Bernardo Lewgoy
Professor do Departamento de Antropologia UFRGS
Rev. Antropologia v. 44 n.1 São Paulo 2001
Chico Xavier e a cultura brasileira
(1)
RESUMO:
O presente artigo propõe uma interpretação do fenômeno
Chico Xavier na cultura e na sociedade brasileira. A partir do reconhecimento
da importância crucial de seu modelo mítico de espírita
exemplar, o lugar de absoluto destaque ocupado pelo médium mineiro
na história do kardecismo brasileiro será interpretado
à luz de um código cultural articulado em sua biografia,
que busca sintetizar os personagens paradigmáticos do "santo"
e do "caxias". Desdobrado na unidade de sua obra mediúnica
e trajetória pública, o tipo de espiritismo construído
em Chico Xavier evidencia a proposta kardecista dominante ao longo do
século XX, enquanto modelo de cidadania, prática religiosa
e projeto nacional.
Exatamente um ano após
a partida de minha mãe eu fazia parte de um grupo de pessoas
que, com Chico Xavier à frente, participavam de uma peregrinação
a um bairro humilde de Uberaba.
Fazia-se o "culto do Evangelho
no lar" em frente a um casebre previamente escolhido e ao ar livre.
A circunstância de me achar ali
na condição de um forasteiro em visita a uma cidade bela
e acolhedora não me impediu de observar e registrar mentalmente
algo que, desde logo, me pareceu significativo. Ante aquelas seis ou
sete centenas de criaturas humildes, com dezenas de crianças
maltrapilhas ou seminuas, a figura simples e veneranda do médium
de Uberaba, ele próprio a encarnação da humildade
pregando a céu aberto e em amplo contato com a natureza, me parecia
a genuína revivescência dos primeiros cristãos na
Terra, lembrava a figura de São Francisco de Assis junto aos
pobres da Úmbria. (Worm, 1993: 55)
Autor de prodigiosa obra literária,
que ultrapassa os 400 livros psicografados em setenta anos de produção
e contando com milhões de leitores em diversos países,
Francisco Cândido Xavier - conhecido como Chico Xavier - é
a principal referência do espiritismo no Brasil. É minha
intenção interpretar as linhas básicas da trajetória
social e religiosa de Chico Xavier à luz da relação
entre cultura letrada e espiritismo kardecista no Brasil, considerando-se
que a aparição do médium mineiro mudou a face da
crença e das práticas espíritas no século
XX.
O lugar de destaque absoluto de
Chico Xavier no espiritismo brasileiro, o nível de fabulação
em torno de sua vida por parte de seus leitores, admiradores, adversários
ou simplesmente curiosos, a redundância das histórias contadas
numa razoável quantidade de biografias escritas, tudo isto sugere
a operação de um esquema mítico. Ponto de inflexão
na história do movimento espírita, o mito Chico Xavier
opera em mais de um nível, tendo contribuído tanto para
firmar um paradigma de práticas religiosas não anteriormente
estabelecidas, como o "Culto do Evangelho no lar", quanto
para estabelecer um conjunto autônomo de referências para
a escrita espírita no Brasil, a partir dos anos 40. Saliento
que, ao interpretar algumas linhas mestras da construção
mítica em Chico Xavier, não tenho um interesse historiográfico
ou mesmo de biógrafo em "diferenciar a vida da obra".
Ambas pertencem ao mesmo "texto" como camadas indissociáveis
de uma construção narrativa elaborada socialmente. No
entanto, chamo atenção para determinadas repercussões
concretas, sociais e históricas, da circulação
de idéias, narrativas e textos de sua autoria, na medida em que
impliquem novidade e transformação na consciência
e na prática do kardecismo no Brasil.
A vida e a obra de Chico Xavier se conjugam não apenas por se
tratar do maior médium do país, ou porque sua trajetória
religiosa se confunde com os rumos do espiritismo brasileiro ou ainda
porque seus livros psicografados se apresentam como testemunhos religiosos
(2). Isto ocorre porque
o nexo entre uma vida devotada a uma missão e a obra escrita
mediúnica é geralmente lido no registro do extraordinário,
do mítico e do santificado, apesar da oposição
doutrinária de muitos espíritas e do próprio Chico
Xavier ao "culto dos santos". Em qualquer leitura, trata-se
de um personagem cercado de uma aura paradigmática, depositário
e modelo biográfico de uma proposta religiosa de alta ressonância
na sociedade brasileira, além de ter cumprido um papel central
na criação de um espiritismo "à brasileira".
Maior protagonista da história do kardecismo no Brasil moderno,
sua trajetória ilustra os dilemas enfrentados por esta alternativa
religiosa ao longo do século XX, principalmente no que tange
ao sincretismo de sua proposta com a "cultura católica brasileira"
(3) e
com um certo modelo de Estado-Nação.
Chico Xavier é o espírita
modelar porque praticamente tudo em sua vida e obra dão testemunho
do sistema de valores do espiritismo kardecista, além de realizar,
como nenhum outro médium, o ideal de uma "interautoria"
ou parceria autoral psicógrafo versus espírito.
(4) Essa parceria, em verdade, é a afirmação
de uma dependência voluntária dos homens perante a esfera
religiosa, cuja máxima expressão é uma espécie
de renúncia a uma vida ordinária, exemplificada pela biografia
do médium. Trata-se de um personagem cujos percalços biográficos
nunca permitiram que construísse ou "optasse" por uma
história individual: ele viveu a sua vida, cumprimento de uma
missão programada, no eixo cristão do sacrifício/doação
ao outro. Chico Xavier é freqüentemente representado como
o "homem coração", o que representa uma renúncia
à individualidade material ou à fixação
de laços e compromissos numa rede de relações de
amizade ou de parentesco. Nesse sentido proponho que o modelo mítico
atualizado em sua biografia busca realizar uma síntese entre
os paradigmas culturais que Roberto DaMatta (1979) denominou de "renunciante"
e de "caxias": dificilmente uma vida reuniu numa única
pessoa a renúncia e a adequação resignada às
normas de disciplina no mundo secular.
A tentativa de síntese operada entre os paradigmas do "santo"
e o do "caxias" expressará, ainda, a composição
espírita entre duas vertentes separadas na sociedade brasileira
do século XX, cada qual com o seu ethos, a religião e
o Estado, o sagrado e a ordem secular. Nesse sentido, sustento que este
é um dos dilemas centrais que o mito Chico Xavier elabora, como
um problema não apenas do espiritismo mas da própria realização
da cultura brasileira no século da problematização
de uma identidade cultural para o Brasil.
Inspirado na tradição
estruturalista de análise de mitos, destaco o valor paradigmático
da infância e da juventude do médium, cuja temporalidade
é dotada de maior densidade, atualidade e valor que muitos outros
eventos posteriores, na verdade desdobramentos secundários dos
grandes temas e episódios ali relatados. Assim, o período
formativo de Chico Xavier terá um peso decisivo na explicação
de outros períodos, ou seja, a maioria das questões que
posteriormente são formuladas ganha uma presença em sua
narrativa desde tenra idade.
Muitas biografias e artigos foram escritos
sobre Chico Xavier, assim como um incontável número de
entrevistas, a imensa maioria escrita por espíritas. Entre as
várias consultadas, selecionei as obras de Ubiratan Machado (1996),
Suely Schübert (1986), R. A. Ranieri (s. d.), Ramiro Gama (1986)
e Marcel Souto Maior (1994), entendendo-as como variações
convergentes de uma mesma narrativa mítica (5).
Elementos biográficos
Filho de um modesto vendedor de bilhetes
de loteria e de uma dona de casa católica e piedosa, Francisco
Cândido Xavier nasce em 1910 na pequena cidade de Pedro Leopoldo,
em Minas Gerais. A mãe, dona Maria João de Deus, morre
quando o pequeno Chico tem apenas cinco anos de idade. Incapaz de criá-los,
o pai distribui os nove filhos entre a parentela. Nos dois anos seguintes,
Chico será criado pela madrinha e antiga amiga de sua mãe,
Rita de Cássia, que logo se mostra uma pessoa cruel, vestindo-o
de menina e aplicando-lhe surras diariamente, a qualquer pretexto e,
mais tarde, sob a alegação de que o "menino tinha
o diabo no corpo". Não se contentando em açoitá-lo
com uma vara de marmelo, Rita passa a cravar-lhe garfos de cozinha no
ventre, não permitindo que o garoto os retirasse, o que lhe ocasiona
terríveis sofrimentos. Os únicos consolos do garoto consistiam
nos diálogos com o espírito de sua mãe: o menino
viu-a após uma prece, junto à sombra de uma bananeira
no quintal da casa. A mãe recomenda "paciência, resignação
e fé em Jesus" ao garoto.
