Um século depois dos EUA, o Brasil também
veria surgir em seu solo uma figura de intenso magnetismo pessoal,
distinta pela excelência de suas virtudes e pelo brilho de sua
inteligência.
Como no caso de Benjamin Franklin e dos pais da pátria da América
do Norte, Diogo Feijó educou-se integralmente no seu país,
mais especificamente no interior de São Paulo. Considerando-se
que a capital deste estado provavelmente não estava entre as
três cidades mais importantes do Brasil, pode-se inferir que
os estudos no interior do estado se realizaram em ambiente rural de
acentuadas dificuldades. Não obstante, o padre obteve ilustração
invulgar através da dedicação pessoal e do espírito
autodidata, pré-requisito que por muito tempo e lamentavelmente
foi obrigatório para todos os letrados do Brasil.
Feijó foi, com todas as limitações de sua formação,
uma luz na educação dos jovens. Primeiro a introduzir
os estudos de filosofia com seriedade no país, tendo precária,
mas corajosamente confrontado o currículo básico da
Igreja católica com lições sobre Kant, o iluminismo
e os ideais libertários, sua influência e valor cultural
vão muito além do apagado papel que os livros de história
geralmente lhe atribuem.
Os Cadernos de Filosofia que presentemente
analisamos, contêm uma doutrina moral complata aos moldes da
filosofia iluminista. Se não é original, ao menos contribuiu
para a inserir em língua portuguesa e território nacional
princípios distintos dos que se pregava nos seminários
de então, e em todas as páginas o vigor e a desenvoltura
com que a inteligência de Feijó apresentam o tema deixam
claro a excelência de sua própria meditação.
Em nossa economia moral íntima, conforme as leituras do padre-regente,
duas propensões naturais teriam o papel de motores do automatismo
do comportamento humano. Estas propensões seriam o amor de
si, o que hoje quase sempre qualificamos como egoísmo, e a
estima de si, um instinto nobre e solidário, correspondendo
à decência natural, não adquirida por educação
ou esforço, que todo o indivíduo tem em si pelo simples
fato de ser filho de Deus.
O amor de si ou amor próprio é a fonte básica
de todos os males, na medida em que pelo seu mau uso ou exagero é
que o homem ultrapassa os interesses de seus semelhantes, e contraria
a vontade de Deus. De essência positiva, porque natural, o amor
de si tem na sua forma espontânea e limitada a nobre função
de preservar o animal biológico que por assim dizer serve de
hospedeiro para a alma. Garantindo a reprodução da espécie,
a saúde do corpo ou o direito a propriedade adquirida, o amor
de si cumpre sua elevada finalidade; o que deixa de ocorrer somente
quando se extrapola a medida do necessário, provocando excesso
danoso ao corpo (p.ex. sexual, alimentar, etc) ou invadindo o espaço
em que também deve vigorar o amor próprio de outrem,
prejudicando este último na obtenção de seus
fins legítimos.
A estima de si, em contrapartida, é a propensão natural
da personalidade humana ao bem. Enquanto a primeira busca o prazer,
medida da satisfação da vontade na preservação
do eu, esta segunda propensão é o instinto inato do
dever, do respeito que deve o indivíduo a seus semelhantes,
e mesmo da necessidade de por eles devotar-se ou abnegar-se. É
de certa forma o instinto gregário ressaltado por Aristóteles.
Estas propensões automáticas naturalmente não
garantiriam a vida ética do sujeito, não fosse o concurso
da razão esclarecendo o indivíduo sobre o funcionamento
deste automatismo da vontade, e oferecendo-lhe a opção
de direcionar sua volição não mais conforme as
propensões, senão conforme a regra da conduta estabelecida
por ela (a razão). A volição inconsciente das
propensões passa assim à volição racional
e, portanto, livre.
Mas aqui há uma diferença fundamental para com a agenda
iluminista que ele reproduz quase na íntegra. Aquém
da função da inteligência em dar a norma de comportamento
correta para a vontade, Feijó reforça a preponderância
da piedade sobre a norma, observando que a consciência pode
inclusive vacilar diante de apuros e dilemas teóricos ou éticos.
