RESUMO
CONTEXTO:
Experiências espirituais podem ser confundidas
com sintomas psicóticos e dissociativos, constituindo-se
muitas vezes em um desafio para o diagnóstico diferencial.
OBJETIVO:
Identificar critérios que permitam a
elaboração de um diagnóstico diferencial entre
experiências espirituais e transtornos psicóticos e
dissociativos.
MÉTODOS:
Foi feita uma ampla revisão na literatura
sobre o tema, na qual foram examinados 135 artigos identificados
em pesquisa no PubMed.
RESULTADOS:
Foram identificados nove critérios de
maior concordância entre os pesquisadores que poderiam indicar
uma adequada diferenciação entre experiências
espirituais e transtornos psicóticos e dissociativos. São
eles, em relação à experiência vivida:
ausência de sofrimento psicológico, ausência
de prejuízos sociais e ocupacionais, duração
curta da experiência, atitude crítica (ter dúvidas
sobre a realidade objetiva da vivência), compatibilidade com
o grupo cultural ou religioso do paciente, ausência de comorbidades,
controle sobre a experiência, crescimento pessoal ao longo
do tempo e uma atitude de ajuda aos outros. A presença dessas
condições sugere uma experiência espiritual
não patológica, mas, por outro lado, há carência
de estudos bem controlados testando esses critérios.
CONCLUSÕES:
Esses critérios propostos na literatura,
embora alcançando um consenso expressivo entre diferentes
pesquisadores, ainda precisam ser testados empiricamente e direções
metodológicas para as futuras pesquisas sobre esse tema são
sugeridas.
Introdução
Historicamente, desde meados do
século XIX, a Psiquiatria tem desprezado e mesmo considerado
patológicas as manifestações religiosas e espirituais.
Freud(1) considerou a religião
como uma neurose obsessiva. A experiência mística também
foi vista como um episódio psicótico
(2) e como uma psicose borderline (3).
O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders III (DSM-III)
faz 12 referências à religião, todas elas associadas
à psicopatologia (4).
Outros autores, entretanto, apresentaram
diferentes opiniões. Jung (5)
viu na experiência mística a manifestação
de uma experiência psicologicamente saudável. Maslow
(6) considerou as "experiências
culminantes" a expressão máxima da saúde
e do bem-estar psicológico. Hood (7)
e Caird (8) constataram que
indivíduos que relataram ter tido experiências místicas
pontuam mais em escalas de bem-estar psicológico e menos
em escalas de psicopatologia do que os controles.
Alguns autores sugeriram a importância
de se buscarem critérios diferenciadores entre o que seriam
experiências espirituais não patológicas e o
que seriam transtornos mentais de conteúdo religioso. As
contribuições desses autores para essa importante
questão foram coletadas na literatura, e procurou-se apresentar
e discutir alguns critérios comuns que tenham perpassado
pela maioria dessas investigações. Ao final, concluiu-se
que, embora todos esses critérios apresentem certa coerência,
ainda não foi feita até o presente nenhuma investigação
extensiva que testasse esses critérios, e são colocadas
algumas diretrizes metodológicas que alguns autores sugeriram
para essa investigação.
Métodos
A base de dados buscada foi a PubMed
e os descritores investigados foram dissociation, trance, possession
e hallucination. Foram priorizados os artigos que apresentavam pesquisas
extensivas e critérios diferenciadores entre o que poderia
ser considerado uma experiência saudável e o que poderia
ser considerado uma experiência patológica.
Resultados
Vários autores têm
abordado a relação entre as experiências espirituais
e manifestações patológicas da mente. Místicos,
videntes e médiuns têm desafiado a compreensão
dos profissionais de saúde mental e tornado necessária
uma adequada diferenciação entre o que seria uma experiência
espiritual saudável e o que seria um transtorno psicótico
ou dissociativo com conteúdo religioso.
Já no início do século
XX, William James (9), investigando
as experiências de êxtase místico, verificou
que essas experiências, quando saudáveis, tinham duração
breve e traziam efeitos benéficos para quem as vivenciava.
Buckley (10)
examinou relatos autobiográficos de indivíduos que
viveram experiências místicas e de indivíduos
que viveram experiências esquizofrênicas. Ele identificou
aspectos comuns e aspectos diferenciadores em ambas as experiências.