A madrinha ainda criava outro filho
adotivo, Moacir, que sofria de uma ferida incurável na perna.
Rita decide seguir a simpatia de uma benzedeira, que consistia em fazer
uma criança lamber a ferida durante três sextas-feiras
em jejum, sendo a tarefa atribuída ao pequeno Chico. Revoltado
com a tarefa, Chico conversa novamente com a mãe, que lhe aconselha
a "lamber com paciência". A mão lhe explica que
a simpatia "não é remédio, mas poderia aplacar
a ira da madrinha", esta sim colocando em risco a sua vida. Os
espíritos se encarregariam da cura da perna. Sarado o irmão
de criação, Rita de Cássia melhora o tratamento
dado a Chico.
Seu pai casa-se novamente. A nova madrasta,
dona Cidália Batista (invariavelmente descrita como uma mulher
"generosa", de "grande coração") exige
a reunião dos nove filhos, pondo fim à diáspora
familiar. Dona Cidália ainda terá mais seis filhos com
o pai de Chico, João Cândido Xavier. Por insistência
da madrasta, o garoto é matriculado na escola. Nessa época,
o espírito Maria João de Deus pára de manifestar-se.
Chico começa a trabalhar vendendo os legumes da horta da casa.
Freqüenta poucos anos de escola.
Ali, como na igreja, as faculdades paranormais do pequeno Chico continuam
a causar-lhe problemas. Durante uma aula do 4o ano primário,
Chico afirma ver um homem que lhe dita as composições,
mas ninguém lhe dá crédito e a professora não
se importa. Sua redação ganha menção honrosa
em concurso estadual de composições escolares comemorativas
do centenário da Independência, em 1922. Enfrenta o ceticismo
dos colegas, que lhe acusam de plágio, aliás, acusação
que sofrerá a vida inteira. Desafiado a provar os seus poderes,
Chico submete-se com êxito ao desafio de improvisar uma redação
(com o auxílio do espírito) sobre o grão de areia,
um tema escolhido ao acaso.
Cidália pede que Chico aconselhe-se
com o espírito da mãe sobre como evitar que uma vizinha
continuasse a furtar hortaliças de sua casa e esta lhe diz para
torná-la responsável pelo cuidado da horta. Findam-se
os roubos.
Assustado com a mediunidade de Chico,
seu pai pensa em interná-lo. O padre Scarzelli examina-o e conclui
que seria um erro a internação, tratando-se apenas de
"fantasias de menino". Scarzelli simplesmente aconselha a
família a restringir as leituras do garoto (tidas como responsáveis
pelas fantasias) e a colocá-lo no trabalho. Chico, então,
ingressa como operário numa fábrica de tecidos, onde é
submetido à rigorosa disciplina de trabalho, função
que lhe deixará seqüelas para o resto de sua vida.
Chico pára de estudar e muda
de trabalho, empregando-se como caixeiro de venda, ainda em rigorosos
horários. Apesar de católico devoto e das incontáveis
penitências e contrições prescritas pelo padre confessor,
Chico não pára de ter visões e conversar com espíritos.
Aos dezessete anos, em 1927, Chico perde
a madrasta Cidália, e se depara com a loucura de uma irmã,
que descobre ser causada por um processo de "obsessão espiritual".
Orientado por um amigo, Chico inicia-se no estudo do espiritismo, fundando
o centro espírita Luís Gonzaga num barracão de
madeira de seu irmão. Recebe nova mensagem de sua mãe,
na qual lhe é recomendado o estudo das obras de Allan Kardec
e o cumprimento de seus deveres. Por ordem dos espíritos mentores,
inicia-se na prática da psicografia, que aperfeiçoará
nos quatro anos subseqüentes. Pela sua pena começam a manifestar-se
diversos poetas falecidos, somente identificados a partir de 1931. Apoiado
pela Federação Espírita Brasileira, Chico publica
sua primeira obra, Parnaso de além-túmulo, coletânea
de poesias ditadas por espíritos de poetas brasileiros e portugueses.
A obra causa espécie dentro e fora do movimento espírita.
Começa a sofrer ofensas de críticos e adversários.
O espírito de Maria João de Deus aconselha-o a não
responder aos críticos. Nesse período descobre ser portador
de uma catarata no olho, problema que o acompanhará a vida inteira.
Os espíritos mentores, Emmanuel e Bezerra de Menezes, orientam
Chico para tratar-se com os recursos da medicina humana e não
contar com quaisquer privilégios dos espíritos.
1931 é o ano da maioridade do
médium e do encontro com seu mentor Emmanuel, "à
sombra de uma árvore, na beira de uma represa" (Souto
Maior, 1995: 31). Informando-lhe sobre a sua missão de
psicografar uma série de trinta livros, Emmanuel lhe diz que
são exigidas três condições: "disciplina",
"disciplina" e "disciplina". Severo e exigente seu
mentor lhe instrui a manter-se fiel a Jesus e a Kardec, mesmo em caso
de conflito com a sua orientação. Mais tarde, Chico descobre
que Emmanuel havia sido o senador romano Publio Lêntulus, posteriormente
renascido como escravo e simpatizante do cristianismo. Na encarnação
seguinte seu mentor reencarnaria como o padre jesuíta Manoel
da Nóbrega, ligado à evangelização do Brasil.
Em 1932, a publicação
do Parnaso de além-túmulo causa espécie entre os
literatos brasileiros, cujas opiniões se dividem entre o reconhecimento
e a acusação de pastiche. O impacto é aumentado
quando se sabe que o livro tinha sido escrito por um "modesto caixeirinho"
de armazém do interior de Minas Gerais, que mal completara o
primário. Os direitos autorais de suas obras são concedidos
à Federação Espírita Brasileira. Inicia
a sua relação com Manuel Quintão e com Wantuil
de Freitas, prócere da Federação Espírita
Brasileira (FEB), responsável pela publicação de
sua obra. Chico continua com seu emprego de caixeiro e com suas funções
no centro espírita Luís Gonzaga, atendendo aos necessitados
com receitas, conselhos e psicografando as obras do além.
Paralelamente, inicia uma longa
série de recusas de presentes e distinções, que
perdurará por toda a sua vida, como no caso do milionário
Federico Figner, cuja vultosa soma concedida em testamento ao médium
foi repassada à Federação Espírita Brasileira.
Com a notoriedade, prosseguem os ataques de adversários que tentam
desmoralizá-lo e de inimigos espirituais, que buscam atingi-lo
com fluidos e tentações (6).
Nos anos 30 as obras mais importantes
posteriores ao Parnaso de além-túmulo consistem nos romances
ditados por Emmanuel e pela famosa obra atribuída ao espírito
de Humberto de Campos, Brasil, Coração do Mundo, Pátria
do Evangelho , em que a história do país recebe uma interpretação
mítica e teológica.
Após o aparecimento do espírito
de Humberto de Campos, Chico Xavier, já célebre, não
apenas surpreende o país e o próprio meio espírita,
mas começa a enfrentar problemas com a viúva de Humberto,
resultando no famoso processo em que se pleiteava os direitos autorais
pelas obras psicografadas, caso se confirmasse a autoria do famoso escritor
maranhense. A defesa de Chico foi bancada pela Federação
Espírita Brasileira (que resultou posteriormente no clássico
espírita A psicografia perante os tribunais, do advogado Miguel
Timponi). O juiz decidiu que os direitos autorais referiam-se à
obra reconhecida em vida do autor, não havendo condição
do tribunal se pronunciar sobre a existência ou não da
mediunidade. No entanto, o nome Humberto de Campos é substituído
pelo pseudônimo "irmão X".
Chico passa a trabalhar como funcionário
público no Ministério da Agricultura, na função
de auxiliar de serviço. Não há nenhum registro
de falta ao trabalho em toda a sua carreira de funcionário público.
Maior clássico do espiritismo
brasileiro, o romance Nosso lar, de 1943, é de longe o livro
mais vendido e divulgado da extensa obra mediúnica de Chico Xavier.
Trata-se do primeiro de uma extensa longa série de livros cuja
autoria é atribuída ao mais científico e "sociológico"
dos autores espirituais que lhe ditaram mensagens, o espírito
André Luiz. A celebridade de Chico Xavier não cessa de
crescer. Cada vez mais pessoas acorrem em busca de curas e mensagens
ao médium da pequena Pedro Leopoldo, que se torna um centro informal
de peregrinação.
