Há uma questão em
O Livro dos Espíritos, obra fundamental da
filosofia espírita, em que Allan Kardec faz a seguinte indagação
às entidades espirituais que entrevista:
- Por que os maus ainda dominam o mundo?
E os espíritos respondem assim:
- Porque eles são audaciosos. Os bons, embora mais numerosos,
são tímidos. O dia em que estes quiserem e se organizarem,
dominarão.
Particularmente, não tenho dúvida de que vivemos numa
sociedade predominantemente constituída de gente boa, honesta
e, acima de tudo, bem-intencionada. Tão bem-intencionada, que
cada vez mais mostra sua capacidade de se indignar diante do mal. O
que ainda ontem era tolerado ou até permitido por normas que
existiam justamente para proteger os interesses dos poderosos hoje causa
revolta e indignação na maioria.
Mas, segundo a sabedoria popular, de boas intenções o
inferno está cheio. Vivemos, hoje, um tempo de muitas belíssimas
intenções que, via de regra, conseguem, mesmo, se materializar
em diplomas legais modelares. Há não muito tempo, imaginamos
poder resolver todos os problemas da nação com uma nova
Constituição. Os mais modernos direitos humanos e sociais
foram arrolados numa Carta que é, convenhamos, uma primorosa
declaração de boas intenções. A partir dela,
se multiplicaram os diplomas legais protegendo os consumidores, a criança
e o adolescente, os idosos, os deficientes, as minorias raciais etc.
Formulamos também meticulosa lei de responsabilidade fiscal,
buscando impor limites a administradores perdulários. Aprimoramos
a lei eleitoral, visando a aperfeiçoar as eleições
a cargos públicos.
Mas também há um ditado, normalmente expresso em castelhano,
que diz: "Hecha la ley, hecha la trampa", ou seja, uma vez
feita a lei, logo se buscam mecanismos para transgredi-la.
Aí é que entra o conceito formulado pelos interlocutores
espirituais de Allan Kardec: os maus são audaciosos; os bons
são tímidos. Dificilmente vão além das intenções.
Para uma sociedade funcionar é preciso bem mais que intenção.
É necessária, em primeiro lugar, uma ética que
nasça da alma e que ali seja cultivada e permanentemente impulsionada
por uma educação voltada aos valores supremos do amor
e da justiça, da ordem e da paz
E mais do que isso. É necessária a mobilização
geral dos que cultivam verdadeira e intimamente esses valores. Uma mobilização
solidária contra a injustiça e a corrupção,
em favor de uma sociedade intrinsecamente ordeira e justa.
O grande problema é que isso exige renúncia pessoal. Enquanto
a ética e a moralidade pública forem apenas bandeira política,
meios para a conquista de espaços, sem que antes se as cultivem
na intimidade do ser, esse objetivo não se concretiza.
É preciso, enfim, nos darmos conta de que, em cada ato de nossa
vida, privada ou pública, temos o dever de sermos justos, independentemente
da idéia de que isso vá ou não nos propiciar alguma
vantagem. Só um sentimento assim, vindo da alma e sem nada pedir
em troca, nos capacita à ação construtiva, arrancando-nos
do marasmo das boas intenções.
*Milton Medran - Porto Alegre - Advogado e jornalista
(Artigo publicado na edição do jornal ZERO HORA de 18-07-2008,
Porto Alegre/RS)
NOTA DO AUTOR
Amigos:
Tenho me sentido gratificado pela acolhida de artigos meus na grande
imprensa. Ultimamente, o jornal Zero Hora, o mais importante do Rio
Grande do Sul, assim como o Diário Gaúcho (o jornal popular
do mesmo grupo) têm publicado quase que semanalmente uma colaboração
minha.
Mas, fico particularmente feliz quando o artigo é acolhido, mesmo
se ocupando explicitamente de um tema espírita (o que, até
pouco tempo, era habitualmente recusado, nos espaços de opinião
dos grandes jornais, sendo apenas publicados, quando o eram, nos espaços
destinados "às religiões"). É o caso
deste meu modesto trabalho que está em ZH de hoje. Ele foi originariamente
publicado pela revista Harmonia, editado por nosso
companheiro Marcelo Henrique, de Florianópolis. Ao receber a
revista, sequer me recordava de havê-lo escrito. Achei que a temática
é apropriadíssima para os dias de hoje, quando a Nação
se vê perplexa diante de tantos casos de corrupção,
e que, como espíritas, podemos dar uma valiosa e consistente
contribuição à análise desses temas, a partir
da filosofia kardequiana. Fiz no artigo original alguns retoques e o
enviei ao jornal, ontem. Hoje mesmo ela já foi editado.
Os espaços de opinião dos grandes jornais e revistas,
quero recordar, são excelentes instrumentos de formação
de opinião e nós, espíritas, deveríamos
nos valer mais deles para difundir nossas idéias.Mas, é
sempre bom recordar, para serem publicados não podem ser escritos
em tom confessional ou religioso.
Segue o artigo, extraído do site do jornal www.zerohora.com (edição
impressa).