Encontrou os seguintes aspectos comuns nas duas experiências:
elevação do nível de consciência, sentir-se
transportado além do próprio self, perda das fronteiras
entre o self e os objetos, dilatação do sentido do
tempo, sentir-se envolvido em luz e um forte sentido de comunhão
com o divino. É característica do êxtase místico
a preservação da estrutura do pensamento e da fala,
o predomínio das alucinações visuais sobre
as auditivas, um grande aguçamento dos sentidos, estabilidade
das emoções e a duração da experiência
limitada no tempo. São características de um surto
psicótico a quebra da estrutura do pensamento e da fala,
o predomínio das alucinações auditivas sobre
as visuais, o embotamento dos sentidos, o esvaziamento das emoções
entremeadas por rompantes agressivos ou sexuais
e a duração da experiência ser extensiva no
tempo.
Lenz (11)
enfatizou o grau de convicção sobre a experiência
vivida como critério de saúde mental: na vivência
saudável existe a dúvida sobre a realidade objetiva
da experiência e no transtorno mental existe certeza sobre
essa realidade.
Lukoff (12) e posteriormente Greyson
(13) investigaram a Experiência de Quase-morte (EQM),
procurando diferenciá-las de outras experiências psicopatológicas.
Nesta experiência, um indivíduo chega a se ver fora
do corpo, encontra seres espirituais e depois retorna ao seu corpo.
Assim, Lukoff percebeu na EQM nítidos e antecedentes estressores,
um bom funcionamento psicológico prévio, uma atitude
exploratória em relação à experiência
e a ausência de déficits interpessoais. Já Greyson,
confirmando as características saudáveis da EQM, tais
como já tinham sido apresentadas por Lukoff, diferenciou
a EQM do transtorno do estresse pós-traumático, vendo
neste último a presença de lembranças intrusivas,
a diminuição geral do interesse em diversas atividades,
o estranhamento dos outros, a restrição dos afetos
e um senso de futuro abreviado que não se faziam presentes
na EQM.
Oxman et al.(14)
também viram aspectos comuns e diferenciados nos relatos
de místicos e esquizofrênicos. Eles escolheram relatos
disponíveis publicamente, que o texto tivesse sido escrito
logo depois da experiência, que estivesse escrito em inglês
e tivesse uma extensão suficiente. De comum entre ambas as
experiências, viram a abundância das fantasias e, como
fatores diferenciadores, viram que os místicos tratam de
encontros com Deus e de sentimentos religiosos, enquanto esquizofrênicos
tratam de doenças e de fortes sentimentos de maldade.
Sims (15) propõe que uma experiência
espiritual saudável é compatível com uma tradição
religiosa; o indivíduo compreende a
incredulidade dos outros e tem reservas em discutir sua experiência
com outros que acredita que não a compreenderão, é
descrita com convicção e, por fim, o indivíduo
sente necessidade de efetuar alguma mudança no seu comportamento
depois da experiência vivida. Já a experiência
patológica se revela em resultados que são compatíveis
com uma história de transtorno mental e surge sempre associada
a outros transtornos psiquiátricos.
Grof e Grof (16),
com base em suas experiências clínicas, criaram o conceito
de "emergências espirituais". Esses autores apresentaram
essas experiências com um duplo significado, possível
pelos diferentes significados de Spiritual Emergence e Spiritual
Emergency. Spiritual Emergence refere-se à eclosão
de uma experiência espiritual que surge sem acarretar perturbação
das funções psicológicas. Já a Spiritual
Emergency é a ocorrência descontrolada da experiência
espiritual com problemas dos funcionamentos psicológico,
social e ocupacional.
