
Sentada calmamente ao piano, uma senhora
em um subúrbio de Londres rabisca uma partitura. Nada incomum
não fosse o fato de que ela pouco sabe de música. A
prova disso são suas sofridas apresentações -
feitas a um círculo muito limitado de pessoas - que demonstra
o caráter precário de seu conhecimento no assunto. Mesmo
assim, ela escreve, e o que registra no papel nem mesmo ela é
capaz de tocar. Dotada de uma faculdade inigualável, ela ouve
o inaudível, nota a nota, do que lhe chega de outras dimensões
da vida maior. Dentre os vários compositores que colaboraram
com a Sra. Brown, um deles se destaca: é Franz Schubert, conhecido
compositor Vienense, falecido há quase duzentos anos e que
também trouxe sua contribuição.
O que ele quer? Seguindo rigidamente
um processo de comunicação adaptado por Franz Liszt,
o Espírito Protetor de Rosemary Brown, F. Schubert busca reunir
em uma única peça a prova definitiva de que ele continua
vivo, embora inacessível aos que estão na Terra. É
preciso ser breve e compacto para não cansar demais a médium,
que não dispõem de maiores conhecimentos para entender
o que "ouve", muito menos para tocar o resultado. Um canal
se estabelece entre o invisível e a matéria densa, e
nasce assim a Sonata em Fá Menor como a única
sonata de Schubert a ser produzida por essa pequena colaboração
entre dois mundos.
Críticos arrogantes e
convencidos de um embuste desqualificam as peças musicais produzidas
por Rosemary Brown. Flertam com teorias de fraude, de esquizofrenia,
do inconsciente supercriativo ou "absorção de estilo".
Classificam a Sra. Brown como autista. Outros dizem que ela fez parte
de uma conspiração maçom e espiritualista, enfim,
produzem explicações baratas. Mesmo entre aqueles críticos
que se especializaram em comparar o que chamam "teorias da sobrevivência"
com outras hipóteses para explicar o fenômeno da Sra.
Brown, sua música é muito simples para constituir prova
da imortalidade. Um observador meticuloso perceberá que, exceto
pela negação sistemática da sobrevivência,
essas explicações pouca coisa têm em comum uma
com a outra porque nascem de desejos de negação que
são tão variados e criativos quanto as personalidades
que os criam.
Meio século transcorre e um jovem pianista resolve aplicar
as teorias da musicologia para avaliar a Sonata em Fá Maior.
Ninguém antes resolveu tratar o problema de um ponto de vista
verdadeiramente científico e aplicar as técnicas de
teoria e análise musical. Seu nome é Erico Bomfim e
o resultado pode ser lido no artigo "O enigma da música
mediúnica: investigando uma forma-sonata atribuída ao
Espírito de Schubert pela médium Rosemary Brown".
Esse trabalho foi apresentado no II Congresso da Associação
Brasileira de Teoria e Análise Musical em 2017 e pode ser lido
na referência (1).
E quais foram os resultados? Logo no início de sua análise,
o autor de (1)
declara:
Surpreendentemente, o movimento
inicial da sonata atribuída ao espírito de Schubert
por Rosemary Brown reúne rigorosamente todas as características
mais fundamentais da forma-sonata schubertiana comentadas acima.
(1, p. 55)
E concluiu:
Não obstante apresentar
diversas características atípicas que merecem mais
ampla discussão, fato é que o primeiro movimento atribuído
ao espírito de Schubert pela médium Rosemary Brown
apresenta de fato todas as características mais básicas
da forma-sonata schubertiana. Essa riqueza de correlações
estruturais é ainda mais notável do que pode parecer
a uma primeira vista. Afinal, se tomadas isoladamente, são
raras as peças da lavra do próprio Schubert que sintetizem
tantas características particulares da forma-sonata do compositor.
