Espiritualidade e Sociedade



Gismair Martins Teixeira

>   Um gênio no laboratório de Kardec - John Milton

Artigos, teses e publicações

Gismair Martins Teixeira
>   Um gênio no laboratório de Kardec - John Milton

 

 

A Revista Espírita, que foi publicada por Allan Kardec a partir de janeiro de 1858 até a sua desencarnação em 1869, completou em 2011 os 154 anos de sua primeira edição. Ela é conhecida pelos estudiosos espiritistas como sendo o laboratório onde o sistematizador do espiritismo propôs questões, testou hipóteses e analisou teorias utilizando-se do instrumento de pesquisa por excelência da doutrina espírita: a mediunidade. O número de janeiro de 1862 traz um ensaio de Kardec que mais tarde seria incorporado ao conteúdo geral de A Gênese, quinta obra do pentateuco kardequiano, publicada em 1868. Sob o sugestivo título de Ensaio sobre a interpretação da doutrina dos anjos decaídos, o professor Rivail discorre de forma brilhante sobre as consequências objetivas da pluralidade dos mundos habitados na fundamentação cultural da teoria dos anjos caídos.

No ensaio sobre esta suposta categoria espiritual de seres, Allan Kardec expõe o tema com o seu proverbial bom senso. Posteriormente, coloca-o em aberto, juntamente com outros quatro tópicos, para que sejam analisados pelos diferentes grupos espíritas da época. No mês de abril de 1862, a Revista Espírita publicou diversas comunicações obtidas por via mediúnica sobre a teoria proposta por Kardec. Todas foram unânimes em confirmar a correção dos princípios deduzidos por ele. Uma, porém, chama a atenção pelo nome que assina um dos comentários à hipótese kardequiana sobre os anjos caídos. Trata-se de ninguém menos que John Milton, que através da mediunidade da senhora Bouillant, comenta o assunto que em vida física lhe foi tão caro. Na história da literatura, Milton é o consagrado autor de Paraíso perdido, um dos épicos maiores da história literária do Ocidente.


O Homero da cristandade


Os poemas épicos são narrativas extensas em verso, que relatam acontecimentos quase sempre lendários entrelaçados a eventos históricos célebres. Os mais famosos são de autoria de Homero, datando dos séculos 8 a 10 a.C. Consideradas as fundadoras da literatura ocidental, a Ilíada e a Odisseia tratam dos episódios envolvendo a guerra de Troia e os fatos que lhe sucederam, como o retorno de Odisseu, ou Ulisses, para o reino de Ítaca. Ao longo de uma década, diversas peripécias que envolvem homens e deuses constituem um campo de estudo riquíssimo para a análise do processo mediúnico e do conhecimento espírita presente nas obras literárias clássicas. Variados deuses do panteão grego, dotados de virtudes e defeitos humanos, influenciam os homens com suas paixões e ciúmes, numa prefiguração do problema da obsessão tão bem estudado pelo espiritismo.

Em Paraíso perdido, que foi originalmente publicado em 1667 e pode ser considerado uma das grandes epopéias da humanidade em todos os tempos, John Milton coloca em versos épicos o que a tradição teológica da cristandade consagrou como princípio de fé. Assim, o autor estrutura a sua epopéia utilizando-se do ponto de vista da tradição da crença cristã, que considera ter havido uma guerra no céu entre os anjos liderados por Lúcifer e os anjos liderados pelo arcanjo Miguel. O motivo da escaramuça celeste é um dos achados de Milton, e se prende ao fato de que Lúcifer não suportou a criação de Jesus Cristo e sua ascensão como preposto do Pai na hierarquia celestial, revoltando-se por ciúme. Chama a atenção o relato das batalhas angélicas no espaço espiritual pré-Terra. Após a derrota dos anjos revoltosos, estes são arremessados no abismo cósmico que passa a ser o inferno da teologia.