Grof e Grof (16)
fizeram uma ampla e detalhada diferenciação
entre as manifestações de uma experiência espiritual
e um transtorno mental. No primeiro caso, as experiências
são suaves, não geram sensações desagradáveis,
não conflitivas, são graduais, preservam a diferenciação
entre o que é interno e o que é externo, geram uma
atitude de expectativa positiva, favorecem uma renúncia ao
controle, estimulam a aceitação de mudanças,
integram-se à consciência diária, permitem uma
compreensão detalhada, não geram necessidade de discutir
frequentemente e possibilitam uma lenta mudança de compreensão
de si mesmo e do mundo. Já as experiências ligadas
a um transtorno mental são intensas, geram sensações
desagradáveis, como tremores e calafrios, são conflitivas,
são abruptas, não diferenciam o que é interno
do que é externo, geram uma atitude ambivalente, promovem
a necessidade do controle, instigam resistência às
mudanças, trazem perturbações na consciência
diária, sua compreensão é confusa, geram a
necessidade de discutir a experiência e provocam modificações
abruptas na consciência de si e do mundo.
Greenberg e Witztum(17)
investigaram uma população de judeus ortodoxos, procurando
diferenciar o que seria um sistema de crenças e práticas
religiosas rigorosos, mas psicologicamente saudáveis, de
um transtorno obsessivo-compulsivo com fundo religioso. Assim, as
experiências pessoais saudáveis são compatíveis
com as crenças aceitas pelo grupo religioso, seus detalhes
não excedem as crenças aceitas, são moderadas,
geram excitação e as habilidades sociais e os hábitos
de higiene estão preservados. Já nas crenças
obsessivas, as experiências são muito pessoais e divergem
das crenças do grupo, seus detalhes excedem as crenças
aceitas, são intensas, geram terror e as habilidades sociais
e os hábitos de higiene estão comprometidos. Já
os comportamentos saudáveis não excedem as prescrições,
são gerais, não estão presentes condutas de
limpeza e de verificação e não ocorre a desconsideração
de outras práticas.
As condutas compulsivas, diferentemente, excedem as prescrições,
são muito específicas, estão associadas a rotinas
de limpeza e de verificação e trazem desconsiderações
para com outras práticas religiosas propostas pelo grupo
religioso.
Lukoff et al. (18)
propuseram para o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders,
na sua versão de 1994 (19),
uma nova categoria de problemas psicológicos, denominada
por eles "problemas religiosos e espirituais". Problemas
religiosos são experiências perturbadoras, que envolvem
crenças e práticas de uma igreja ou instituição
religiosa, que ocorrem, por exemplo, em um momento de crise de fé
ou na migração para uma nova orientação
religiosa. Problemas espirituais são experiências perturbadoras,
que envolvem o relacionamento do indivíduo com um ser ou
força transcendente, que ocorrem, por exemplo, nas experiências
místicas e nas EQM. Em uma experiência mística
ocorrem uma vivência de união com um ser divino, uma
grande euforia e a perda da noção de tempo e espaço,
que podem ser confundidas com episódios psicóticos
agudos (12). Em uma EQM, uma pessoa
se vê projetada fora do seu corpo, encontra seres espirituais
e alcança uma nova compreensão da vida, experiência
esta que pode ser confundida com um transtorno dissociativo de despersonalização
(20).
Esse foi um importante avanço
na Psiquiatria, pois se colocou a possibilidade de muitas experiências
espirituais e religiosas não serem patológicas, apesar
de se assemelharem a transtornos mentais. A criação
dessa categoria teve como objetivos incrementar especificidade no
diagnóstico dessas experiências, reduzir efeitos danosos
de um diagnóstico equivocado, estimular pesquisas que gerem
tratamentos mais adequados para esses problemas e estimular os centros
de formação psiquiátricos a acrescentarem a
compreensão e o tratamento desses problemas aos seus programas
de treinamento.
Jackson e Fulford (21)
empreenderam um estudo comparando cinco indivíduos que tinham
vivenciado experiências espirituais com cinco indivíduos
que estavam se recobrando de surtos psicóticos, mas que interpretavam
suas experiências em termos religiosos. Eles propuseram que
as experiências espirituais e psicóticas não
podem ser diferenciadas apenas pelos sintomas que são muito
semelhantes em um caso e outro, mas seria mais importante investigar
o sistema de valores e crenças com os quais o indivíduo
avalia e compreende as suas experiências.
Jackson e Fulford (21) conseguiram,
assim, levantar sintomas diferenciadores entre as duas experiências.
