Não direi que o livro Kardec:
a biografia é uma grata surpresa, porque quem escreveu
a melhor biografia de Chico Xavier, até hoje, prometia escrever
também a melhor do mestre de Chico e de milhões de
espíritas brasileiros: Allan Kardec.
Por que considero ambas excelentes biografias? Porque são
biografias mesmo e não hagiografias. (Para quem não
sabe, hagiografia é história de santo, escrita dentro
dos cânones da Igreja Católica). Marcel Souto Maior
conta a história de um ser humano. De um grande ser humano,
mas um ser humano. Um homem de bem, que é o que O Evangelho
segundo o Espiritismo propõe como padrão ético.
E conta muito bem contado.
Seu estilo é leve, sem cair na banalidade.
É espirituoso e às vezes oportunamente irreverente,
justo para não assumir um tom laudatório demais, o
que acabaria com a sua credibilidade de biógrafo e jornalista
investigativo. É um texto saboroso, ágil e que nos
dá vontade de ler sem parar.
Souto Maior soube tratar de um assunto
delicado, sem ferir nenhum partido; de um assunto sério,
sem cair numa doutrinação massacrante e antipática.
Acima de tudo, porém, é
fiel aos fatos. E sendo fiel aos fatos, a grandeza do personagem
se destaca naturalmente, sem a mínima necessidade de usar
uma batelada de elogios melosos.
Aliás, o que se sobressai
na biografia escrita por Souto Maior é o Kardec da Revista
Espírita. Quem está familiarizado com os 12 volumes
da Revista, conhece melhor a personalidade de Kardec, seus embates,
seu contexto, seus diálogos e discussões com adversários
e aliados, com admiradores e detratores. O autor soube compor não
só a partir da Revista, mas de outros documentos, um mosaico
bem montado de Kardec, seu trabalho e sua época, que nos
permite nos sentirmos lá, na França do século
XIX.
Talvez para alguns, que prefeririam uma hagiografia, o fato de Kardec
na biografia se irritar, se cansar, se alegrar e usar de uma fina
ironia (e usava mesmo com todo o requinte do
esprit francês) pode parecer algo humano demais.
Mas grandes homens também se irritam e se cansam. Com essa
constatação óbvia, em absolutamente nada sai
arranhada a personalidade de Kardec e o que ele propôs como
Espiritismo.
É claro que não se trata de uma obra filosófica
e por isso não discute a fundo alguns pontos que poderiam
ser polêmicos e assim não é um livro que sai
dos cânones do Espiritismo brasileiro atual. Mas a postura
crítica, racional e vigilante que Kardec tinha em relação
à mediunidade é muito bem retratada e, mesmo sem querer,
serve de alerta para esse movimento, que perde muitas vezes qualquer
critério de análise do que supostamente vem do Além.
Quando me refiro aos cânones
do Espiritismo brasileiro atual, estou falando de coisas que já
estão assentadas entre nós e não me parecem
que sejam tão fiéis a Kardec. Por exemplo, o termo
“codificador”, que eu mesma usava, criada que fui nesse
movimento, mas que tenho criticado ultimamente, pois ele não
aparece em nenhuma obra da Kardec. Aparentemente, trata-se de algo
criado aqui no Brasil e que ressalta o caráter do mestre
como mero organizador de uma revelação pronta ou mero
secretário dos Espíritos. Tenho pontuado que, apesar
de sua modéstia, o próprio Kardec reconhecia em si
mesmo um papel mais ativo e criativo nessa relação
com os Espíritos. Diz ele em Obras Póstumas:
“Conduzi-me, pois, com os
Espíritos, como houvera feito com os homens. Para mim,
eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não
reveladores predestinados.”
E na Gênese:
“O homem concorre para a
revelação com o seu raciocínio e o seu critério;
desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho
das deduções que ele pode tirar da observação
dos fatos. Ora, as manifestações (…) são
fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse
trabalho por Espíritos de todas as categorias, que, de
tal modo, são mais colaboradores seus do que reveladores,
no sentido usual do termo.”
Ou seja, como estudei em minha tese de doutorado na USP, que virou
depois o livro Pedagogia Espírita, um projeto brasileiro
e suas raízes, Kardec criou um novo paradigma para conhecermos
o mundo, que inclui uma dimensão espiritual. E esse método
de estudar os fenômenos que evidenciam a imortalidade de alma
é algo criado por ele e não pelos Espíritos.
O livro de Souto Maior não desmente isso, aliás chega
perto de demonstrar através de sua narrativa essa proposição
que fiz. Mas não é seu objetivo, e nem poderia ser,
discutir altas questões epistemológicas.
Um único reparo histórico que tenho a fazer no livro,
um descuido talvez: Victor Hugo, quando se interessou pelas mesas
girantes e manteve diálogos com os Espíritos, inclusive
o de sua filha morta num afogamento, não estava em Paris,
como afirma Marcel. O grande escritor francês estava exilado
na ilha de Jersey, por conta de sua oposição ao governo
de Napoleão III, que ele chamava de Napoléon,
le petit (Napoleão, o pequeno).
Gostei particularmente dos dois últimos capítulos
do livro, que estão muito bem articulados. O penúltimo
trata do processo dos espíritas (aliás, num erro de
digitação ou num engano de tradução
aparece como “processo dos espíritos”), em que
o juiz Millet destrata Amélie, já idosa, e lança
de uma ironia agressiva e injusta contra a personalidade de Kardec.
E Souto Maior nada responde. Mas insere no último capítulo
a resposta final: um texto do mestre, que considero um dos mais
bonitos, porque revela algo de sua intimidade e que só apareceu
em Obras Póstumas, em que ele descreve a si mesmo,
fazendo um balanço de sua vida de homem de bem. Essa é
a melhor resposta para o Juiz furioso e para todos aqueles que ainda
denigrem Kardec. Um texto em que o mestre se analisa com toda a
simplicidade como um pessoa interessada em fazer o bem e promover
a felicidade alheia. E foi isso o que fez com o Espiritismo.
Fonte:
http://doraincontri.com/2013/11/11/kardec-a-biografia-um-livro-bom-de-se-ler/