Morre na miséria o seu antigo
patrão, José Felizardo. Chico empenha-se em arranjar um
enterro digno ao antigo amigo, pleiteando doações de casa
em casa. Segundo Ubiratan Machado, "até mesmo um mendigo
cego doou-lhe toda a féria do dia" (1996:53).
Em 1958 Chico enfrenta um novo escândalo, dessa vez por conta
das denúncias do sobrinho, Amauri Pena, filho da irmã
curada de obsessão. O sobrinho, ele mesmo médium psicógrafo,
anuncia-se pela imprensa como falso médium, um pastichador muito
capaz, acusação que estende ao tio. Chico defende-se em
seu estilo habitual, extremamente suave, negando ter qualquer proximidade
com o sobrinho. Já com antecedentes de alcoolismo e com sérios
remorsos pelos danos causados à reputação do tio,
Amauri é internado num sanatório psiquiátrico em
São Paulo, onde vem a falecer.
Nessa época Chico conhece o jovem
médico e médium Waldo Vieira, com quem psicografará
várias obras em comum, até a ruptura de ambos, alguns
anos depois. Muda-se para Uberaba em 1958, onde reside até hoje.
Continua a psicografar inúmeras obras, passando a abordar os
temas que marcam a década de 1960, como o sexo, as drogas, a
questão da juventude, a tecnologia, as viagens espaciais, o homem
artificial, etc. Uberaba vira centro de peregrinação informal
de caravanas que chegam diariamente com a esperança de um contato
com parentes falecidos através de Chico Xavier. Popularizam-se
os livros de "mensagens": cartas ditadas a familiares por
mortos comuns. Continuam as campanhas de distribuição
de alimentos e roupas para os pobres da cidade. Chico visita a América
do Norte e a Europa para tratamento de saúde e missão
de divulgação do espiritismo.
Na década de 1970, Chico participa
de programas de televisão, que têm uma enorme audiência.
Além dos problemas de pulmões e da catarata, passa a sofrer
de angina. Em 1981 é proposto ao Prêmio Nobel da Paz, que
não ganha. Sua fama se amplia internacionalmente, tendo várias
de suas obras vertidas em diversas línguas, assim como ganha
adaptações para telenovelas. Ao final dos anos 90, Chico
já conta com mais de 400 títulos de livros psicografados,
estando ainda em atividade no momento em que escrevo essas linhas.
Nos anos 90 calcula-se em aproximadamente
50 milhões os livros espíritas circulando no Brasil, dos
quais 15 milhões são atribuídos aos livros de Chico
Xavier e 12 milhões às obras de Kardec (Santos,
1997: 89).
Entre duas religiões: espiritismo e catolicismo em Chico Xavier
O ponto mais importante na consideração
do lugar de Chico Xavier na cultura e na religiosidade do Brasil do
século XX reside na peculiar combinação que este
realiza, através de sua biografia, entre o espiritismo kardecista
com um catolicismo familiar e popular bastante tradicional. É
o resultado desta síntese - posteriormente articulada a uma perspectiva
mito-histórica e corporativa de nacionalidade - que definirá
a face dominante do espiritismo kardecista no Brasil a partir da década
de 1940.
Da morte da mãe até
a morte da madrasta Cidália, dos cinco aos dezessete anos, a
vida de Chico Xavier é marcada por intensos sofrimentos, provas
e descobertas. Nessa etapa formativa as influências decisivas
no menino Chico giram completamente em torno da figura materna ou de
suas substitutas. A morte da mãe inicia a diáspora familiar,
só terminada com o novo casamento do pai com Cidália.
A ênfase na mãe - assim como na prática familiar
do espiritismo - nunca deixará de povoar desde as manifestações
públicas de Chico Xavier até os seus textos psicografados
(7). É justamente esse destaque
atribuído à "mãe" como formadora moral,
influência decisiva no âmbito familiar e intercessora privilegiada
junto ao plano espiritual, que é afirmada nessa trajetória
de juventude. Desde cedo inspirado pela devoção católica
da bondosa mãe, esta continua a orientá-lo após
a morte, como tutora espiritual e elo de ligação com a
continuidade familiar.
Em oposição ao papel da mãe,
não há destaque algum para o pai, João Cândido,
na vida de Chico. Sempre em potencial tensão com o filho, o pai
tem um papel distante, mostrado como um personagem fraco e dependente
da ação alheia, incapaz de manter por si só a coesão
familiar. Mero coadjuvante, ele entrega o pequeno Chico em tenra idade
para a cruel madrinha. Mais tarde, pouco compreensivo com as faculdades
mediúnicas do filho, considera a possibilidade de interná-lo
num sanatório. Na fase adulta de Chico, João Cândido
meramente se conforma com a celebridade do filho, não sem antes
ter insistido para que o médium usasse os seus poderes para o
sustento da casa. Depois da morte de Cidália, não é
João Cândido, mas Chico que assume a criação
de seus meio-irmãos menores. Com o desenrolar da narrativa, o
papel do pai vai sendo obscurecido, não tendo influenciado a
formação moral, religiosa ou outros aspectos da vida de
Chico. Também não são registradas manifestações
mediúnicas do espírito do pai após a sua morte,
em 1960.
À piedade e bondade da mãe
natural opõe-se a extrema crueldade da madrinha, que será
a primeira a acusá-lo de ter o "diabo no corpo", ao
modo de alguns de seus futuros oponentes. Rita de Cássia, que
o cria após o falecimento de Maria João de Deus, não
tem uma relação de parentesco "natural" com
Chico: é uma mulher aparentemente sem uma família definida,
sem portanto uma integração consistente numa estrutura
moral que lhe pudesse atribuir um papel como mãe e esposa. Ou
seja, do ponto de vista da ideologia moral, ela tem um status altamente
ambíguo, como mulher sem laços e frouxamente relacionada
com a família de Chico. "Madrinha", ou seja, definida
através de uma relação de pseudoparentesco, ela
forma uma pseudofamília com os enteados Chico e Moacir, revelando-se
perigosa ao tornar-se "madrasta". A despeito da amizade prévia
com Maria João de Deus, ela permanece como uma pessoa "de
fora", uma estranha, alheia aos imperativos códigos de sangue.
Como madrasta substituta, sua influência é forte, mas negativa.
No entanto, ela representará o primeiro contato de Chico com
a descoberta de sua missão junto ao mundo externo à família,
ligada ao exercício de seus poderes mediúnicos.
Nesse sentido, as histórias de
infância de Chico Xavier carregam esse caráter iniciático
que partilha com xamãs e profetas: a diferença altamente
individualizadora e o "chamado", assim como os intensos sofrimentos
e provas sacrificiais, reveladores de uma santidade, que se revelará
como "missão programada no Plano Espiritual".
Iniciática e probatória,
é na relação com a madrinha que Chico aprende a
suportar sofrimentos e humilhações com resignação,
relacionando-se com o mundo exterior à família como numa
espécie de escola. Na versão de Ramiro Gama, a madrinha
é descrita como "obsidiada", ou seja, Gama enquadra
os malefícios sofridos pelo menino na típica explicação
espírita, abrindo uma lacuna para a operação de
catálises narrativas (8),
mas é preciso salientar que Chico jamais falou mal de Rita, como
de resto jamais revidou qualquer ofensa ou golpe sofrido pelos inimigos
ao longo da vida. A simpatia escolhida — "uma criança
lamber a ferida em jejum durante três sextas-feiras" —
coroa a narrativa de sofrimentos morais e corporais do garoto com uma
hipérbole de humilhação e de "ignorância"
— elementos fundamentais em sua história de santidade.
Os claros ingredientes de injustiça dessa história são
atenuados pelas intervenções do espírito de sua
mãe, que sempre o aconselha a nunca desobedecer às figuras
de autoridade e nem a tomar a justiça em suas próprias
mãos. Ou seja, nos ensinamentos de Maria João de Deus
há o gérmen da concepção de cidadão
que o acompanhará pelo resto da vida: o "caxias" obediente
e cumpridor das regras, num sistema cosmológico e ético
no qual a correção da injustiça sempre conta com
alguma participação do Plano Espiritual. Cedo ele aprende
que, se os postos de autoridade são eventualmente ocupados por
indivíduos indignos, isto não configura um motivo para
revolta ou vingança, nem para desacreditar na validade da Ordem
como um todo. Na versão de Ramiro Gama, por exemplo, ocorrem
os seguintes diálogos do pequeno Chico com o espírito
de sua mãe:
— Estou apanhando muito, mamãe!
— Tenha paciência meu filho.