(1, p. 59, grifos meus)
É como se o compositor
desencarnado quisesse compactar aspectos de sua obra em uma única
peça, provavelmente por conta das muitas restrições
do processo de comunicação do instrumento de comunicação
à disposição. As provas da colaboração
de Schubert na peça produzida por Rosemary Brown são
tão flagrantes - e, porque não dizer, vergonhosas para
o ceticismo - que Bomfim foi capaz de identificar proximidades com
trabalhos específicos do compositor desencarnado:
Para além de dialogar
com a característica mais fundamental das transições
schubertianas, a transição produzida por Brown encontra
precedente consideravelmente próximo na obra de Schubert:
a Sinfonia “Inacabada” em Si menor, D. 759. (1,
p. 57)
Enquanto o referido caso do trio D. 929 de Schubert não apresenta
esse bloco intermediário e conector observado no movimento
escrito por Brown, permanece, no mínimo, um evidente diálogo
com o desenvolvimento schubertiano, cuja mais notável característica
é a estruturação em grandes blocos transpostos,
elemento que incontestavelmente se verifica na sonata da médium.
Além do mais, seja em D. 929, seja no desenvolvimento escrito
por Brown, os grandes blocos transpostos se relacionam por quinta.
(1, p. 58)
O caso da recapitulação de Brown se assemelha mais
estreitamente ao primeiro movimento da Sinfonia “Trágica”
em Dó menor, D. 417. (1, p.
59)
E Bomfim conclui:
Esses dados sugerem veementemente,
todavia, que a sonata da médium possa ter sido feita para
demonstrar o máximo possível de correlação
com o estilo de Schubert; quer dizer, para dar o máximo possível
de informação estilística e demonstrar, assim,
o máximo possível de conhecimento de estilo. Tais
dados mostram notável consistência com o propósito
declarado da música mediúnica de dar evidências
da sobrevivência da alma ao demonstrar conhecimentos profundos
de estilo, conhecimentos que a própria médium dificilmente
poderia ter. (1, p. 59)
É claro que céticos
contra argumentarão, sem qualquer prova, que a Sra. Brown ouviu
essas peças e as reproduziu simplesmente. Infelizmente, ninguém
conseguiu imitar, nem explicar de maneira racional como isso é
possível, dada a precariedade da capacidade da Sra. Brown em
reproduzir o que ela "compunha" e diante das 400 outras
peças de dezenas de outros compositores que ainda aguardam
análise semelhante.
Comentários finais
Não temos qualquer dúvida
quanto à excelência mediúnica da Sra. Brown.
O que é estarrecedor nesse caso é que,
mesmo os que se consideram especialistas (na sua maioria críticos
musicais), não ocorreu que seria esse o caso de se aplicar
rigorosamente uma metodologia apropriada para seu estudo. Cremos mesmo
que a própria noção da musicologia como método
de investigação da mediunidade musical ainda aguarda
sua época de aplicação sistemática. Isso
deve ser feito por aqueles que estão sinceramente comprometidos
com a verdade sobre esses fatos e entendem que isso pode ser feito
para se produzir resultados científicos.
E o que não dizer dos que, sem nenhum conhecimento
em música, se apresentam como especialistas em fenômenos
psi (2), se arriscam a dizer que a obra é um pastiche? Será
mesmo que, no oceano musical produzido por Rosemary Brown não
se podem achar verdadeiras pérolas que elucidaram em definitivo
seu enigma? Semelhante análise é lenta e deve ser feita
com toda a minúcia possível para produzir resultados
tangíveis como os da ref. (1). Diante dessas dificuldades,
é muito mais simples e rápido desqualificar o fenômeno.
Para mais contribuições de E. Bomfim em mediunidade
musical ver:
Referência
(1) Bomfim, E. (2017). "O enigma da música
mediúnica: investigando uma forma-sonata atribuída ao
Espírito de Schubert pela médium Rosemary Brown".
II Congresso da Associação Brasileira de Teoria e Análise
Musical. Florianópolis, UDESC. Esse artigo pode ser acessado
em PDF na referência:
https://ufrj.academia.edu/EricoBomfim
(2) Um caso patológico é o de Stephen
Braude identificado por Bomfim (2017) na Ref. Braude (2014). Amigo
dos fenômenos "psi", Braude se coloca como um investigador
reconhecido da fenomenologia mediúnica, embora lamentavelmente
desqualifique a ideia de sobrevivência em várias de suas
obras.