Pois mal os livros desembarcaram
no porto de Barcelona, o bispo da cidade, Manuel Joaquín Tarancón
y Morón, ordenou sua apreensão e incineração
na esplanada da cidade. O decreto episcopal rezava: “A Igreja
Católica é universal, e sendo os livros contrários
à fé católica, o governo não pode consentir
que eles venham a perverter a moral e a religião de outros
países”.
Foi dessa forma que, na mencionada
data, segundo consignaria uma testemunha, “às dez horas
e meia da manhã, sobre a esplanada da cidade de Barcelona,
no lugar onde são executados os criminosos condenados ao último
suplício, e por ordem do bispo desta cidade, foram queimados
trezentos volumes e brochuras sobre o espiritismo”. O relato
registrou a presença das seguintes pessoas: “Um padre
revestido das roupas sacerdotais, trazendo a cruz numa mão
e a tocha na outra mão; um notário encarregado de redigir
a ata do auto-de-fé; o escrevente do notário; um empregado
superior da administração da alfândega; três
moços (serventes) da alfândega, encarregados de manter
o fogo; um agente da alfândega representando o proprietário
das obras condenadas pelo bispo”. Acrescentou a testemunha:
“Uma multidão inumerável encobria os passeios
e cobria a imensa esplanada onde se elevava a fogueira”. O relato
concluiu assim: “Quando o fogo consumiu os trezentos volumes
ou brochuras espíritas, o padre e seus ajudantes se retiraram,
cobertos pelas vaias e as maldições dos numerosos assistentes
que gritavam: Abaixo a Inquisição! Numerosas pessoas,
em seguida, se aproximaram da fogueira e recolheram suas cinzas”.
O testemunho, estampado na “Revista
Espírita”, então editada por Allan Kardec, mereceu
vigoroso comentário do editor, estranhando que, em pleno Século
19, ainda se censurassem livros na Espanha e que essa tarefa fosse
atribuída a autoridades eclesiásticas. Allan Kardec
chamou isso de um “resto da Idade Média” e juntou
a seu comentário a comunicação de um Espírito,
na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que assim se
manifestara: “Hoje a retaguarda da inquisição
fez seu último auto-de-fé”. Mesmo condenando-o,
previa Kardec que o acontecimento seria proveitoso ao espiritismo,
pois “a perseguição sempre foi aproveitável
à ideia que se quis proscrever”, já que “por
aí se lhe exalta a importância, se lhe desperta a atenção,
fazendo-o conhecer por aqueles que o ignoram”. De fato, nas
décadas seguintes, o espiritismo teria na Espanha um extraordinário
incremento, sendo um dos países onde mais se cultivaram suas
ideias, até a eclosão de novos eventos tirânicos,
como a 1ª e 2ª Guerras Mundiais e, especialmente, a ditadura
franquista do Século 20, quando, novamente em colaboração
com a Igreja Católica, o espiritismo foi reprimido e sua prática
punida pelo Estado.
Claro que já não se
queimam livros e, tampouco, autoridades religiosas de hoje, seja na
Europa ou na América, se arrogariam o direito de lhes impor
a censura civil. Mas, decorridos 150 anos, perdura a dicotomia crença
x liberdade de pensamento. Essa aparente inconciliabilidade só
será dissipada quando se entender que não existe aquilo
que o bispo de Barcelona classificou como uma fé “universal”.
O mais rico patrimônio do espírito humano é sua
capacidade de raciocinar e sua liberdade de agir de acordo com o pensamento,
o que leva, necessariamente, ao pluralismo de ideias e crenças.
Razão e liberdade. Estão
aí os dois grandes atributos do espírito. Daí
a lapidar afirmativa de Allan Kardec: “Fé inabalável
só é aquela que pode encarar a razão, face a
face, em qualquer época da Humanidade”.