Você precisa crescer mais forte para o trabalho. E quem não
sofre não aprende a lutar. (Gama, 1986:
38)
Numa tarde muito fria, quando entrou
em colóquio com Dona Maria João de Deus, Chico implorou:
— Mamãe, se a senhora vem
nos ver, por que não me retira daqui?
O espírito consolou-o e explicou:
— Não perca a paciência.
Pedi a Jesus para enviar um anjo bom que tome conte de vocês todos.
(idem: 39)
A intervenção do espírito da mãe, no episódio
da ferida de Moacir, já revela a tensão do espiritismo
com outros sistemas de cura (neste caso a benzeção, sobre
a qual o espírito afirma que "não é remédio")
em benefício da presença mediadora de agentes espirituais
no desenlace do drama, estes sim os protagonistas eficazes. O pedido
a Jesus pelo "anjo bom" é também exemplar: trata-se
da nova madrasta, Cidália, a legítima sucessora da mãe
na tarefa de recompor a família. Não há meio termo
nas relações de Chico com suas figuras maternas: elas
são ou bondosas ou perversas, mas sempre mediadoras, ou seja,
intercessoras junto ao domínio do sagrado. Assim, Maria João
de Deus volta após a morte como guardiã espiritual e intercessora
do filho junto aos "benfeitores espirituais" e "espíritos
de luz". Rita de Cássia é "obsidiada",
ou seja, mediadora das forças do mal. E, finalmente, Cidália
é o "anjo bom que virá para salvá-lo",
todas as três em posição de mediadoras em relação
ao jovem Chico. Esta matrifocalidade na história familiar de
Chico desempenhará um papel estratégico na aproximação
com o catolicismo popular, conciliando o espiritismo com a dinâmica
religiosa de uma importante vertente da sociedade brasileira. O espiritismo
de Chico Xavier absorverá do catolicismo popular o circuito da
intercessão e da graça (típico do culto aos santos)
e a devoção familiar centrada na figura materna.
Estamos ainda num tempo em que
impera um modelo hierárquico e complementar de distribuição
de papéis na família, no qual as disposições
morais e espirituais são ligadas ao lugar estrutural da categoria
"mãe", penhor da honra e da espiritualidade da família,
semelhante a outras culturas de influência mediterrânea
(9).
Neste modelo, o papel mediador é
prioritariamente maternal e feminino e o espiritismo de Chico reelaborará
mitica e teologicamente essa ênfase. Inúmeras são
as referências, nas obras de Chico Xavier, aos "benfeitores
espirituais" que, "a pedido de mães devotas",
"intercedem a favor de um irmão", que conquistam graças,
atualizando um sistema de relações pessoais em que opera
uma lógica personalizada, relacional e mediadora, da dádiva
e da compensação, bem diferente da inexorabilidade presente
em formulações anteriores sobre a categoria carma:
Elias Barbosa ia mais além:
— Se você quiser evitar
o suicídio de seu filho, vá para a cadeia e ajude os presos.
Escreva cartas para eles, dê cobertores aos detentos, vire pai
e mãe deles.
Muitos não entendiam nada. De
acordo com a lógica do guru Chico Xavier, os presos quase sempre
eram acompanhados pelos espíritos das mães mortas. E elas
retribuíam toda a ajuda dada a seus filhos pedindo aos benfeitores
espirituais atenção a quem os auxiliasse. No dia das mães,
a cada ano, Chico reunia um grupo de amigos e visitava os presos. (Souto
Maior, 1995: 151)
Respondendo a uma questão de um entrevistador a respeito do carma,
em 1991, Chico é mais explícito ainda na reelaboração
desta categoria à luz de uma cultura religiosa povoada de mediações:
P - Deve-se aceitar a lei do carma passivamente
ou temos condições de modificá-la, talvez, para
uma condição melhor?
R - Aquilo que ficou estabelecido como
sendo nossa dívida é uma determinação que
devemos pagar. Se comprei e assumi a dívida, devo pagar. É
o que consideramos destinação, é o carma. Mas isso
não impede a lei da criatividade com a qual nós podemos
atuar todos os dias para o bem, anulando o carma, chamado de sofrimento.
Vamos supor que uma criatura está doente e precisa de uma intervenção
cirúrgica. É o caso de perguntarmos: ela deve ou não
se submeter à intervenção cirúrgica, que
tem todas as possibilidades de êxito? Ela deve sim, deve preservar
o seu próprio corpo, é um dever procurar a medicina e
se valer do socorro médico para reabilitação do
seu próprio organismo. Então, aí está uma
resposta a esta questão. A misericórdia de Deus sempre
nos proporciona recursos para pagar ou reformar os nossos títulos
de débito, assim como uma organização bancária
permite que determinadas promissórias sejam pagas com grande
adiantamento, conforme o merecimento do devedor. Assim como temos grande
número de amigos avalistas a nos tutelar nos bancos, temos também
os espíritos extraordinários que são os santos,
os anjos, os nossos amigos espirituais que pedem por nós, que
auxiliam, que nos dão mais oportunidades para que a gente tenha
mais tempo. Por isso que a pessoa deve cuidar bem de seu corpo, porque
ele é a enxada com qual a criatura está semeando e lavrando
o terreno do tempo e das boas ações. De modo que existe
o carma, mas existe também o pensamento livre, porque nós
somos livres por dentro da cabeça. (entrevista
de Chico Xavier ao jornal O Espírita Mineiro, apud Barbosa, 1992:
71)
Seria difícil ser mais claro com respeito
à presença da concepção católica
de intercessão e de graça. É curiosa a intervenção
da figura eminentemente hierárquica do "terceiro",
do avalista, do amigo, do intercessor espiritual a relativizar e mudar
o perfil da dívida, fazendo-a transitar da lógica impessoal,
segmentar e absoluta da dívida cármica para a lógica
personalizada, relacional e mediadora da dádiva. Assim, a admissão
de entidades intercessoras "a pedir por nós" evidencia
o sincretismo de suas posições com a cultura católico-brasileira,
com seus anjos, santos e benfeitores, estranhos a uma concepção
mais linear, impessoal e individualista de carma, presente no espiritismo
de Allan Kardec.
É justamente esta relação
conciliadora com um catolicismo que lhe era freqüentemente hostil
da parte dos padres e intelectuais católicos, mas tido como autenticamente
devoto, familiar e benéfico, quando encarnado em pessoas "simples",
"humildes" e "mães devotas", que constitui
o tema central na fase infantil e formativa das biografias de Chico
Xavier. Em Chico, as pontes do espiritismo brasileiro com o universo
popular católico, estremecidas em décadas de atritos com
as autoridades leigas e eclesiais (10),
começam a ser lentamente recompostas na direção
de uma suave continuidade entre universos religiosos até então
bem distintos. Com o médium de Pedro Leopoldo, o espiritismo
sofre uma reordenação sem precedentes na direção
de enfatizar a devoção doméstica através
do Culto do Evangelho no lar (11),
conquistando um público habituado a uma vivência mais popular
e oral do catolicismo, que cultuava santos locais, que acreditava na
força das rezas e das simpatias, e cujas práticas muitas
vezes eram apanágio das mães de família.
O ciclo formativo de infância
e juventude de Chico Xavier é pontuado por uma série de
provas, ligadas ao papel desempenhado pelas diferentes figuras maternas,
pela relação com a religiosidade católica e pela
descoberta da mediunidade. A redação escolar com que ganhou
o prêmio estadual, assim como os conselhos de obediência
e de humildade dados pelo espírito da mãe prenunciavam
o tipo de espírita modelar que viria a simbolizar: de um lado,
Chico é herdeiro dos valores ligados à família
e ao tradicional ethos católico e, de outro, propõe uma
espécie de religião cívica, na qual a celebração
de uma ordem colocava-se acima de considerações críticas
e individualistas. Para o espiritismo cristão de Chico Xavier,
ser espírita é ser reverente a Deus, ser letrado, piedoso,
obediente e caridoso, assim como um bom cidadão, um trabalhador
disciplinado e um membro amoroso de um núcleo familiar, combinando
um ideal religioso com um ideal cívico.
A morte de Cidália e a obsessão da irmã, que o
leva a descobrir o espiritismo, marcam o fim do ciclo de infância
e juventude do jovem Chico. Ele deixa de ser tutelado pelas mães
(Maria João de Deus só reaparece em 1931, uma única
vez), passando ele mesmo a funcionar como tutor — mais maternal
do que paternal, bem entendido — de suas jovens meias irmãs.
