As ciências são tradicionalmente
consideradas como paradigmas de racionalidade, que se faria presente
desde a observação de fatos e dos experimentos até
a anotação de relatos e formulação de
conceitos e teorias. Isso, contudo, não pode ser encarado de
maneira absoluta. Os cientistas são seres humanos que não
apenas se conduzem pelos chamados valores epistêmicos (como
falseabilidade, fertilidade, simplicidade, abrangência e consistência,
por exemplo), mas que também se deixam influenciar por seus
preconceitos, crenças, resistências e idiossincrasias.
A história da ciência é um repositório
de casos que mostram como acontece tal influência na pesquisa,
na descoberta e, em muitos casos, na preferência por uma teoria
em detrimento de outra. E, por isso, existem ideias científicas
que persistem por um tempo e angariam partidários, até
mostrarem sua fragilidade.
Nessa história, encontramos o embate entre duas concepções
científicas distintas que buscavam explicar um mesmo conjunto
de eventos. No início do século XX, ocorrências
de transe, estimuladas pelo mediunismo praticado em muitas religiões,
despertaram grande interesse da comunidade psiquiátrica brasileira.
A psiquiatria e o espiritismo possuíam visões diferentes
sobre os fenômenos mediúnicos e anímicos. Enquanto
o espiritismo mencionava a condição de sermos espíritos
encarnados (que podiam libertar-se parcialmente do organismo físico
e eventualmente comunicar-se com os desencarnados, como ponto de partida
para a compreensão de uma série de fatos), a psiquiatria
via nesses casos indicadores de estados patológicos.
Mediunidade ou delírio?
Segundo os autores do artigo “O
olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe
e possessão” (ver referência no final do artigo),
na primeira metade do século XX, “a comunidade psiquiátrica
pertencente ao eixo Rio de Janeiro/São Paulo (...) enfatizou
o papel das religiões mediúnicas como causa de loucura,
chegando a considerá-la a terceira maior causa de alienação
mental”.
Em 1929, o aluno João Coelho Marques apresentou à Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro sua tese de doutorado em psiquiatria,
intitulada “Espiritismo e ideias delirantes”, segundo
a qual “o combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se
faz à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (ópio,
cocaína etc.), à tuberculose, à lepra, às
verminoses, enfim, a todos os males que contribuem para o aniquilamento
das energias vitais, físicas e psíquicas do nosso povo,
da nossa raça em formação”. E ele não
estava só, já que muitos trabalhos acadêmicos
do período apresentaram essa tendência, como observa
o professor Artur Cesar Isaia, da Universidade Federal de Santa Catarina.
Alguns anos antes, outro aluno defendera na mesma instituição
carioca um ponto de vista diverso. Em 1922, Brasílio Marcondes
Machado apresentou sua tese “Contribuição ao estudo
da psiquiatria (espiritismo e metapsiquismo)”, que propunha
a aceitação da sobrevivência da alma e a possibilidade
de um diálogo entre o espiritismo e a psiquiatria, e que foi
reprovada. Tal rejeição não se baseava em critérios
puramente científicos. Henrique Belfort Roxo, então
catedrático em medicina psiquiátrica da faculdade, pensava
que as questões da alma não deveriam ser objeto de estudo
da psiquiatria, já que as considerava resquícios de
uma metafísica morta e enterrada pelo positivismo. Para ele,
era possível pensar o surgimento de uma modalidade de doença
mental a partir de um delírio desenvolvido “pela frequência
de sessões de espiritismo”, chamada de delírio
espírita episódico, o qual ele associava a uma preconceituosa
visão das crenças e rituais praticados pelos afrodescendentes.
O médico, assim como o aluno João Coelho Marques, defenderia
medidas públicas de combate ao avanço da alienação
mental no país pela erradicação de três
fatores: a sífilis, o alcoolismo e o espiritismo.
Tudo evolui
Contudo, “o espiritismo é
uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos,
bem como de suas relações com o mundo corporal”,
afirma Allan Kardec em O que é o espiritismo. Ela se apoia
em fatos nos quais o elemento espiritual manifesta-se no âmbito
mediúnico, anímico e psicossomático e, como ciência,
atende satisfatoriamente aos valores epistêmicos citados no
início desse artigo: falseabilidade, fertilidade, simplicidade,
abrangência e consistência. Em outras palavras, o espiritismo
possui afirmações testáveis, isto é, refutáveis
pela observação e experiência; ele permite levar
o pesquisador a novas descobertas a partir de seus postulados; oferece
explicações simples para os fatos a que se refere; oferece
explicações para um grande número de questões
levantadas pela pesquisa; e faz afirmações que não
se contradizem entre si.
O fato de ser rejeitado por alguns representantes da chamada “ciência
oficial” das academias não significa que ele seja frágil
ou tenha poucos argumentos. “Ciência oficial” é
apenas um modo de nos referirmos a teorias predominantemente aceitas
num determinado período, visto que, como recorda o professor
Silvio Seno Chibeni, da Unicamp, “felizmente, não existe
na ciência um Conselho Supremo (como o de certas religiões,
partidos ou governos) que decida qual é a ortodoxia. É
inerente à natureza da ciência contemporânea a
distribuição do poder de avaliação em
múltiplas instâncias, entre as quais se encontram as
academias, departamentos universitários, institutos de pesquisa,
agências de fomento e, principalmente, os periódicos
especializados”.
O espiritismo ainda continua sujeito a alguns preconceitos extracientíficos.
Na psiquiatria, atualmente, contudo, os preconceitos encontram-se
mais reduzidos e localizados. O discurso psiquiátrico mudou,
e uma nova compreensão da fenomenologia mediúnica conquistou
espaço nas universidades.
Se antes havia preconceito e rejeição, hoje se tornou
possível estabelecer um diálogo que enriquece ambas
as pesquisas, a psiquiátrica e a espírita, exatamente
porque a ciência não é um corpo rígido
de conhecimentos, mas um conhecimento e uma atividade que evoluem.
Mas houve sempre aqueles que se adiantaram e, de maneira quase visionária,
antecipando os passos futuros. Como foi o caso de Bezerra de Menezes,
para quem a loucura deveria ser compreendida como um fenômeno
mórbido de duplo caráter: material e imaterial, e contar
com um tratamento “moral e terapêutico”: Afirma
Bezerra: “No princípio, enquanto os fluidos maléficos
do obsessor não têm produzido lesão cerebral,
deve-se procurar elevar os sentimentos do obsidiado, incutindo-lhe
na alma a paciência, a resignação e o perdão
para seu perseguidor, e o desejo humilde de obtê-lo, se em outra
existência foi ele o ofensor”. Enquanto tantos psiquiatras
ainda acreditavam na loucura como resultado de origem orgânica
ou de influência do ambiente, encontramos aqui uma explicação
espiritual do problema e a proposta terapêutica condizente,
iluminada por princípios de paciência, amor e perdão,
que é baseada na filosofia e na ciência espíritas.