Ali, em assembleia, comentam sobre os planos de Deus em relação à nova criatura que os substituiria na estrutura do universo, o homem, para quem o Criador destinaria um novo mundo. A corte infernal delibera, então, conforme está apresentado na estrutura de Paraíso perdido, fazer com que o novo ser se corrompa, como uma vingança pela expulsão do céu. Pela sua onisciência, Deus a tudo antevê, percebendo a queda do ser humano diante da tentação levada a efeito por Satanás. Conforme o Criador, somente uma criatura celeste que se dispusesse ao sacrifício vicário poderia salvar o gênero humano. Jesus não hesita. Toma para si a missão de redentor do homem. Paraíso perdido apresenta, portanto, eventos que teriam se passado antes do que é narrado no primeiro livro da Bíblia, o Gênesis. Ou seja, do ponto de vista da estrutura narratológica, trata-se de obra genialmente concebida.

Não era para menos. John Milton, contemporâneo de William Shakespeare, é um dos grandes nomes da literatura em todos os tempos. Formado em Cambridge e dotado de prodigiosa inteligência, Milton era fluente em oito línguas. Sua vida, como a de muitos gênios, foi atribulada em muitos aspectos. Ao final de sua existência, padeceu com a cegueira. Esta curiosidade biográfica remete à vida de Homero, que segundo suposições históricas foi cego durante sua existência. Não somente por esta coincidência, mas sobretudo pela grandeza das suas epopeias, fica para o estudioso espírita uma pontinha de curiosidade se não se trataria da mesma individualidade espiritual a animar estas duas personalidades. Em outras palavras, Milton seria a reencarnação de Homero?! É uma possibilidade que a lei das existências sucessivas deixa em aberto à reflexão do estudioso da vida de ambas as personagens quando vistas pelo prisma espírita.

A simples comunicação, portanto, de tão importante personalidade da historiografia literária mundial nas páginas da Revista Espírita de abril de 1862, para onde remetemos o leitor interessado, saudando a teoria de Kardec sobre a queda dos anjos e a perda do paraíso, configura um importante acontecimento cultural que liga o espiritismo à cultura universal.

 

GISMAIR MARTINS TEIXEIRA
– Doutorando em Literatura e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás; professor; colaborador cultural do jornal goiano O POPULAR; membro-fundador da Academia Espírita de Letras do Estado de Goiás e da Academia Goianiense de Letras.


Leia também de Gismair Martins Teixeira:


>  Chico Xavier, Divaldo Franco e Goiânia
>  Os 106 anos do nascimento de Chico Xavier
>  O Espiritismo e a Mulher de Preto
>  O espiritismo e o bicentenário de Dickens
>  O Etos Psicoterapêutico espírita no romance A Mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar
> O Ethos filosófico de Gilles Deleuze e Félix Guattari e a Ciência Literária em diálogo com o pensamento kardequiano
>  As faces literárias de um goiano de coração: A trajetória cultural de Emídio Brasileiro
>  Freud, o mosaico de citações e “O Livro dos Espíritos
>  Hipátia, a cinebiografia e a materialização de uma alma
>  O Intertexto Mediúnico de uma Dissertação de Mestrado e a Discursividade Espírita
>  Joana de Ângelis, o imaginário espírita e os versos de Goethe    
>  Kardec e a gênese do imaginário espírita
>  Léon Denis e a reencarnação das fontes bíblicas
>  O paraíso sob um novo olhar
>  O Relógio Belisário, de José J. Veiga e o Imaginário Espírita
>  Territórios, mobilidade e biografia no espiritismo franco-brasileiro
>  Um gênio no laboratório de Kardec - John Milton
>  Uma alegoria evangélica sobre a missão de Kardec

 

Gismair Martins Teixeira; Maria do Socorro Pereira Lima:

>  O quadricentenário da morte de William Shakespeare e uma pergunta de Denizard Rivail
>  A Performance cultural psicográfica de Chico Xavier, a Filosofia da linguagem e um singular índice de lusitanidade

 

 

 


topo

 

Acessem os Artigos, teses e publicações: ordem pelo sobrenome dos autores :
- A - B - C - D - E - F - G - H - I - J - K - L - M - N - O - P - Q - R - S - T - U - V - W - X - Y - Z 
  - Allan Kardec
   -   Special Page - Translated Titles
* lembrete - obras psicografadas entram pelo nome do autor espiritual :