O problema com a irmã obsidiada
Maria Xavier — apenas uma das diversas crises na vida de Chico
— tem um nexo com a crise do sobrinho, Amaury. Coerente com o
sistema de representações sobre o parentesco, que venho
discutindo, Amaury "herda" da mãe a predisposição
a perturbações pessoais e espirituais (ou seja, é
portador de uma mediunidade distorcida), mas não de seu pai,
que veio a público lamentar suas atitudes. Novamente, é
a admirável verve mitologizante de Marcel Souto Maior que capta
a reação espírita diante do caso:
Amauri morreu e deixou como herança
um mistério para os espíritas. Por que ele tinha atacado
o tio? A versão mais aceita no meio é a de que ele assumiu
a autoria dos poemas e levantou suspeitas contra Chico para impressionar
e agradar uma moça católica por quem estava apaixonado.
Outra versão, mais apimentada, coloca dinheiro na roda: ele teria
sido subornado por um padre para desmoralizar o espírita de Pedro
Leopoldo. Amauri nunca mandou explicações do além.
(1995: 125)
Em verdade, os boatos são variantes
da mesma narrativa: falam de um espírita de baixo grau de evolução,
dominado por paixões ligadas à matéria —
como a que redunda no vício do álcool —, sem convicção
nem firmeza de caráter, assediado por um catolicismo hostil,
que busca manipulá-lo: 1) pela sensualidade — uma forma
de apego corrupto à matéria, por meio da paixão
por uma "moça católica", e 2) pelo suborno,
oferecido pelo padre, típico personagem ligado ao poder nas narrativas
espíritas, ardiloso e maligno. O tema de um catolicismo inimigo
do espiritismo ajuda a formar a base de uma identidade contrastiva do
kardecismo, como permanente vítima de incompreensões e
perseguições. Ele afirma-se principalmente em oposição
às autoridades eclesiásticas católicas que, nestas
narrativas, buscam ora minar a sua legitimidade ora corromper os espíritas
através de tentações sensuais e materiais
(12). Ainda que seja onipresente como
possibilidade, o Mal reside aqui na relação promíscua
de Amaury com o mundo material, cujo verdadeiro agente maligno é
representado pela Igreja. Nesta narrativa, cujo núcleo dramático
é a traição do tio pelo sobrinho, há uma
transmissão feminina de qualidades mediúnicas, distorcida
pela exposição ao Mal, primeiro no caso da irmã
obsidiada, por intermédio da qual Chico encontra a doutrina espírita
e, depois, por conta do escândalo envolvendo o sobrinho.
A ligação com o catolicismo encontra um máximo
de ambivalência na relação com a Igreja. Padre Scarzelli,
representante de um catolicismo condescendente e bem-intencionado, mas
descrédulo dos fenômenos espíritas, ajuda a salvar
Chico da psiquiatria, ou seja, foi um aliado em alguns contextos, em
oposição à incompreensão médica.
Mas prescreveu a restrição das leituras, atitude inspirada
por um ânimo completamente oposto ao do espiritismo, embora de
acordo com os preceitos católicos tradicionais
(13). A própria carolice de
Chico na juventude expressa essa relação de diferenciação
e conciliação em relação à Igreja
Católica, que lhe acompanhará a vida inteira, causadora
de animosidades e críticas entre alguns companheiros espíritas.
Assim, a desobsessão da irmã sela a adesão definitiva
de Chico ao espiritismo sem uma ruptura definitiva com o catolicismo.
Do contrário, no relato de Souto Maior sobre o seu último
encontro com o padre Scarzilli, quando o devoto Chico lhe conta suas
práticas espíritas e pede a sua benção,
há um forte sabor de continuidade entre os dois sistemas religiosos:
— Seja feliz, meu filho. Rogarei
à Mãe Santíssima para que te abençoe e proteja.
(1995: 21)
Estamos aqui diante do impasse espírita
perante a "cultura católica brasileira", de tão
profundas raízes no Brasil: um catolicismo eivado de uma fé
cristã cuja presumida "sinceridade de propósitos"
dos fiéis é interpretada como mais profunda do que as
intenções de muitos clérigos e que, por isso, não
podia ser simplesmente afrontada na consolidação do espiritismo.
Por meio da vida e obra de Chico Xavier, o espiritismo abre um leque
de trocas com um catolicismo familiar, em que se destaca o papel moral,
espiritual, educacional e mediador das mães. Amplia-se também
a interface do espiritismo com o ethos católico das camadas populares,
enfatizando a vivência ritual da religião no âmbito
familiar, permeada de crenças na atuação de entidades
invisíveis, pelo apadrinhamento espiritual e pela concessão
de favores e de graças — visão de mundo de ampla
disseminação no Brasil.
Nada mais representativo dessa disposição
sincrética do que a construção da identidade de
seu Emmanuel. A essência sincrônica desse personagem, como
espírito de luz, está ligada à absorção
metonímica de características de vidas passadas: a nobreza
(como o senador romano Publio Lentulus), os valores cristãos
e o martírio (na encarnação seguinte como escravo
romano) e, finalmente, o caráter apostólico e fundador
da nacionalidade do padre jesuíta Manoel da Nóbrega, que
combina herança católica e portuguesa com a brasilidade,
em que a novidade do espiritismo aparece como a conseqüência
de uma "missão" estabelecida desde tempos imemoriais.
Os "jesuítas" são os personagens que simbolizam
essa síntese entre cristianismo, educação, disciplina
e nacionalidade, atualizada na obra de Chico Xavier. São por
assim dizer "bons para pensar" essa síntese. Ligada
à evangelização do Brasil, a Companhia de Jesus
é simultaneamente missionária e escolar, realizadora da
bandeira do Cristianismo em terras ultramarinas e, ao mesmo tempo, depositária
e transmissora do saber da Grande Tradição Ocidental.
E isso não é de pouca monta para uma alternativa religiosa
que se caracteriza justamente pela valorização do saber
erudito e letrado.
Outra síntese operada pela identidade
"jesuítica" de Emmanuel (Manoel da Nóbrega,
evangelizador e fundador de cidades, como São Paulo) cruza a
religião com os valores militares, a disciplina, a obediência
e o mérito, pois a Companhia de Jesus sempre foi conhecida como
uma espécie de ordem religiosa militarizada. Como numa hierarquia
militar, Emmanuel comanda uma falange de espíritos de luz, assim
como está subordinado a Ismael (patrono espiritual do Brasil)
e este, por sua vez, subordinado a Cristo, governador espiritual da
Terra na versão veiculada em Brasil, Coração do
Mundo, Pátria do Evangelho .
Curiosamente, a resignação
e alegria de Chico Xavier são freqüentemente comparadas
a São Francisco de Assis. Tudo se passa como se a boa ordem no
mundo, para o espiritismo de Chico Xavier, consistisse no jesuíta
comandando com mão severa e senso militar de organização
e o franciscano obedecendo com satisfação, humildade e
bonomia.
É esta elaboração
sincrética, que relaciona Chico Xavier (e seu mentor Emmanuel)
tanto com o catolicismo popular quanto com tendências corporativas
do catolicismo institucional, que será a principal responsável
pela popularização do espiritismo no Brasil a partir de
1940, época em que passa a sofrer a concorrência de outras
religiões mediúnicas, como a umbanda
(14). A antiga apresentação
do kardecismo no Brasil, antes de Chico Xavier, combinava uma ênfase
no teor moral da doutrina com a popularidade clientelística do
receitismo mediúnico. Ou seja, uma elite letrada atendia aos
pobres nos centros espíritas. Presente no modelo representado
por Kardec, a orientação racionalista da doutrina espírita
é paulatinamente substituída no Brasil, primeiro pelas
diretrizes da atuação de Bezerra de Menezes à frente
da Federação Espírita Brasileira e, depois, pelo
carisma atribuído à mediação e à
dupla mediadora médium/mentor no modelo religioso de Chico Xavier.
Como acentuo no quadro a seguir, o destaque dado à noção
de espíritos missionários e na mediunidade com Jesus ,
mais a introdução do sistema da dádiva, coroa esse
esforço de renovação no espiritismo de Chico Xavier.
Ora isto não significa que há uma capitulação
completa da especificidade espírita diante do catolicismo. Em
Chico, as concessões feitas ao catolicismo implicam transigências
feitas pelos antigos católicos que se aproximam do espiritismo:
uma aceitação maior do infortúnio como decorrência
de um carma ("lei de causa e efeito"), ou seja, a introdução
de um nível mais alto de racionalização e de auto-responsabilização
moral na explicação de doenças e desgraças
pessoais. Implicam ainda uma competição com sistemas mágicos
alternativos, como a benzeção, e os cultos afro-brasileiros
(15). Outra conseqüência
extremamente importante pode ser localizada na difusão de livros
espíritas como veículos de uma religiosidade, de um cultivo
literário de si e de uma distinção pelo saber,
juntamente com a introdução de práticas eruditas
de estudo, leitura, comentário e citação, tão
distantes quanto originais em face do catolicismo doméstico brasileiro,
tradicionalmente realizado da boca para o ouvido.
