Ao longo das últimas décadas,
a Federação Espírita do Estado de Goiás
tem realizado nos dias de carnaval, geralmente no Centro de Convenções
de Goiânia, o seu já tradicional congresso espírita.
Culturalmente, o período carnavalesco apresenta muitas
particularidades sociológicas, sobretudo no Brasil. Embora
a festa de Momo não seja uma invenção brasileira,
por aqui ela ganhou um colorido todo próprio.
Algo semelhante aconteceu com o futebol, que em nosso país
se aclimatou de forma a retornar ao mundo com um colorido todo
especial em função do talento brasileiro que frustrou
por completo o nacionalismo do escritor pré-modernista,
Lima Barreto. O autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”
profetizara, inadvertidamente, que o esporte bretão jamais
se tornaria popular no Brasil. Como profeta, foi um grande escritor.
Outro fenômeno cultural que não surgiu por aqui,
mas que se estabeleceu em solo tupiniquim como em nenhum outro
lugar, é o Espiritismo sistematizado por Allan Kardec a
partir da segunda metade do século 19. A exemplo do futebol
e do carnaval, que são admirados mundo afora, a grande
nação brasileira exporta hoje para o mundo a mensagem
espiritista, que também tem se mostrado bastante admirada
em outras terras.
Se o futebol e o carnaval têm os seus nomes representativos
num contexto mais amplo, o Espiritismo brasileiro igualmente os
tem. Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco,
por exemplo, representam expressões culturais da doutrina
espírita que transcendem em muito as fronteiras do Brasil.
No plano interno, ambos respondem por uma massa crítica
de natureza mediúnica que, além de vivificar o espiritismo,
tem sido objeto de estudo em vários programas de pós-graduação
de importantes universidades brasileiras.
No plano externo, a intensa atividade do médium conferencista
Divaldo Pereira Franco tem levado o espiritismo a milhares de
cidades, em dezenas de países, há décadas.
Os números impressionantes podem ser conferidos em diversos
sites da internet, incluindo o do próprio médium,
cujas biografias já publicadas apresentam um percurso de
vida que se funde com as propostas espirituais delineadas nas
páginas do trabalho bibliográfico de Allan Kardec.
A cidade de Goiânia sempre teve com Chico Xavier e Divaldo
Franco uma relação bem próxima. A memória
espírita goiana ainda se recorda das numerosas visitas
de Chico Xavier à Colônia Santa Marta todo final
de ano, em memoráveis natais, até quando a saúde
do médium mineiro lhe permitiu o deslocamento.
Por sua vez, o orador Divaldo Franco esteve presente na maioria
dos congressos espíritas realizados durante o período
de carnaval, tendo sua participação agendada para
o evento deste ano. Conferencista de renome mundial na cultura
espírita, Franco proferiu palestra em Goiânia no
auge dos acontecimentos em torno do acidente nuclear do Césio-137,
no ano de 1987, num gesto de solidariedade marcante, quando o
medo e a ignorância faziam com que muitos brasileiros evitassem
a capital goiana.
RIZOMA E MEDIUNIDADE
Em “Mil Platôs:
Capitalismo e Esquizofrenia”, os filósofos Gilles
Deleuze e Félix Guattari apresentam um modelo na teoria
do conhecimento baseado em uma metáfora de cunho botânico.
Nesse ramo da ciência, o rizoma é definível
como sendo “um tipo de caule que cresce de forma horizontal,
geralmente subterrânea, mas podendo também ter porções
aéreas”. A grama é um exemplo de rizoma. Hastes
subterrâneas interligam seus tufos, que vistos na superfície
parecem separados.
No plano cultural, Deleuze e Guattari metaforizam essa imagem
do rizoma na filosofia do conhecimento. Cada estrutura, embora
os autores não gostem desse termo, pode ser pensada como
uma manifestação rizomática que mesmo aparentando
isolamento se liga a outras estruturas através de hastes
imperceptíveis.
No espiritismo, Allan Kardec define o médium como sendo
a “pessoa que pode servir de intermediária entre
os Espíritos e os homens”. De acordo com a proposição
epistemológica delleuzeguattariana, cada médium
pode ser pensado como um rizoma único, cujas hastes invisíveis
o ligam às demais realidades do espírito. Assim,
o fenômeno mediúnico poderia ser concebido como sendo
de natureza rizomática, como de resto todos os demais fenômenos
sociais ou ontológicos.
“Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia”
foi publicado originalmente em francês, compondo um único
volume. Os editores brasileiros dividiram a obra em cinco volumes.
A partir da conceituação do rizoma como metáfora
da teoria do conhecimento, os pensadores franceses discorrem acerca
de vários assuntos. Ao tratarem de linguística,
no segundo volume da série brasileira, enfatizam a importância
do discurso indireto na estrutura da comunicação
da ciência saussuriana.
No tópico linguístico, Delleuze e Guattari ressaltam
a importância de elementos psicolinguísticos, expressos
através das palavras de ordem, que permeiam o discurso
indireto, numa proposição que mereceria pesquisa
mais detalhada em sua correlação com um rizoma espírita,
que é explicitamente mencionado em seu imaginário
linguístico na abordagem dos filósofos franceses.