Assim, a experiência espiritual geralmente é: voltada
para os outros, é curta, vivida intelectualmente, existe
dúvida sobre ela, preserva o insight sobre a origem interna
da experiência, é controlada, não leva a perder
o contato com a realidade, é emocionalmente neutra ou positiva
(traz satisfação), traz consciência da não
compreensão dos outros, não ocorrem falhas nas ações
intencionais, não leva à deterioração
da vida, seu conteúdo é aceitável pelo grupo
cultural de referência do indivíduo e gera crescimento
pessoal. Já a experiência psicótica geralmente
é voltada para a própria pessoa, é longa, é
vivida corporalmente, existe a certeza sobre ela, falta insight
sobre sua origem interna, leva a pessoa a ser submergida nela, leva
a perder o contato com a realidade, é emocionalmente negativa
(traz sofrimento), não existe consciência da não
compreensão dos outros, gera falhas em ações
intencionais, leva à deterioração da vida,
seu conteúdo é estranho para o grupo cultural de referência
do indivíduo e ocorre um prejuízo geral na vida pessoal.
Koenig (22), procedendo a uma revisão
da literatura sobre critérios diferenciadores entre experiência
espiritual e transtornos mentais, propôs que as primeiras
não comprometem os desempenhos social e ocupacional, preservam
a compreensão do caráter incomum da experiência,
não geram rupturas na relação com um grupo
sociocultural de referência, não estão associadas
a outras patologias mentais e geram crescimento psicológico
com o tempo.
A questão da saúde
mental e da psicopatologia se torna crítica diante dos fenômenos
alucinatórios, que habitualmente são associados à
esquizofrenia ou a outros quadros psicóticos. Segundo Esquirol,
a alucinação é uma percepção
sem objeto (23). A definição
do DSM-IV não se afastou muito desse significado original,
ao definir alucinação como uma percepção
sensorial que apresenta um forte sentido de percepção
real, mas ocorre sem a estimulação externa dos órgãos
de sentido pertinentes (19).
Pesquisas populacionais há
mais de um século vêm indicando que os fenômenos
alucinatórios, mais do que uma categoria de experiências
restritas aos psicóticos esquizofrênicos, ocorrem de
uma forma bastante disseminada na população. No final
do século XIX, Sidgwick (24),
vinculado à Sociedade de Pesquisas Psíquicas, juntamente
com um grande número de colaboradores, entrevistou 7.717
homens e 7.599 mulheres britânicos. Ele constatou que 7,8%
dos homens e 12% das mulheres relataram ter tido pelo menos um episódio
vívido de alucinação. West (25),
conduzindo uma pesquisa similar, por meio da distribuição
de questionários com 1.519 sujeitos, 50 anos depois, na mesma
região anteriormente investigada por Sidgewick, confirmou
a ocorrência de alucinações em 14% dos indivíduos
investigados.
Tien (26)
constatou que 10% dos homens e 15% das mulheres em uma amostra de
18.572 indivíduos, obtida em uma ampla pesquisa de sintomas
psiquiátricos em uma população geral (Epidemiological
Catchment Area Program), apresentavam alucinações
ao longo de toda a vida sem manifestarem outros sintomas patológicos.
Ohayon (27)
sondou 13.057 indivíduos da Grã-Bretanha, da Alemanha
e da Itália por telefone e constatou que 38,7% destes relataram
ter tido alucinações e, entre estes, 5,1% apresentavam
esse sintoma uma ou mais vezes por semana.
Além de as alucinações
acontecerem extensivamente, Johns e Van Os (28),
Serper et al. (29) e Lincoln (30)
propõem que elas acontecem em um continuum no qual em um
extremo estão os indivíduos saudáveis e, no
outro extremo, estão os esquizofrênicos. Baseados em
grandes estudos populacionais, eles propõem que, tal como
a esquizofrenia não é um construto categorial, mas
sim dimensional, ou seja, mais do que existir uma categoria de esquizofrênicos
puros, diferentes dos normais, a esquizofrenia se estende em maior
ou menor grau a toda a população. O diagnóstico
patológico dependerá de uma maior frequência
e intensidade da experiência alucinatória, da coexistência
de outros sintomas e de prejuízos na capacidade de adaptação
em geral.