Tudo isso acontecia no bojo de conversões
que tinham um alto custo social no Brasil, até pelo menos a década
de 1960, quando o catolicismo ainda identificava-se informalmente com
a própria nacionalidade.
Já as atitudes de seu mentor
Emmanuel revelam que para o indivíduo Chico Xavier não
há elementos de graça, privilégio ou particularização
possível. Emmanuel é um severo chefe, que exige de Chico
a observância de uma disciplina de caserna, inflexivelmente igualitária,
mas não propriamente individualista. O médium de Pedro
Leopoldo é regulado por um autêntico código militar
de conduta, em que imperam a "disciplina", o "trabalho"
e o "estudo". Mesmo quando à beira da morte por uremia,
em 1940, Emmanuel lhe advertiu que "não poderia auxiliar-lhe
em seu desencarne, que procurasse outros amigos espirituais, pois não
era melhor do que ninguém"
(Gama,1995: 69). Nessas histórias
esboça-se uma noção original de pessoa espírita,
em Chico Xavier: ela está dividida entre um ethos católico
de santidade, "graça" e de "caridade" na
relação com os outros e um modelo meritocrático
e militar na relação consigo próprio, no qual todos
os indivíduos ingressam idealmente iguais e tornam-se pessoas
pelo mérito. Ora, para o indivíduo Chico funciona, nessas
ocasiões, uma idéia impessoal e legalista de carma que
aqui estou designando, sinteticamente, como sistema da dívida.
Entre dois modelos: o santo e o caxias
Diferentemente
de seus contatos corriqueiros com os espíritos, que aconteciam
em qualquer hora e lugar, os encontros iniciais de Chico com seus mentores
espirituais ocorrem em regiões de fronteira entre o mundo natural
e o mundo cultural: primeiro com a falecida mãe, no quintal da
casa de Rita, à sombra de uma bananeira e, depois, com Emmanuel,
em frente a uma represa. Na periferia dos ambientes culturais, nem por
isso eles deixam de relacionar-se e portar marcas de ambos os mundos,
simbolizando, especialmente no segundo caso, a atitude permanentemente
limítrofe do médium entre o plano material e o plano espiritual,
entre este mundo e o outro mundo. As marcas do ambiente urbano construído,
especialmente a represa, funcionam antes como um signo da dualidade
entre o mundo dos homens e o mundo dos espíritos e não
da plena exterioridade, como nas visões de santos no deserto.
Mostram-nos que Chico Xavier não realiza uma renúncia
completa das coisas mundanas, individualizando-se "fora do mundo"
ao modo dos renunciantes clássicos, mas numa desistência
seletiva e integrada que consiste basicamente num estar "entre
dois mundos", simultaneamente dualidade e liminaridade. A santidade
do médium está ligada a uma proposta de renúncia
ao complexo de valores e atitudes ligados ao papel emblemático
da categoria matéria na cosmologia espírita. Assim, Chico
não desiste do mundo: desiste da matéria em nome da vivência
exemplar dos valores do espírito, transformando essa atitude
numa condição de exercício de seus poderes mediúnicos.
Ele participa do mundo porque o segmenta de acordo com a metafísica
espírita, numa essência espiritual e noutra material, tornando-se
individualizado "entre dois mundos" para, após, classificar
hierarquicamente as espiritualidades das pessoas e das situações,
realizando uma manipulação espiritual do mundo
(16).
Assim a fase adulta da vida de Chico consiste na consolidação
de sua santidade pela revelação de sua missão:
difundir, por seus livros psicografados, um espiritismo letrado, brasileiro
e sincrético, o que se depreende pelas diferentes fases de sua
produção mediúnica, mas também pelas suas
renúncias, em que a condição singular de "indivíduo
entre dois mundos" implica a observância de um código
de conduta reservado a seres especiais.
Nesta construção espírita
de uma carreira de santidade, há uma reorganização
da visão de mundo e de algumas práticas rituais do espiritismo,
aproximando-o de um culto nos moldes mais tradicionais. Ou seja, o sincretismo
católico versus espírita, representado por Chico Xavier,
implicou um relevo todo especial dado à figura de Jesus e aos
personagens da mito-história espírita, principalmente
através de narrativas exemplares, de manuais resumidos de moralidade
e de pequenos livros de conselhos a serem lidos e comentados em família,
durante o culto do Evangelho no lar.
Chico, pela sua vivência "entre
dois mundos", evidencia alguns dos núcleos da cultura brasileira.
As formulações de Roberto DaMatta (1979) são de
grande valor na consideração do caso de Chico Xavier.
Para este autor, o Brasil é uma sociedade relacional que desliza
num continuum ideológico, que vai da hierarquia à igualdade.
Assim, a cultura brasileira é fortemente tributária de
um ethos e de uma cosmologia hierárquica (ainda que cruzada ao
individualismo), podendo ser representada por um modelo triangular,
onde os vértices são a "ordem", a "desordem"
e o "outro mundo". Os típicos personagens que a representam
são em primeiro lugar o "caxias", o inflexível
cumpridor de ordens, amante das normas e legalista até o extremo
em seus posicionamentos. Em segundo, há o "malandro",
navegador dos interstícios sociais, personagem ligado à
inversão carnavalesca que desfaz burlesca e momentaneamente as
distâncias hierárquicas entre os grupos. Finalmente temos
o renunciante, que se relaciona à perspectiva do religioso, neutralizador
das diferenças diante da morte, do sagrado e do "outro mundo".
Personagem dos limites, intérprete e intercessor privilegiado
entre este mundo e o outro mundo, o renunciante incorpora o modelo católico
de virtude e santidade, altamente diferenciado com relação
ao mundo, suas paixões, laços e trocas.
O ideal espírita de homem público
modelar, encarnado pelo exemplo de Chico Xavier, combina dois dos paradigmas
culturais muito caros à sociedade brasileira, analisados por
DaMatta: o "caxias", o cidadão obediente e honesto,
disciplinado, cumpridor de horários, seguidor de normas, inflexivelmente
igualitário e legalista; com o "renunciante" ou santo,
aquele que se pauta pelos princípios do "outro mundo",
combinando renúncia com caridade cristã. Nesse sentido,
as qualidades sincréticas da santidade de Chico Xavier, como
figura dúplice e liminar, traduzem-se também no acúmulo
pessoal das características do "santo" e do "caxias".
O indivíduo concebido em sua biografia insere-se num campo de
possibilidades muito específico, sem autonomia ou individualização
como mônada moral. Sua margem de escolhas aloja-se entre regulamentos
divinos e uma pré-história cármica que o conforma
a escolhas prévias ao nascimento. Sua única saída
é conscientizar-se da teia hierárquica e orgânica
em que está envolvido, pagando suas dívidas através
de "trabalho". Dessa forma, Chico não encarna um ideal
de cidadão crítico da realidade circundante, mas sim o
de um membro disciplinado de uma comunidade orgânica e hierarquizada,
concepção espírita com importantes afinidades com
o ethos militar da disciplina e com sua concepção de "evolução
pelo mérito", tornando-se compreensível a forte atração
que esta alternativa religiosa sempre exerceu neste grupo social.
Não se trata apenas de uma cosmologia em que a hierarquia conjuga-se
com o mérito, mas é preciso salientar que a atração
"militar" articula a idéia de "carma" com
um senso de ordem e justiça ao qual nenhuma ação
humana é insignificante (17),
sobretudo quando se liga à crença de que "o plano
espiritual" que engloba e dá sentido ao material —
"é muito organizado ", frase que se ouve com freqüência
nos centros espíritas. Não se trata de uma racionalização
da crença religiosa que aponta na direção de um
individualismo autonomizante, mas sim na ênfase numa "comunidade
orgânica" regida pelo império da lei
(18).
Alternando os modelos de santo e de
caxias, Chico encarna também a forte rejeição do
espiritismo para com a vertente carnavalizante na sociedade brasileira,
que engloba as possibilidades da malandragem e da celebração
momentânea e lúdica de personagens marginais. Para o espiritismo,
não tem cabimento a inversão da ordem, a quebra momentânea
ou permanente das convenções sociais, bem como as misturas
e os excessos carnavalescos (19).