Às páginas 18 e 19, registram os autores:
“Escrever é talvez
trazer à luz esse agenciamento do inconsciente, selecionar
as vozes sussurrantes, convocar as tribos e os idiomas secretos,
de onde extraio algo que denomino Eu [Moi]. EU [JE]* é
uma palavra de ordem. (...) Conseqüentemente, quando perguntamos
qual é a faculdade própria à palavra de
ordem, devemos reconhecer nela características estranhas:
(...) Faculdade do ponto no teatro e de quem o escuta, faculdade
da canção que coloca sempre uma ária em
uma ária, em uma relação de redundância,
faculdade mediúnica na verdade, glossolálica ou
xenoglóssica”.
Termos como “faculdade mediúnica”,
“glossolálica” e “xenoglóssica”
e suas variantes são corriqueiras no universo das pesquisas
espíritas. Delleuze e Guattari se mostram, pois, familiarizados
com o etos espiritista.
CHICO, DIVALDO E VICTOR
HUGO
Se entre a comunidade goianiense e os médiuns Chico Xavier
e Divaldo Franco sempre houve uma cordata relação
de simpatia, entre os dois grandes nomes do espiritismo parece
ter havido, na maior parte do tempo, uma relação
de mútuo respeito e cordialidade. A mediunidade em ambos
atingiu um extraordinário nível fenomênico,
sobretudo a de efeitos intelectuais.
No universo discursivo filosófico de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, o espiritismo pode ser pensado também como um
rizoma que se expressa através de um imaginário
todo próprio. A doutrina sistematizada por Allan Kardec
tem como um de seus pilares a possibilidade de comunhão
entre a alma dos homens que viveram sobre a terra com a daqueles
que estão vivendo neste momento, através da mediunidade.
Em seus escritos publicados na “Revista Espírita”,
Kardec cogitou da possibilidade de que grandes escritores já
falecidos pudessem algum dia voltar a escrever aos homens. A posteridade
espírita viria a confirmar a intuição do
codificador da doutrina imortalista. Curiosamente, no contexto
rizomático espírita, um dos maiores nomes da literatura
universal, o escritor francês Victor Hugo, que em vida fora
profitente do espiritismo, retornou com uma significativa produção
romanesca captada por dois médiuns brasileiros distintos:
Zilda Gama e Divaldo Pereira Franco.
Aplicando a teorética do rizoma ao campo da leitura, tem-se
a princípio a possibilidade de dois tipos de leitores para
uma obra de natureza mediúnica: o crente e o cético.
Para o leitor espírita, a alma de Victor Hugo realmente
escreveu pelas mãos de ambos os médiuns uma série
de romances, numa sequência do que fizera em vida física.
O leitor não espírita, por sua vez, poderá
contemplar as narrativas sem maiores problemas, usufruindo-as
sob a perspectiva cultural em que foram produzidas, mesmo que
não creia nela. É o óbvio que a mente preconceituosa
do “não li e não gostei” jamais consegue
perceber.
Dentre os diversos romances mediúnicos atribuídos
ao genial escritor francês, um se destaca por particular
singularidade no âmbito do rizoma espírita. Em “Árdua
Ascensão”, publicado em sua primeira edição
no ano de 1985, o espírito Victor Hugo escreve uma obra
cuja narrativa parece ter se baseado na vida apostolar de Francisco
Cândido Xavier. Alguém poderá alegar estranheza,
como se a própria possibilidade de um escritor mundialmente
conhecido do século 19 escrever uma obra póstuma
através das mãos de alguém já não
fosse por si só bastante estranho.
Todavia, trata-se de um recurso técnico literário
bastante sofisticado, conhecido nos estudos de literatura como
roman à clef, ou romance com chave, que se caracteriza
pela apropriação por parte do escritor de dados
biográficos da vida de alguém para uma elaboração
ficcional. A identidade verdadeira é elidida através
da mudança de nomes, mas os acontecimentos permitem geralmente
identificar de quem se trata. “Árdua Ascensão”,
obra que no rizoma espírita é da parceria espiritual
entre Divaldo Franco e Victor Hugo, configura um singular “roman
à clef” que presta uma homenagem ao notável
médium Francisco Cândido Xavier.
Porém, Victor Hugo-espírito, no rizoma espiritista,
escreve por Divaldo Franco uma obra não somente definível
como um romance com chave. Tecnicamente, a obra se classificaria
tanto como um “roman à clef” quanto
como um romance de tese. Num capítulo específico
de “Árdua Ascensão”, intitulado
“O porquê do espiritismo no Brasil”,
o autor defende a tese de que grande parte das almas francesas
ligadas ao período da célebre revolução
daquele país, quanto aquelas que acompanharam de perto
a materialização do espiritismo pela obra francófona
de Allan Kardec, renasceram no Brasil e no seio da doutrina espírita
para darem sequência a suas atividades espirituais.Seria
esse um dos principais motivos pelos quais o espiritismo encontrou
em solo brsaileiro um terreno fértil à sua mensagem.
Peculiaridade como esta, portanto, que se soma a outras numa expressiva
massa crítica mediúnica intelectual, permite concluir
que se o carnaval e o futebol no Brasil atingiram níveis
de excelência, por assim dizer, com o espiritismo ocorreu
fenômeno análogo, embora de significância mais
transcendental pela sua própria essência.