Strauss (31)
propôs serem indicadores de patologia a convicção
sobre a realidade objetiva da vivência alucinatória,
a ausência de apoio cultural para a experiência, a grande
quantidade de tempo envolvido com a experiência e a implausibilidade
da vivência em relação à realidade socialmente
compartilhada.
Slade (32),
investigando dois pequenos grupos de psicóticos (alucinadores
e não alucinadores) e Richardson e Divvo(33),
examinando dois grupos de alcoólatras (alucinadores e não
alucinadores), utilizando testes psicológicos, verificaram
que as alucinações são geralmente disparadas
por estresse pessoal, em pessoas muito focadas em si mesmas, que
são muito imaginativas e têm um pobre teste de realidade.
Honig et al.(34) compararam grupos
de não pacientes alucinadores, pacientes com transtorno dissociativo
e pacientes esquizofrênicos e concluíram que as alucinações
entre normais são tranquilas, não geram alarme nem
perturbação e existe controle sobre elas e as alucinações
dos esquizofrênicos são precedidas por eventos traumáticas,
geram perturbação e não existe controle sobre
elas. Serper et al. (29) compararam
três grupos de pessoas, sendo 39 esquizofrênicos alucinadores,
49 esquizofrênicos não alucinadores e 363 universitários
normais e assinalaram algumas características dos alucinadores
esquizofrênicos: consideram que suas alucinações
visuais e auditivas são percepções objetivas,
têm vários impedimentos na vida, apresentam outras
disfunções clínicas e têm percepções
distorcidas.
Experiências dissociativas também estiveram associadas
a transtornos mentais. O termo dissociação
foi inicialmente criado por Pierre Janet, em 1880, para significar
"desagregações psicológicas"(35).
Segundo esse autor, a dissociação seria a perda da
unidade do funcionamento da personalidade humana, na qual certas
funções mentais atuariam de forma independente e fora
de um controle consciente. A dissociação pode ocorrer
naturalmente, como, por exemplo, quando uma pessoa se absorve tanto
em assistir a um filme que fica totalmente alheia a tudo o mais
que esteja acontecendo a si mesmo ou ao seu redor.
Na concepção original
de Janet, a dissociação seria um construto categorial,
ou seja, é um tipo ou categoria de experiência que
só ocorreria em indivíduos mentalmente doentes, que
teriam uma deficiência em integrar diferentes conteúdos
psicológicos. Alguns contemporâneos de Janet, como
Frederic Myers, Morton Prince e William James, apresentaram um ponto
de vista diferente, pelo qual a dissociação é
entendida como um construto dimensional, ou seja, é vivenciada
em maior ou menor grau por todas as pessoas indo de um extremo saudável
até o outro extremo patológico (36).
É necessário termos
uma compreensão da extensão em que a dissociação
ocorre na população em geral. Ross et al. (37)
avaliaram uma amostra de 1.055 adultos não diagnosticados,
extraída do total de 650.000 habitantes da cidade de Winnipeg,
Canadá. Eles aplicaram nesta amostra o DES (Dissociative
Experience Scale), um instrumento de autoinforme composto por 28
itens que mede experiências dissociativas, e constataram que
13% desses indivíduos apresentaram uma pontuação
acima de 20, indicando a existência de um nível alto
de vivências dissociativas nessa amostra.
Waller et al. (38)
e Martinez-Taboas (39) propuseram que
a dissociação não patológica envolve
a capacidade de absorção e de envolvimento imaginativo
e constitui uma experiência humana para a qual todos os indivíduos
são propensos em maior ou menor grau. Tellegen e Atkinson
(40) definiram a absorção
como um estado de total atenção, no qual o aparelho
representacional parece estar totalmente dedicado a experienciar
o objeto percebido. Wilson e Barber (41),
Rhue e Lynn (42) e Rauschenberger e
Lynn (43) identificaram alguns indivíduos,
que denominaram de "fantasiadores", como sendo muito propensos
à fantasia, tendo tido na infância um maior envolvimento
com jogos de fantasia do que com brincadeiras com outras crianças
e sua capacidade de fantasiar representou um canal de escape para
sua solidão e sua raiva.