O contato e os valores religiosos "antimaterialistas" do espiritismo
podem, enquanto perspectiva do mais alto ou do outro mundo, suprir essa
necessidade de aproximação conciliatória de domínios
culturalmente heterogêneos na medida em que as únicas diferenças
que contam são as de mérito e elevação espiritual
aos olhos de Deus . Ou seja, o religioso promove um nivelamento das
diferenças diante do "plano espiritual".
A própria relação do médium com a espiritualidade,
através de sua ligação com Emmanuel, é de
subordinação e serviço, sintetizada na categoria
nativa mandato mediúnico ou mediunato. Ela carrega um tipo de
delegação, mas também de obrigatoriedade. Nessa
lógica, a extensão do poder mediúnico é
proporcional à responsabilidade da tarefa imposta pelo Plano
Espiritual:
P - Em seu primeiro encontro com Emmanuel,
ele enfatizou muito a disciplina. Teria falado algo mais?
R - Depois de haver salientado a disciplina
como elemento indispensável a uma boa tarefa mediúnica,
ele me disse: "temos algo a realizar".
Repliquei de minha parte qual seria
esse algo e o benfeitor esclareceu: "trinta livros pra começar!".
Considerei, então: como avaliar esta informação
se somos uma família sem maiores recursos, além do nosso
próprio trabalho diário, e a publicação
de um livro demanda tanto dinheiro? Já que meu pai lidava com
bilhetes de loteria, eu acrescentei: será que meu pai vai tirar
a sorte grande? Emmanuel respondeu: "nada, nada disso. A maior
sorte grande, a do trabalho com a fé viva na Providência
de Deus. Os livros chegarão através de caminhos inesperados".
Algum tempo depois, enviando as poesias
de Parnaso de Além-túmulo para um dos diretores da Federação
Espírita Brasileira, tive a grata surpresa de ver o livro aceito
e publicado, em 1932. A este livro seguiram-se outros e, em 1947, atingimos
a marca dos trinta livros. Ficamos muito contentes e perguntei ao amigo
espiritual se a tarefa estava terminada. Ele, então, considerou,
sorrindo: "agora, começaremos uma nova série de trinta
volumes". Em 1958, indaguei-lhe novamente se o trabalho finalizara.
Os sessenta livros estavam publicados e eu me encontrava quase de mudança
para a cidade de Uberaba, aonde cheguei a 5 de janeiro de 1959. O grande
benfeitor explicou-me, com paciência: "você perguntou,
em Pedro Leopoldo, se a nossa tarefa estava completa e quero informar
a você que os mentores da Vida Maior, perante os quais devo também
estar disciplinado, me advertiram que nos cabe chegar ao limite de cem
livros". Fiquei muito admirado e as tarefas prosseguiram. Quando
alcançamos o número de cem volumes publicados, voltei
a consultá-lo sobre o termo de nossos compromissos. Ele esclareceu,
com bondade: "você não deve pensar em agir e trabalhar
com tanta pressa. Agora, estou na obrigação de dizer a
você que os mentores da vida superior, que nos orientam, expediram
certa instrução que determina seja a sua atual reencarnação
desapropriada, em benefício da divulgação dos princípios
espíritas cristãos, permanecendo a sua existência,
do ponto de vista físico, à disposição das
entidades espirituais que possam colaborar na execução
das mensagens e livros, enquanto o seu corpo se mostre apto para as
nossas atividades".
Muito desapontado, perguntei: então
devo trabalhar na recepção de mensagens e livros do mundo
espiritual até o fim da minha vida atual? Emmanuel acentuou:
"sim, não temos outra alternativa!". Naturalmente,
impressionado com o que ele dizia, voltei a interrogar: e se eu não
quiser, já que a Doutrina Espírita ensina que somos portadores
do livre-arbítrio para decidir sobre os nossos próprios
caminhos? Emmanuel, então, deu um sorriso de benevolência
paternal e me cientificou: "a instrução a que me
refiro é semelhante a um decreto de desapropriação,
quando lançado por autoridade na Terra. Se você recusar
o serviço a que me reporto, segundo creio, os orientadores dessa
obra de nos dedicarmos ao Cristianismo Redivivo, de certo que eles terão
autoridade bastante para retirar você de seu atual corpo físico!".
Quando eu ouvi sua declaração, silenciei para pensar na
gravidade do assunto, e continuo trabalhando, sem a menor expectativa
de interromper ou dificultar o que passei a chamar de "Desígnios
de Cima". (entrevista concedida ao jornal
O Espírita Mineiro, n. 137, abr.-mai.-jun. de 1970)
Descrevendo passagem muito conhecida da relação de Chico
com o Plano Espiritual (categoria que conota um Mundo, uma Ordem, uma
Equipe e um Plano), esses trechos evidenciam sinais de uma tensão
entre as aspirações humanas e a missão imposta
ao indivíduo Chico. Ele quer ser "normal", resgatando
as dívidas para seguir como uma pessoa comum, mas Emmanuel, a
cada resgate parcial de compromissos, impõe-lhe novas tarefas,
a ponto de cogitar a "desapropriação de seu corpo"
caso haja uma definitiva recusa ao prosseguimento no "mandato mediúnico"
(20).
Esse mediunato significa que o corpo do médium
está a serviço de uma "missão" projetada
na "espiritualidade". Ou seja, sua doação material
é feita ao mundo espiritual funcionando como médium ou
receptor material. Para usarmos uma fórmula condensada, tudo
se passa como se Chico Xavier tivesse como princípio uma relação
material com o mundo espiritual e uma relação espiritual
com o mundo material. Chico entrega como receptor a materialidade de
seu corpo aos espíritos desencarnados e, para os homens (para
quem é um grande receptor de demandas), ele doa a sua espiritualidade,
no duplo sentido de testemunho de valores cristãos e de exercício
caritativo de poderes mediúnicos.
As categorias empregadas, "serviço",
"trabalho", "mandato mediúnico" (ou "mediunato"),
decreto de desapropriação, remetem ao coração
de uma linguagem burocrática, administrativa, impessoal e abstrata,
que contrasta com a piedosa linguagem catolicizante de outras situações
mas que se liga a uma concepção corporativista de sociedade,
presente nas descrições do mundo espiritual em Brasil,
coração do mundo, pátria do evangelho e em Nosso
lar. A esse respeito, é bastante instrutivo um depoimento de
Chico Xavier, relatado por Barbosa:
Temos no Espiritismo o cumprimento da
promessa do Cristo: "Conhecereis a Verdade e a Verdade vos fará
livres", ao que o nosso abnegado Emmanuel acrescenta: "e a
Verdade vos fará livres para sermos servos felizes de nossas
obrigações e para sermos mais responsáveis perante
Deus". (1992: 142)
Essa visão cívica, orgânica e corporativa de cidadania
e de pessoa afina-se com certas tendências ideológicas
dos segmentos militares ao modernismo racionalizante, que pregava a
tutela da sociedade pelo Estado (Carvalho, 1998;
Castro, 1995) e, mais tarde, com as tendências conservadoras
do pensamento social nos anos 20, 30 e 40 inclusive na doutrina social
da Igreja (21).
Originalmente católica, essa visão é também
encarnada na perspectiva que lançava o Estado e o exército
como instrumentos modernizantes e laicos o suficiente para, de um lado,
desidentificar-se com a religiosidade conservadora, mas não o
bastante a ponto de prescindir da tradição cristã,
como fez o positivismo, quando convertido à doutrina política.
Ou seja, na moderna realização de sínteses religiosas
no espiritismo exposto na vida e obra de Chico Xavier, este situa: 1)
o sincretismo da umbanda como "primitivo", 2) a mistura da
religião e política do positivismo, como "promíscua"
e 3) a síntese espírita de religião, filosofia
e ciência como desejável, "racional" e "evoluída".
Entre dois mundos: os códigos da santidade
Chico vê e fala com os Espíritos
como se estes pertencessem ao plano material. Vive ele entre os dois
mundos, o físico e o espiritual. Isso sem falar na natureza de
sua missão, nos preparativos que antecederam à sua reencarnação
e na assessoria de Emmanuel. (Worm, 1993: 18)
Desde que iniciou sua carreira de escritor
mediúnico de renome nacional, Chico abriu mão de quaisquer
benefícios que poderiam ser oriundos de suas faculdades psíquicas,
como direitos autorais, favores pessoais e empregos. Pelo contrário,
sempre insistiu em sua desimportância, comparando-se a animais
de carga, a pó ou a vermes — aquilo que estaria metaforicamente
mais em baixo. Trata-se de uma ética da humildade e caridade,
um dos itens que conformam a sua imagem de homem público e espírita
modelar. Perante as pretensões morais dos homens, ele coloca-se
no plano mais baixo possível, como se o canal de comunicação
com o mais alto não dependesse apenas de uma recusa aos valores
da matéria, mas também de uma diminuição
voluntária do self. Já os seus comportamentos evidenciam
uma atitude prudente de quem anda nas margens do mundo social, uma alegria
franciscana diante da pobreza e das adversidades, articulados às
qualidades de fraternidade, caridade cristã e humilde, e resignação
diante da própria sorte.
