O recém-falecido crítico
literário, Antonio Candido, considerava o romance “Grande
sertão: veredas”, do escritor e diplomata mineiro,
João Guimarães Rosa, como um dos maiores portentos
já produzidos pela literatura universal; um autêntico
orgulho das letras nacionais. Nessa obra, Riobaldo, o protagonista
que narra suas aventuras de ex-jagunço a um interlocutor
oculto no texto, afirma a certa altura que o que cura mesmo a
loucura é bastante reza.
Por esse motivo, ele aceita as preces de todos os credos, bebendo,
em suas palavras, água de todos os rios, aceitando indistintamente
as orações de sacerdotes diversos, recebendo também
as orações de seu “cumpade Quelemém,
seguidor da doutrina de Cardéque”. Em sua reelaboração
da linguagem, um dos índices da grandiosidade de Rosa na
concepção dessa obra extraordinária, o autor
translitera o pseudônimo do sistematizador da doutrina espírita,
Allan Kardec, para uma escrita que dialoga com os demais vocábulos
que reproduzem graficamente o falar sertanejo do interior de Minas
Gerais, Bahia e Goiás.
Nascido Hippolyte Leon Denizard Rivail num 03 de outubro do ano
de 1804, Allan Kardec seria o pseudônimo adotado para distinguir
a sua produção didática da sua vasta bibliografia
fundadora do espiritismo, termo por ele cunhado para referir-se
à doutrina surgida a partir das manifestações
paranormais em seu intercâmbio com os vivos através
de indivíduos dotados de uma sensibilidade especial a que
Kardec denominou mediunidade.
A primeira obra sobre o tema editada pelo pesquisador francês
surge em Paris no dia 17 de abril de 1857. A partir de então,
o imaginário espírita se instaura. Como toda manifestação
no campo ideológico, atrai advogados para sua causa, bem
como críticos ferrenhos, o que é perfeitamente natural
no contexto da história das ideias.
Kardec, imaginário
e cultura
Em “As estruturas antropológicas do imaginário”,
Gilbert Durand define o imaginário como sendo “o
conjunto das relações de imagens que constituem
o capital pensado do homo-sapiens”. É uma definição
abrangente, que encerra um volumoso conjunto de conceitos explorados
pelo autor numa vastíssima bibliografia, o que eleva seu
trabalho a uma condição de muito relevo nesse campo
de estudos. Gilbert Durand perpassa os mais diversos campos do
saber, como a filosofia, a antropologia, a psicologia, a sociologia
etc. para estabelecer os parâmetros de sua definição.
Assim, o imaginário espírita vai apresentar todo
um conjunto imagético que a ele remete e que tem sido explorado
ao longo do tempo em locais diversos, tendo em Allan Kardec o
seu iniciador. No campo literário, além de Guimarães
Rosa, “Os Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoiévski,
abre um diálogo com o imaginário espírita-kardequiano
quando Ivan, um dos protagonistas, dialoga com o demônio
e este faz menção à atividade dos espíritas,
numa referencialidade a um dos motes explorados pelos adversários
das ideias kardequianas para subestimá-las.
Em “A Montanha Mágica”, Thomas Mann apresenta
todo um capítulo que contempla uma sessão mediúnica
bastante singular, caracterizada pela manifestação
ostensiva dos espíritos. “Em Busca do Tempo Perdido”,
de Marcel Proust, em seus dois volumes iniciais também
se refere ao imaginário espírita e sua relação
com a problemática da reencarnação e da fenomenologia
mediúnica.
Além do espaço da ficcionalidade literária,
outras iniciativas culturais têm se desenvolvido em torno
do nome do sistematizador do espiritismo. Constitui exemplo disso
a defesa de uma tese de doutorado na USP no ano de 2001 sob o
título de “Pedagogia Espírita: um Projeto
Brasileiro e suas Raízes Histórico-Filosóficas”,
em que a pesquisadora Dora Incontri apresenta as bases culturais
em que Allan Kardec se formou e de que lançaria mão
na elaboração da doutrina espírita.
Diversos programas de pós-graduação brasileiros
têm contemplado o pensamento kardequiano e seu imaginário
nos últimos anos, nas mais diversas vertentes de pesquisa.
Pesquisadores diversos têm utilizado de seus conhecimentos
acadêmicos para estabelecer importantes correlações
entre o pensamento de Kardec e outras instâncias do saber,
numa perspectiva cultural instigante. Em Goiás, por exemplo,
o Doutor em Direito, Emídio Silva Falcão Brasileiro,
fundou a Academia Espírita de Letras de Goiás, a
primeira do gênero de que se tem notícia, tendo Allan
Kardec como patrono da Cadeira nº 1.
Ainda nesse contexto de cultura, o espaço virtual disponibilizado
pela internet tem assumido importância significativa. Há
poucos meses, o Doutor e Mestre em lógica e filosofia da
ciência pela Universidade de Campinas-UNICAMP, Cosme Massi,
criou a plataforma digital https://www.kardecpedia.com/, que disponibiliza
a obra completa de Allan Kardec em quatro idiomas: francês,
inglês, espanhol e português, com ferramentas que
permitem estudos comparados de tradução bastante
úteis a pesquisadores interessados, numa instigante contribuição
à cultura, já que o número de pesquisas acadêmicas
em torno do imaginário espírita tem crescido de
forma a despertar a atenção não somente pelo
caráter de religiosidade em si, mas também pelas
características básicas da história das ideias
que vão espraiando-se pela cultura como um todo.