Lewis-Fernandez (44) afirma que a dissociação
não patológica ocorre com o controle pleno por parte
do indivíduo, dentro de um contexto cultural que a organiza,
e é significativa para a própria pessoa e para os
outros. Butler (45) acrescenta que
a dissociação saudável é útil
em todo o processamento mental, facilita ações e atitudes
automáticas, ajuda a escapar mentalmente de situações
desagradáveis e a concentrar-se em atividades absorventes,
não tem sua origem associada a traumas, ocorre em períodos
curtos, é suave e não bloqueia o funcionamento da
mente.
A propensão à fantasia,
entretanto, por mais inocente que possa parecer, pode levar à
dissociação patológica, quando um evento traumático
faz o indivíduo buscar, na fantasia, a forma de escapar da
realidade intoleráve (46).
A dissociação patológica,
surgindo inicialmente como uma forma de lidar com a situação
aversiva, pode se generalizar para as demais situações
de vida, passando a trazer prejuízos na capacidade de adaptação
do indivíduo (45). É
a interação entre a capacidade natural de absorção,
com as experiências traumáticas, que resultará
na dissociação patológica (45).
A dissociação patológica
expressa um definido mau funcionamento psicológico, gera
sofrimento e incapacitação, é involuntária
e é interpretada pelo grupo cultural de referência
do próprio indivíduo como sendo uma doença
que necessita de tratamento (44). Dissociadores
patológicos mesclam as formas não patológicas
com as formas patológicas de dissociação (47).
A dissociação patológica está ainda
associada a experiências traumáticas do passado, é
crônica, grave e debilitadora para os funcionamentos psicológico
e social do indivíduo (45).
Segundo Waller et al. (38)
e Martinez-Taboas (39), a dissociação
patológica se expressa por meio da amnésia, da despersonalização-desrealização,
da confusão de identidade e da alteração de
identidade.
A amnésia dissociativa compreende
basicamente a perda de memória, sobretudo de eventos recentes
e de informações pessoais importantes, que não
pode ser atribuída a um esquecimento habitual, à fadiga
ou a um sintoma de origem orgânica (48).
A despersonalização
refere-se às alterações afetivas e perceptuais
em relação ao self, que levam o indivíduo a
estranhar a si mesmo e ao seu próprio corpo. A desrealização
refere-se às mesmas alterações em relação
ao seu meio ambiente, que fazem o indivíduo se sentir desconfortável
nesse ambiente(48).
O transtorno de identidade dissociativa,
antes chamado de transtorno de identidade múltipla, manifesta-se
pela existência de duas ou mais personalidades dentro de um
mesmo indivíduo, que se alternam dentro dele, com períodos
de amnésia, eclipsando as personalidades que foram afastadas(48).
A alteração de identidade é vista mais evidentemente
no transtorno de transe dissociativo. Cardeña et al.(48)
definem transe como uma alteração temporária
da consciência, da identidade ou do comportamento, com diminuição
da percepção do ambiente e ocorrência de movimentos
que estejam fora do controle da própria pessoa, sem substituição
da própria consciência por outra. Os mesmos autores
definem transe de possessão como sendo a mesma vivência,
com a diferença que a alteração
da consciência é atribuída a uma força
ou entidade espiritual externa que se apossa da consciência
daquele que vivencia a experiência.
Deve-se tomar cuidado para não
considerar patológicas todas as formas de transe e possessão,
pois Bourguignon(49), em uma investigação
antropológica, constatou que, em 488 sociedades no mundo,
90% delas possuíam formas institucionalizadas de transe e,
em 52% destas, esses estados são atribuídos à
possessão por seres espirituais. Isso nos mostra que a extensão
em que essa vivência acontece no mundo nos leva a tomar cuidado
para não reduzi-la a um mero mau funcionamento psicológico
de indivíduos mentalmente doentes.
Lewis(50)
propôs alguns critérios para diferenciar a possessão
saudável da patológica. A possessão não
patológica, denominada por ele como central, é episódica,
ocorre em um tempo delimitado, é organizada e ocorre dentro
de um contexto cultural que lhe confere significado. Já a
possessão patológica, denominada por ele como periférica,
tende a ser crônica, ocorre de forma não controlada,
não é organizada e não compatível com
o contexto cultural no qual o indivíduo esteja integrado.