Nisto, contudo, pode auxiliá-la a revelação,
que como lei objetivada que corresponde à lei subjetiva escrita
na consciência. A revelação é a voz de
Deus prometendo através dos profetas e do Filho a perfeita
justiça. O que a consciência sugere, mas não pode
garantir, a revelação promete com firmeza: “Sê
virtuoso e serás feliz!”[1]
É o mote fundamental de toda a religião.
Certificado pela revelação, o homem tem a força
necessária para enfrentar todas as privações
que as grandes tarefas podem exigir. Se uma vida de agrura e sacrifício
se fazem necessária ao cumprimento do dever, especialmente
se este inclui o bem coletivo, a promessa da felicidade eterna é
o único lenitivo com o qual pode consolar-se.
Pois bem; o que garantiria então a correção do
comportamento, se apesar do que apontavam razão e revelação
a vontade permanecia em posse de todo o poder deliberativo? Não
poderia o homem enxergar o certo e desejar, ainda e contudo, o erro?
Não, responde o pensador brasileiro, pois tanto a razão
quanto o sentimento de piedade aplicariam sobre o sentimentos do homem
o aguilhão do arrependimento e da consternação
sempre que a vontade teimar em ignorar os avisos da mente e do coração.
A regra moral que Deus permite aos homens desvendar por estudo e experiência
não apenas sugere o bem, mas pune o mal. É preciso,
portanto, estudar quais são as condições em que
nossa consciência exerce sobre nosso organismo moral esta imputação.
As exigências morais que o padre iluminista impunha a si mesmo,
e aconselhava aos demais, eram das mais rigorosas. Praticamente qualquer
desvio da intenção, do pensamento ou do desejo poderia
ser imputado moralmente ao homem. Omissão, conivência
e negligência do dever seriam tão imputáveis quanto
a própria execução do crime, embora em grau menor.
Jamais uma participação, mesmo que inconsciente, numa
falha moral pode ser ignorada do juízo da consciência,
quanto menos do divino. O indivíduo só estaria isento
da participação no mal se ele além de não
o desejar tiver feito todos os esforços a sua disposição
para o evitar e repudiar, inspirando nos demais o mesmo zelo. Observemos
nas próprias palavras do magnífico regente a tábua
das imputações em todos os seus detalhes:
... quando o homem faz quanto
pode para corrigir seus hábitos e moderar suas paixões;
quando o arrependimento do pecado retrata o efeito desses hábitos
e paixões, eu não sei como se lhe pode imputar semelhantes
ações ou omissões.
As ações praticadas com diminuição de
liberdade serão mais ou menos imputáveis, segundo
a força do sentimento moral e motivos mais ou menos obrigantes
oferecidos pela razão, segundo temperamento e educação...
Como muitos podem ser autores de uma só ação
deve-se examinar-lhe o grau de influência que cada um teve
nela, para se-lhe imputar.
Pode o autor ser causa única ou cooperadora; cooperar igualmente
ou com desigualdade; ser causa principal ou subalterna; ser causa
próxima ou remota; imediata ou mediata.
Pode influir no entendimento suscitando a ideia da ação,
por conselho, exemplo ou por qualquer sinal. Pode influir na vontade
mandando, ameaçando, rogando facilitando ou aprovando.
(E por último o motivo que todos reconhecem ser o predominante)
Pode influir na ação deixando de fazer o que devia
para embaraçá-la.[2]
Em relação aos deveres para consigo mesmo, que se dividem
em deveres para com o corpo, a vontade e o espírito, todos
compartilham a recomendação da disciplina e educação
dos hábitos. O esforço de repetição do
comportamento virtuoso, saudável ou feliz, garantiriam, para
Feijó a adequação do corpo, da vontade e do espírito
às tarefas elevadas, descondicionando o homem de seus padrões
atávicos e instintos incultos.
Por fim o dever da beneficência extrapola completamente o âmbito
da ética restritiva e exige uma noção positiva.
