O último dia 18 de abril assinalou a passagem
dos 159 anos de uma obra peculiaríssima na historiografia
da religiosidade humana. Publicada em primeira edição
nesse dia do ano de 1857, “O Livro dos Espíritos”,
de Allan Kardec, pseudônimo do educador, tradutor e escritor
Hippolyte Léon Denizard Rivail, apresenta uma composição
bastante singular, pois o seu conteúdo representaria o
diálogo entre os habitantes de dois planos distintos, mas
que interagem enter si durante todo o tempo: o mundo dos vivos
e o chamado mundo dos mortos. Em número de 1019 questões
– algumas delas subdivididas – propostas didaticamente
por Kardec, as perguntas e respostas formadoras de “O
Livro dos Espíritos” contemplam uma quantidade
bem ampla e significativa de temas relevantes do interesse humano.
Em estudos de natureza linguística e semiótica levados
a efeito nos anos 60 do último século, a pesquisadora
búlgara radicada na França, Julia Kristeva, retoma
as proposições do russo Mikhail Bakthin acerca da
polifonia, ampliando a sua conceituação para o âmbito
da intertextualidade que, por sua vez, após Kristeva, conheceria
desdobramentos em sua definição e aplicabilidade.
Em “Introdução à Semanálise”,
a pesquisadora europeia dirá, sobre a noção
de intertextualidade, que “todo texto se constrói
como mosaico de citações, todo texto é absorção
e transformação de um outro texto”. Dito de
outra forma, toda textualidade poderá fazer referência
a outros textos com seus respectivos contextos, alguns muitas
vezes inusitados.
Assim, em um ensaio de 1927 acerca da religiosidade humana, intitulado
“O Futuro de Uma Ilusão”, Sigmund
Freud, o sistematizador da psicanálise, exporá os
motivos por que considera a religião como uma grande ilusão
do espírito humano. Em suas palavras sobre esta importante
faceta da cultura, a religião, Freud aduz que “se
todas as provas apresentadas em favor da credibilidade das proposições
religiosas provêm do passado, é natural verificar
se o presente, que pode ser julgado com mais acerto, também
pode oferecer tais provas”. Em seguida, afirma que se fosse
possível colocar a salvo de dúvidas pelo menos uma
parte que fosse do sistema religioso, o conjuntaria ganharia de
forma extraordinária em credibilidade. Por isso, afirma
o cientista da mente em “O Futuro de Uma Ilusão”:
“É aqui que entra a atividade dos
espíritas, que estão persuadidos da continuidade
da alma individual e que pretendem nos demonstrar que essa proposição
da doutrina religiosa é isenta de dúvidas. Infelizmente,
não conseguem refutar o fato de as aparições
e as manifestações de seus espíritos serem
apenas produtos de sua própria atividade psíquica.
Eles evocaram os espíritos dos maiores homens, dos mais
destacados pensadores, mas todas as manifestações
e notícias que deles receberam foram tão tolas,
tão inconsolavelmente ocas, que não se pode acreditar
em outra coisa senão na capacidade dos espíritos
de se adaptarem ao círculo de pessoas que os invoca”.
Em outras palavras. Os espíritos dos sábios, evocados,
não diriam nada de excepcional em relação
a suas proposições quando em vida. “O
Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec, parece
contituir-se numa objeção plausível a esse
aponamento freudiano em torno da tolice espiritual dos grandes
pensadores radicados no além. No final da introdução
dessa obra kardequiana, que recebe o título de “Prolegômenos”,
alguns nomes importantes da filosofia e da religião de
todos os séculos, consultados em diversas reuniões
mediúnicas em que Kardec esteve presente, são mencionados.
Dentre eles, o filósofo grego Platão. O olhar sobre
um tópico tratado pelo Platão histórico e
o seu congênere espírita, apontará que talvez
Sigmund Freud tenha se precipitado.
“PROUST, PLATÃO E ESPIRITISMO”
Uma das produções
literárias mais colossais do gênio humano em todos
os tempos é, sem dúvida, o conjunto de sete volumes
de “Em Busca do Tempo Perdido”, do escritor
francês, Marcel Proust. Publicados na primeira metade do
século 20 e subintitulados por ordem cronológica
de publicação como “O Caminho de Swann”,
“À Sombra das Moças em Flor”,
“O Caminho de Germantes”, “Sodoma
e Gomorra”, “A Prisioneira”; “A
Fugitiva” e “O Tempo Recuperado”,
“Em Busca do Tempo Perdido” remete em momentos
diversos de sua narrativa ao universo espiritista, assim como
outras obras-primas da literatura universal, como “Os
Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoiévsky
e “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães
Rosa. O primeiro volume abre com o narrador proustiano em primeira
pessoa referindo-se a um estado de sonolência pós-leitura,
na cama, que o remete a um estado alterado de consciência
produzido por uma hipnagogia evocativa de uma situação
de – em suas palavras – metempsicose.
Os dicionários se referem ao termo “metempsicose”,
de forma genérica, como a doutrina da transmigração
das almas através de vários corpos. É um
nome mais geral para reencarnação, que admite o
retorno da alma para outro corpo após a morte física.
A diferença fundamental entre a metempsicose e a reencarnação
espírita é que a primeira admite o retorno da alma
humana em corpos animais, enquanto a segunda admite a volta da
alma humana em corpos sempre humanos. Em “O Livro dos
Espíritos”, Allan Kardec elaborou a pergunta
de nº 612 nestes termos: “Poderia encarnar num animal
o Espírito que animou o corpo de um homem?” A resposta
que obteve dos autores espirituais da obra foi: “Isso seria
retrogradar e o Espírito não retrograda. O rio não
remonta à sua nascente”.
Em sua obra “Fédon”, que é
um de seus primeiros diálogos, Platão defende a
ideia da metempsicose como transmigração da alma
em corpos animais como punição por seus desvios
de cunho moral. Antes dele, Pitágoras já advogara
semelhante condição transmigratória para
as almas, tendo haurido o conceito, possivelmente, entre os egípcios.
Estes, por sua vez, buscaram-no entre os indianos. De um ponto
de vista noético, aqui entendido como o “que se caracteriza
pelo uso da razão”, a reencarnação
da alma humana em corpos equivalentes parece exponencialmente
mais lógica e racional.
Assim, como o espírito de Platão é um dos
sábios da antiguidade que assina “O Livro dos
Espíritos”, logo, pois, em concordância
com os postulados nele apresentados, teria realizado uma correção
de rota em relação a um conceito importante para
o espiritualismo e o espiritismo universais ao admitir a reencarnação
do ser humano apenas em corpos humanoides. Este tópico
configuraria, portanto, dentre outros pinçáveis
ao conteúdo da obra inaugural do Espiritismo, uma razoável
objeção ao que é defendido por Sigmund Freud
em “O Futuro de Uma Ilusão”, quando
defende que os homens notáveis que já fazem parte
da história humana só dizem tolices em seus comunicados
de natureza mediúnica.