Beng-Yeong(51)
propõe que estados de transe saudáveis sejam disparados
por ações definidas, sejam curtos e gerem resultados
benéficos para o indivíduo que os vivencia e serão
patológicos se forem disparados por emoções
estressantes, durarem muito e gerarem resultados maléficos
para quem os vivencia.
Cardeña et al.(52),
utilizando os conceitos de Lewis(50),
afirmam que a possessão central (não patológica)
vem de uma predisposição provavelmente biológica,
que foi modelada por fatores socioculturais organizados, que levaram
a rituais controlados de possessão. É neste sentido
que poderemos compreender os transes de possessão da mediunidade,
que acontecem nas religiões mediúnicas, como no Espiritismo,
na Umbanda e no Candomblé. Já a possessão periférica
(patológica) também decorreria de uma predisposição
biológica, mas que foi impactada por traumas físicos
ou sexuais, gerando alterações de identidade difíceis
de controlar e organizar. Os indivíduos passam a apresentar
sofrimento psicológico e prejuízos significativos
nos seus funcionamentos social e ocupacional.
Discussão
Será apresentado um resumo
com os principais sintomas diferenciadores entre uma experiência
espiritual e um transtorno mental propostos por esses autores. A
ordem de colocação desses critérios deve-se
a uma concordância decrescente dos autores em relação
a eles, tal como apresentados neste estudo. Esses critérios
não devem ser considerados isoladamente, mas sim em um conjunto.
Faltam, entretanto, mais estudos que testem prospectivamente os
critérios diferenciadores do que seria uma experiência
espiritual e do que seria um transtorno dissociativo ou espiritual.
I - Ausência de sofrimento
psicológico (10-13,14,16,17,21,32-34,44,45,52)
O sofrimento está relacionado
à doença. Deve-se lembrar, entretanto, que os estágios
iniciais de uma experiência religiosa ou espiritual podem
vir acompanhados de grande sofrimento pessoal que poderão
ser superados à medida que o indivíduo avançar
na compreensão e no controle da sua experiência. Greyson13,
estudando as EQM, afirma que os indivíduos, após essa
experiência, sentem raiva e depressão, experimentam
abalos em suas crenças religiosas, passam a duvidar de sua
sanidade mental, sentem-se incompreendidos pelos familiares e profissionais
de saúde e que 75% rompem casamentos, e suas carreiras profissionais
podem ficar gravemente prejudicadas. Comentando quatro casos em
seu artigo, ele afirma que o atendimento psicoterapêutico
e psicofarmacológico adequado trouxe uma melhor compreensão
da experiência vivida por eles, levando esses pacientes a
retomarem e muitas vezes reestruturarem sua vida de forma mais significativa.
II - Ausência de prejuízos
sociais e ocupacionais (12,16,17,21,22,28-30,44,45,52)
A saúde psicológica
implica um ego estruturado gerenciando adequadamente as relações
sociais, familiares, afetivas e atividades ocupacionais. Lukoff
et al. (54), entretanto, comentam como
indivíduos que tiveram uma experiência mística
podem se sentir temporariamente desajustados em relação
à sua vida cotidiana, enquanto não conseguirem compreendê-la
e retomá-la.
III - A experiência tem duração
curta e ocorre episodicamente (9,10,21,28-31,45,50,51)
A experiência espiritual não
patológica é um acréscimo às possibilidades
vivenciais do indivíduo, não se interpondo às
demais experiências cotidianas da consciência. Assim,
espera-se que a pessoa saudável passe por uma vivência
incomum e logo retome seu estado habitual de consciência e
suas atividades cotidianas. Existem casos, entretanto, de médiuns
treinados que sustentam experiências espirituais por mais
tempo sem comprometimento de sua saúde mental(54).
IV - Existe uma atitude crítica
sobre a realidade objetiva da experiência (11,15,16,21,22,29,31-33)
A consciência saudável,
surpreendida pela experiência espiritual ou religiosa, precisará
refletir sobre o sentido dessa experiência para si mesmo e
para sua vida. Enquanto o indivíduo não desenvolver
uma nova compreensão sobre a experiência que esteja
vivendo, ele precisará colocar sob suspeita essa nova experiência,
até que ela possa ser compreendida. Enquanto isso, ele poderá
não conseguir avaliar adequadamente o que lhe sucedeu, como
ocorre, por exemplo, nas experiências místicas, como
mostraram Lukoff et al.(54).