A beneficência é a obrigação de fazer ao
próximo o que gostaríamos que nos fizessem, o que não
se confunde com as limitações do nosso comportamento
visando não o prejudicar. O dever da beneficência, mais
que isso, exige o sacrifício, a caridade e o devotamento do
indivíduo aos demais, sem outro interesse que não seja
o do bem alheio e coletivo. É de acordo com este dever que
se executam as ações heroicas e santificadas que marcam
uma comunidade no curso da história, e é o cumprimento
dele que mais ressalta um indivíduo aos olhos de Deus.
Saindo do plano teórico da filosofia moral para o aspecto mais
prático da edificação e da confissão de
fé, nosso patrono espiritual revela ainda maior familiaridade
e grandeza no trato dos assuntos pertinentes à reforma interior.
Reproduzimos a seguir pequenos trechos do texto Retrato do homem
de honra e verdadeiro sábio:
O sábio e homem honrado
põe a sua felicidade em temer a Deus, e em lhe ser fiel;
olha o pecado como o maior dos males e quisera antes perder tudo
que cometê-lo.
Fala sempre com o maior respeito de Deus, de religião, das
coisas santas, e dos maiores: nem murmura deles, nem o consente
fazer, se pode. Não se envergonha de ser devoto, nem de o
parecer; mas evita exteriores, que faria ridicularizar a piedade.
Nenhum interesse é capaz de o fazer mentir e faltar à
verdade; mas não jura por ela: e sabe guardar segredo a tempo,
e sem mentir jamais...
É dócil e afável até com os pequenos:
nunca mostra desigualdade de humor e de gênio, que o faça
odioso e insuportável; tem sempre um rosto sereno, e esta
amável alegria, companheira da inocência e da bondade
do coração; naturalmente é civil e político
com todos e se contrafaz para não molestar alguém...
Seu gosto é fazer bem, antes que lho peçam, e quando
não pode, se desculpa em termos tão sinceros e corteses,
que obriga e encanta; e jamais se jacta do benefício que
faz; nem se esquece do que lhe fazem... Não tem inveja da
fortuna dos outros... Sabe se acomodar-se a todos os espíritos
e a todos os gênios, quando a decência e a sabedoria
o permitem; e se porta de modo que a ninguém desagrada...[3]
O texto completo é longo, mas
todo ele marcado pela mesma dignidade. Seria conveniente que todo
o gênero humano o conhecesse mais de perto. Para resumir, no
entanto, observamos que a ninguém é dado falar e escrever
com um força que não possui, e se nosso sábio
e piedoso autor nos encanta com o retrato do modelo de homem moral,
é porque pôde retirar de si esta viva imagem, que para
nós quase como utopia se apresenta.
Todos os que que se habituaram a ler discursos morais e religiosos
sabem o quão detestavelmente vazios e evidentemente hipócritas
são os termos daqueles que pretendem emular uma virtude que
não possuem; e tentando imitá-la, deturpam-na.
Em toda a sua vida Feijó nos apresentou este mesmo retrato
da retidão. Renunciando ao poder que muitos cobiçavam
e que ele aceitou como obrigação do dever, deu a prova
de que em nenhuma circunstância estava à venda a sua
consciência. A dedicação com que exerceu o cargo
de regente do Império, motivado exclusivamente por amor à
pátria e ao povo, deveria envergonhar para sempre todos os
homens públicos que sequer pensaram em os desonrar.
Este que foi provavelmente o nome mais ilustre dentre os que nos governaram,
não obteve o cargo nem por direito, como os imperadores, nem
pelo voto, como os presidentes, mas, como para destacar-lhe a distinção,
foi escolhido em situação de urgência, quando
a nação necessitava de uma figura dotada de inquestionável
caráter e destacada competência. A quem, em nosso atual
cenário público, poderíamos apontar?
Ao lado do cortejo inumerável de infelizes réprobos
da pátria, elevados pelo seu poder ou pela irresponsabilidade
das multidões ao papel de líderes, restará sempre
o nome de Feijó como símbolo do orgulho coletivo. Nele
podem os brasileiros, como em muito poucos outros indivíduos
de nossa memória, buscar a inspiração para o
cumprimento dos destinos do país.
[1] Diogo A. FEIJÓ. Cadernos de Filosofia. Pg.
127.
[2] Ibid. Pg. 133.
[3] Ibid. Pg. 165-167