualista que
caracteriza a França e a Inglaterra do século XVII,
entrando na Era Moderna através de uma reforma libertária
de cunho fortemente espiritualista.
O que distinguia os pietistas em dois grupos era a concepção
da natureza. Uns a consideravam essencialmente material e mecânica,
como Kant, outros essencialmente divinizada e vivente, como Böhme,
Herder e Goethe. Todos, entretanto, eram reencarnacionistas.
A ideia de reencarnação na Alemanha não surgiu
com Leibniz em 1714, conforme se pensa e divulga muito. Leibniz cogitou
da ideia de palingenesia, mas considerava-a estranha ao cristianismo.
Sua filosofia das mônadas pressupõe sim uma evolução
do princípio espiritual, mas esta só ocorreria durante
a vida na Terra e depois continuaria no mundo espiritual. Não
haveria retorno a Terra. Foi Christian Wolff quem introduziu o conceito
de reencarnação em 1730, usando exatamente o argumento
da mônada de Leibniz. Com o seu conceito de metempsicose racional,
Wolff reformulou a tradição Greco-egípcia sobre
reencarnação acrescentando que as mônadas espirituais
de Leibniz não esgotavam todas as experiências na Terra
em uma única vida. A Terra ofereceria uma quantidade tão
variada de vivências e experiências que a alma poderia
tirar muito proveito de um retorno constante a este mundo, sem repetir
os caminhos já trilhados.
Christian Wolff teve impacto imediato sobre a filosofia alemã
em todos os aspectos e a reencarnação não foi
o último deles. Lessing tornar-se-ia o primeiro e mais vigoroso
defensor desta ideia. Estabelecendo os princípios da teologia
racional protestante. Entre outras reformas no sistema teológico,
Lessing adotou a ideia de reencarnação e a de que Jesus
Cristo não seria o filho único de Deus e sim o revelador
de que todos somos um com o Pai. Ele não queria com isso uma
redução da figura divina do Cristo, mas lembrar que
a mensagem do Evangelho é a de divindade universal de todos
e todas as coisas. Só existem seres divinos, e os conflitos,
o mal e o sofrimento só existem enquanto esta herança
não é posta em ação.
Foi Lessing quem popularizou o conceito de palingenesia
na Alemanha
Outro seguidor de Wolff foi Kant, que estabeleceu em sua “teoria
do céu” a doutrina dos corpos sutis. A alma teria, para
ele, um corpo intermediário entre a natureza física
e a espiritual. Este corpo sobreviveria depois da morte do corpo físico,
conservando a memória, a sensibilidade e as características
pessoais. Com isto, acreditava Kant, estaria explicada a transmigração
da alma pelos corpos com a conservação da personalidade.
Ele também insistia que a evolução do espírito
em razão e moralidade tornaria este corpo espiritual mais puro,
de modo que a vida na Terra seria progressivamente mais difícil
para estas almas, e elas deveriam subir a mundos igualmente mais puros.
Nestes outros mundos, a alma teria corpos leves, podendo voar e transmitir
o pensamento sem impedimentos da nossa esfera material. Mais tarde,
entretanto, Kant chegaria à conclusão de que estas ideias
não poderiam compor uma filosofia propriamente dita, pois esta
especulação era impossível de ser comprovada
com a experiência disponível, mas jamais renegou suas
disposições em matéria de convicção
pessoal.
Neste período, entre 1770-1780, tornou-se moda na Alemanha
a leitura de Rousseau, o grande filósofo místico da
latinidade, traduzido em termos claros e populares da linguagem iluminista.
Rousseau iria influenciar sobremaneira a Herder e Goethe, que colheram
nele a sua filosofia do sentimento, juntando-a com a idéia
alemã de reencarnação. Herder teve papel crucial
na formação da doutrina da história, e dentro
dela inseriu seu conceito de reencarnação. Ele vislumbrava
a marcha das civilizações como a ascensão do
espírito ao longo de suas labutas no processo evolutivo para
a perfeição divina. Assim, os progressos intelectuais
e morais das distintas eras da história, seriam ocultamente
influenciados pelos progressos das nossas almas em constante aprendizado,
que reencarnando de uma para outra civilização, produziriam
o progresso que aos olhos humanos se dá por meios meramente
sociais.
Goethe, por sua vez, criou a primeira doutrina consistente de metamorfose
e evolução biológica, mais de cinqüenta
anos antes de Darwin, em fins do século XVIII. Ele inferiu
que o princípio vital dos seres organizaria e dirigiria a metamorfose
do embrião ao indivíduo adulto, da semente à
planta, e poderia propiciar metamorfoses de um animal em outro, por
evolução. Estas metamorfoses Goethe atribuiu, em parte,
ao processo de reencarnação, que transmitiria as forças
das mônadas espirituais de um organismo para outro. Se o organismo
receptor não pudesse mais conter a força da mônada
desenvolvida, ele deveria adaptar-se com uma metamorfose, e esta seria
a causa da evolução das espécies.
Não poderíamos terminar sem citar Heinrich von Schubert,
médico e biólogo inspirado por Mesmer, Goethe e Herder.
Por volta do começo do século XIX, Schubert realizou
pesquisas diversas tentando cruzar a teoria do magnetismo animal de
Mesmer com as teorias reencarnacionistas alemãs. Lembramos
que Mesmer era ateu e materialista, e acreditava que o magnetismo
animal era um fenômeno material ordinário. Schubert defendeu
então em suas pesquisas que o sono seria o desprendimento do
espírito do corpo, propiciando os fenômenos de magnetismo
divulgados por Mesmer. O uso destes fenômenos em estado de vigília
não contradiz esta teoria, pois o desprendimento do sono seria
possível, segundo ele, através de um transe ou estado
profundo de concentração. Além desta ligação
entre o sono e o magnetismo, Schubert também fez pela primeira
vez a análise dos sonhos com base numa teoria espiritualista
racionalizada. O sonho seria a recapitulação simbólica
das experiências do espírito enquanto desprendido do
corpo. A mesma idéia seria defendida por Kardec quarenta anos
depois.
É desnecessário prosseguir com a lista de nomes. O fato
é que existe uma ampla documentação desta passagem
histórica do conceito de reencarnação via Romantismo
da Alemanha para a França, por volta de 1805-1820. Enquanto
este momento histórico não for competentemente anexado
às obras de história do Espiritismo, estes importantes
autores permanecerão injustiçados.