V - Existe compatibilidade da experiência
com algum grupo cultural ou religioso (15,17,21,22,31,44,50,52)
A compatibilidade da experiência
com as crenças e os comportamentos próprios de um
grupo cultural de referência sugere o ajustamento social daquele
que vive a experiência com as práticas de um grupo,
conferindo legitimidade a essa vivência. Entretanto, a EQM13
e a mediunidade(54) podem surpreender
indivíduos, seus familiares, bem como os grupos religiosos
em que eles estejam inseridos, sem que alguém tenha qualquer
compreensão sobre o que tenha ocorrido.
VI - Ausência de comorbidades (15,22,28-30)
Sims15 apontou que a psicopatologia
relacionada a uma experiência espiritual pode ser observada
tanto no comportamento do indivíduo quanto na sua experiência
subjetiva, manifesta-se em todas as suas áreas de vida e
compõe um histórico de vida compatível com
o histórico de um transtorno mental, em nada lembrando uma
experiência espiritual. Quanto mais evidenciada estiver a
patologia, mais probabilidades teremos de estar diante de um transtorno
mental.
VII - A experiência é
controlada (21,34,44,50,51)
Cabe a um ego vigilante controlar
suas vivências habituais e garantir um bom desempenho pessoal
e social. Caberá a ele, da mesma forma, controlar as experiências
espirituais e religiosas, de modo a não prejudicar suas vivências
habituais. Formas orientais de meditação, por exemplo,
tendem a atrair indivíduos com transtorno de personalidade
borderline e narcisista, que têm uma frágil integração
psicológica, podendo gerar nesses indivíduos falsas
experiências de iluminação, repletas de visões
aterradoras (54).
VIII - A experiência gera
crescimento pessoal (15,16,21,22,51)
A experiência espiritual gera
significados enriquecedores para a vida pessoal, social e profissional
de um indivíduo. Já a experiência patológica,
mal estruturada e mal estruturada desde o princípio ampliará
o desequilíbrio do indivíduo ao longo do tempo, resultando
em deterioração geral da sua qualidade de vida15.
IX - A experiência é
voltada para os outros (21,32,33)
A experiência voltada para
os outros guarda um sentido e um objetivo social, próprios
de alguém socialmente ajustado. Já a experiência
egocentrada tende a ser isolacionista e pode, muito facilmente,
levar o indivíduo a enredar-se nos meandros de um pensamento
delirante sem que ele próprio possa se dar conta da extensão
do seu desvio da normalidade.
Conclusão
Embora os critérios diferenciadores
aqui apresentados sejam sugestivos para diferenciar uma experiência
espiritual de uma condição de transtorno mental, são
necessários estudos controlados que testem esses critérios
sugeridos.
Esses futuros estudos deverão
tomar alguns cuidados para que possam ter maior validade.
Tart(55) já
tinha apontado a inadequação da abordagem científica
tradicional para abordar os "Estados Alterados de Consciência",
entendidos como alterações qualitativas no padrão
global de funcionamento mental que o indivíduo sente serem
radicalmente diferentes do seu modo habitual de funcionamento, recomendando
o uso extensivo de observações empíricas que
possam ser replicadas por outros investigadores.
Heber et al.(56)
e Ross et al.(37) propuseram
que os estudos sejam feitos com populações não
clínicas, para que seus resultados possam ser mais generalizáveis
para a população não diagnosticada.
Reinsel(57)
sugeriu que fossem utilizadas amostras maiores e estas fossem
recolhidas de ambientes onde as experiências estudadas ocorram
com maior frequência.
Almeida e Neto(58)
recomendam, entre outras coisas, utilizarem-se diversos critérios
de normalidade e patologia, avaliar a experiência de modo
multidimensional e priorizar estudos longitudinais que permitam
esclarecer as complexas relações causais entre as
variáveis associadas às experiências espirituais
e aos transtornos mentais.
Levin e Steele
(59) também insistem em estudos longitudinais, propõem
o uso de conceitos operacionais relativos às experiências
e recomendam buscar respostas para as seguintes perguntas: o que,
quem, onde, quando, como e por quê.