Thamiris Magalhães entrevista Bernardo
Lewgoy
IHU On-Line
Ele olha para o avanço científico,
mas prega a moral cristã, que acredita nos benefícios
da tecnologia, porém se emociona com a mensagem psicografada
da mãe falecida. Por isso, apesar de sua recente internacionalização,
ele é tão bem ambientado em terras brasileiras, acredita
Bernardo Lewgoy.
“Os cientistas sociais são
péssimos profetas, mas não creio em mudanças
espetaculares das tendências dos últimos censos: acredito,
sim, em mais liberdade, mais diversidade religiosa, todas concentradas
em agregados urbanos cada vez maiores, mais problemáticos
e mais contraditórios, com escolhas religiosas relacionadas
a demandas crescentes por inclusão e ascensão social”,
conjetura Bernardo Lewgoy, em entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line. Para ele, os dados do censo a respeito
de religião são uma “caixa-preta” sujeita
a interpretações variadas e não raro divergentes.
Ainda segundo Lewgoy,
os dados revelam um aprofundamento das tendências já
observadas no censo anterior: encolhimento dos universos católico
e afro, crescimento do mundo evangélico e dos sem religião
e, finalmente, um amplo crescimento do contingente de espíritas
autodeclarados. E acrescenta: “Acredito que o espiritismo
é invocado como recurso terapêutico em situações
de crise pessoal, como doenças, separações,
perdas, desemprego, etc. e que há, por um lado, uma grande
circulação de pessoas não espíritas
em centros espíritas e, por outro, uma grande circulação
de crenças espíritas em espaços não
espíritas, por outro”.
Bernardo Lewgoy possui
graduação em Filosofia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado em Antropologia Social
pela mesma universidade e doutorado em Ciência Social pela
Universidade de São Paulo – USP. É professor
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É
vice-presidente da Câmara de Pesquisa da UFRGS, membro do
Conselho Deliberativo do Instituto Latino Americano de Estudos
Avançados dessa instituição e membro do Núcleo
de Estudos da Religião. É especialista em espiritismo
e autor, entre outros, de O Grande Mediador. Chico Xavier
e a cultura brasileira (Bauru: EDUSC - PRONEX/CNPQ/Movimentos
Religiosos no Mundo Contemporâneo, 2004).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que os dados
do censo revelam para a sociedade brasileira em relação
à religião na contemporaneidade?
Bernardo Lewgoy – Os dados do censo a respeito
de religião são uma “caixa-preta” sujeita
a interpretações variadas e não raro divergentes.
Analistas com pendor mais quantitativo tendem a ver sólidos
agregados homogêneos, enquanto antropólogos de histórica
inclinação hermenêutica desconfiam de um olhar
apenas de superfície, que não captaria as dinâmicas
e estratégias de mobilidade e afiliação religiosa
concreta dos atores sociais. Os censos devem ser considerados como
um retrato estatístico simultaneamente estático e
dinâmico de um momento da sociedade brasileira, o qual deve
ser interpretado à luz de um campo social complexo e multifatorial
e, de outra parte, como vetores que anunciam tendências históricas,
devendo ser interpretados comparativos com censos anteriores.
Os dados revelam um aprofundamento das tendências já
observadas no censo anterior: encolhimento dos universos católico
e afro, crescimento do mundo evangélico e dos sem religião
e, finalmente, um amplo crescimento do contingente de espíritas
autodeclarados.
Mercado religioso
O Brasil é um país mais diverso, mais
identitário, menos controlado por uma posição
hegemônica, salientando-se uma situação de mercado
religioso, onde a escolha individual tem um papel pronunciado, mas,
especialmente nas periferias das grandes cidades, há um crescimento
de opções evangélicas, que devem ser lidas
à luz de suas promessas e êxitos em termos de transformação
de estruturas sociais. Ao mesmo tempo, há um inédito
espaço de liberdade e manifestação para as
diferentes opções individuais em termos de sexualidade,
direitos reprodutivos, aumento das intervenções de
grupos a sociedade civil no sentido da defesa da cidadania, criação
de novos espaços para a discussão e reivindicação
da laicidade, etc. Num Brasil mais rico, mais escolarizado, mais
diverso, as religiões acabam tornando-se uma caixa de ressonância
para a expressão dessas diferentes expressões identitárias.
IHU On-Line – Os dados do censo indicam um crescimento dos
espíritas: de 1,3% para 2%. São agora cerca de 3,8
milhões de adeptos declarantes. O que isso representa e significa
para o Brasil?
Bernardo Lewgoy – Durante muito tempo, por
razões históricas, a filiação majoritária
ao catolicismo indicava não apenas sua predominância
numérica, mas também um grande guarda-chuva institucional
que diluía e encobria práticas e adesões religiosas
diversas. Hoje, vivemos uma situação diversa, em parte
descrita na primeira resposta.
Esse crescimento de aproximadamente 65% no número de espíritas
autodeclarados significa ascensão de prestígio e ações
institucionais de proselitismo da parte dos espíritas, no
qual o papel das produções cinematográficas
em torno da vida e obra de Chico Xavier tem um considerável
papel.
O espiritismo no Brasil atual
Se somarmos a isso a campanha para a autodeclaração
como espíritas no censo – e não mais sem religião
ou inerciamente católicos nominais como antes – levada
a cabo pelas federativas, assim como sua articulação
com representantes do IBGE, de modo a acordar as diversas categorias
que poderiam ser oferecidas, que representariam a opção
“espírita” na resposta ao recenseador, temos
uma situação muito interessante. Conjuga-se um ativo
proselitismo com uma afirmação de identidades espíritas
latentes que vão desbancando a sub-representação,
de modo a que o contingente de espíritas autodeclarados vai
ganhando um perfil mais completo, no qual os espíritas com
identidade mais forte assumem-se com tranquilidade diante do censo.
Isso é obviamente um conjunto de hipóteses sobre os
mecanismos causais de crescimento recente dos espíritas e
não esgota o problema do significado do movimento espírita
no Brasil recente.
Presença espírita
Já escrevi em diversas ocasiões sobre
o sentido dessa presença espírita, alocado numa classe
média urbana pós-católica que se moderniza,
combinando a crença espiritualista na reencarnação
com o reconhecimento da importância de avanços científicos.
Surpreende é a resiliência dessa cultura espírita
como alternativa diante do encolhimento do catolicismo e dos cultos
afro e do crescimento dos evangélicos e dos sem religião.
Como já salientei, o espiritismo passa de minoria religiosa
para alternativa religiosa, que oferece explicação
de sucessos, conforto para fracassos e aflições e
cura espiritual de infortúnios, bem como doenças,
dentro de uma doutrina que se pretende simultaneamente racional
e religiosa.
IHU On-Line – Os espíritas, de acordo
com o censo, formam o núcleo que tem os melhores indicadores
de educação, envolvendo o maior número de pessoas
com nível superior completo (31,5%). O que esse dado nos
revela?
Bernardo Lewgoy – Não há grande
novidade em relação a censos anteriores, mantendo-se
a consistência da ênfase de uma religião de letrados,
que valoriza o conhecimento formal e a leitura de livros, constituindo
um nicho de desencantamento do mundo no sentido weberiano clássico,
do afastamento de causas mágicas (no caso, suas concorrentes
católica e afro, mas que não se vê a si mesmo
como “mágico”) e na explicação
das coisas ordinárias, o qual mantém seus paradoxos
por enfatizar uma complexa composição com elementos
da cultura católica brasileira, como no caso de Chico Xavier,
ele mesmo também um santo das letras.
IHU On-Line – O senhor acredita que as crenças
e práticas espíritas têm uma alta “ressonância
social”, transbordando a dinâmica de vinculação
aos centros espíritas? Por quê?
Bernardo Lewgoy – Acredito que o espiritismo
é invocado como recurso terapêutico em situações
de crise pessoal, como doenças, separações,
perdas, desemprego, etc. e que há, por um lado, uma grande
circulação de pessoas não espíritas
em centros espírita e, por outro, uma grande circulação
de crenças espíritas em espaços não
espíritas.
Gilberto Velho já havia chamado atenção, há
vários anos, para esse ecumenismo alternativo da linguagem
dos espíritos na sociedade brasileira, onde o transe e a
presença dos mortos no cotidiano resistem fortemente a uma
ideia linear de modernização e desmagificação
do mundo, sendo este um aspecto cultural próprio do Brasil.
Religião do meio
Em contraste com sociedades para quem transe e possessão
são elementos exóticos, o espiritismo, a macumba,
o candomblé e mesmo o neopentecostalismo afirmam esses componentes
como centrais numa cultura popular religiosa, ocupando espaços
sociais não colonizados pelo registro da cultura científica
ou mesmo das religiões tradicionais, com sua fria despersonalização
da explicação e ritualização do sentido
da experiência humana. O espiritismo é exatamente a
religião do meio, a que olha para o avanço científico,
mas prega a moral cristã, que acredita nos benefícios
da tecnologia, porém se emociona com a mensagem psicografada
da mãe falecida. Por isso, apesar de sua recente internacionalização,
ele é tão bem ambientado em terras brasileiras.
IHU On-Line – Qual o significado de ser
“sem religião”, mas com Deus? A crença
em Deus é diferente da adesão a uma determinada religião?
Bernardo Lewgoy – Sem religião é
um guarda-chuva onde espiritualistas não organizados, ateus
declarados e pessoas com variadas simpatias, mas sem afiliação
explícitas, se identificam. É uma categoria polissêmica
que se define em oposição a uma filiação
identitária mais explícita, padecendo dos males e
virtudes da negatividade. Como categoria, acredito que ela não
capte senão uma tendência à indiferença
perante as religiões tradicionais ou herdadas e uma vontade
individual de liberdade em face de obrigações e compromissos
religiosos. Ela, como categoria, diz muito pouco sobre as crenças
e práticas religiosas (no sentido amplo) dos sem religião,
marcando antes uma não filiação ou não
identidade, característica da experiência urbana e
individualista moderna, com sua grande ênfase no respeito
à escolha individual. Com certeza, muitos sem religião
acreditam em Deus, mas isso não tem propriamente um sentido
socioantropológico senão quando essa crença
tem implicações em termos políticos, educacionais,
conjugais e reprodutivos, além dos propriamente confessionais.
Sem dúvida, o termo “sem” acaba sendo mais importante
do que “religião” ou “Deus” para
este grupo.
IHU On-Line – Qual será, a seu ver,
o futuro das religiões daqui para frente de acordo com os
dados divulgados pelo último censo?
Bernardo Lewgoy – Os cientistas sociais são
péssimos profetas, mas não creio em mudanças
espetaculares das tendências dos últimos censos: acredito,
sim, em mais liberdade, mais diversidade religiosa, todas concentradas
em agregados urbanos cada vez maiores, mais problemáticos
e mais contraditórios, com escolhas religiosas relacionadas
a demandas crescentes por inclusão e ascensão social.