A perspectiva da santidade "entre
dois mundos" do modelo de Chico Xavier pode ser lida tanto como
duplicidade quanto como liminaridade. Duplicidade significa que as propriedades
e regras de ambos os mundos convivem em sua pessoa, assim como fazem-no
interagir com os membros desses mundos de um modo como os outros não
o fariam. Assim, ele convive com os espíritos com a mesma familiaridade
com que interage com os homens. Essa duplicidade, vivida como cumprimento
estrito de uma regra religiosa, é apreciada como "santidade"
na leitura dos peregrinos que acorrem semanalmente a Uberaba em busca
de um encontro com o médium.
Em cada mundo de que participa, Chico
Xavier realiza um código de prudente alteridade: médium
receptor dos espíritos, recebe suas mensagens como intermediário
material entre estes e o mundo dos homens. Aos "encarnados"
ele oferece sua espiritualidade, sua mediunidade e seu exemplo de comportamento
e linguagem.
O médium mineiro comporta-se
como um ser das margens, essencialmente liminar, no sentido desenvolvido
por Turner (1974), à diferença de que não é
apenas um momento, mas toda a vida de Chico Xavier que tem esse caráter
liminar, como se fosse obrigado a viver a sua relação
com a humanidade em constante communitas. Construindo a sua santidade
com base na absolutização de sua liminaridade, ele se
mantém estritamente na fronteira entre os dois mundos, espiritual
e material, numa espécie de communitas intermundana.
Participando de uma essência
humana e de outra espiritual, ele se quer apenas um "humilde intermediário"
ou, então, um mero "trabalhador cumprindo uma missão".
Para os fiéis e admiradores, a ostentação pública
de sua humildade vale como confirmação de sua santidade.
Santo popular espírita e modelo de virtudes cristãs, a
aliança com os valores da espiritualidade superior impõe
ao indivíduo Chico severas renúncias às esferas
sociais de troca e compromisso que denotariam aliança, como matrimônio,
contração de dívidas ou aceitação
de favorecimentos pessoais. Com relação ao uso de sua
mediunidade, Chico age como um cumpridor de ordens disciplinado, aplicando
estritamente o preceito "dai de graça aquilo que de graça
recebeste" na reinterpretação espírita da
tradição cristã. Ora, esse preceito da doutrina
espírita foi historicamente utilizado para combater o uso pago
da mediunidade, além de ajudar a criar a tão almejada
imagem de respeitabilidade do movimento espírita na sociedade
brasileira, afastando-o do "baixo espiritismo", prática
desde sempre suspeita de "charlatanice" e "exploração
da credulidade popular" (22).
A relação material com o plano espiritual implica, assim,
um rígido código de disciplina para o médium. Chico
é comandado por um senso inflexível de dever, supervisionado
estritamente por Emmanuel, que não lhe confere privilégios.
Do contrário, sofre duras provas ao longo de toda uma vida de
sofrimentos causados por doenças e privações materiais.
É "caxias" em todos os seus hábitos pessoais,
inclusive na recusa de qualquer privilégio material, qualquer
situação que pudesse configurar o que poderíamos
chamar de "peculato espiritual".
Com os espíritos e com os valores
da espiritualidade, ele é preferencialmente um receptor material
(pois "o telefone só toca de lá para cá",
como costuma dizer) e toda a sua biografia pode ser lida à luz
de uma "missão". Tanto que o médium é
comumente representado como "espírito missionário",
"apóstolo" ou "espírito superior",
no meio espírita.
Como pessoa social, Chico Xavier é
celibatário, renuncia ao sexo e ao código da aliança
em nome de uma "aliança com o mais alto" — ainda
que não recusasse as tarefas de tutor de suas irmãs em
sua juventude - para cuidar de sua família espiritual:
Chico ouviu, meditou e hoje está
convencido de que Deus e os orientadores espirituais privaram-no do
amor físico para que ele se dedique ao amor por todos. (Machado,
1983: 110)
Também aqui a renúncia
de Chico não implica uma fuga do mundo, mas de praticar a sua
versão do Imitatio Christi, enquanto um irmão "entre
dois mundos", na ambivalência e na fragilidade liminar de
quem vive em communitas com o resto dos homens. Chico é um espírita
de cunho eminentemente "evangélico", tanto que as obras
de Emmanuel não cansam de propagar o culto do Evangelho no lar
como a mais relevante das práticas espíritas.
O seguinte caso ilustra a relação
de Chico Xavier com os presentes materiais. Fernando Worm relata que
tentou enviar a Chico um presente de uma vigem que havia feito à
Itália, um azulejo comprado numa loja nas ruínas de Pompéia:
Respondendo-nos, Chico Xavier ponderou que talvez a "relíquia
pompeana" (sic) viesse a quebrar-se no trajeto postal e sugeriu
aguardar uma eventual viagem a Uberaba para levá-la pessoalmente.
Algum tempo depois entregávamos
pessoalmente a Chico a nossa modesta lembrança prometida. Contemplando
longamente a pintura da nobre e esbelta figura da jovem romana, carcomida
pelo tempo e com visíveis rachaduras na reprodução
do original, e após escrever uma dedicatória na face posterior
da peça, devolve para nós dizendo: "agora peço-te
que a leves de volta. Guarda-a contigo".
Surpreso pelo inesperado do gesto, embora
sabedor de que o médium kardecista não recebe presentes
nem aceita recompensas materiais, redargüi: "mas Chico, a
lembrancinha é tão simples, veio de tão longe (...)
por que não a aceitas? Toma, ela é tua..."
A resposta não deixou de ser
igualmente surpreendente para mim: "Sim, a partir deste instante
ela passou a ser minha pela retina espiritual. A ti e aos teus familiares
peço que fiquem de guardiães desta preciosa relíquia.
Deus nos abençoe sempre". (Worm, 1993:
9)
O recorte de todas as coisas em espirituais e materiais permite a Chico
realizar uma manipulação espiritual da dádiva.
Com os "encarnados" ele é preferencialmente doador
(de mensagens psicografadas, livros, exemplos, consolo, curas), reservando-se
a participar de um circuito de dádivas apenas na perspectiva
"espiritual". O caso do presente devolvido de Worm ilustra
o código a que Chico Xavier estava submetido e a habilidade ímpar
de desvencilhar-se de situações como essa: o presente
retorna ao doador sem configurar uma recusa da intenção
que o animou. De início, Chico alega riscos de extravio, mas
não se furta a dar uma satisfação posterior ao
ofertante. Na clássica lógica da dádiva, a não-aceitação
do presente significa a recusa em participar de uma troca entre parceiros,
mas a dedicatória escrita junto com a peça devolvida (em
que pede que a família de Worm seja guardiã do presente),
somada à justificativa pessoal em que afirmava que "a relíquia
já era sua pela retina espiritual", resolveu a questão
ao reduzir o circuito da troca à sua estrutura essencial. Chico
aceitou "espiritualmente" a dádiva (ou o hau do presente)
mas se negou a aceitar seu invólucro material, potencialmente
arriscado por ser uma permanente fonte de dúvidas sobre os compromissos
que a sua recepção encerraria. Assim, ele aceita apenas
a intenção desinteressada, sublimada de qualquer chance
de obrigá-lo a uma contraprestação material ou
a obrigações pessoais, como se, ao segmentar um presente
em matéria e espírito ("ele é meu pela retina
espiritual") e conferir substância autônoma à
sua face imaterial, ele se envolvesse de forma purificada no circuito
da troca. Por ser capaz de aceitar apenas a parte espiritual de um presente
recusando seu lado material, para Chico Xavier pode-se aplicar literalmente
o provérbio "o que vale é a intenção":
para o médium mineiro a dimensão espiritual é ontologicamente
mais real e intensa do que a material. Assim, é a relação
espiritual que tem com o mundo material, no qual ocupa sobretudo o posto
de doador, que permite a Chico manipular espiritualmente o próprio
dom imaterial, ou hau contido no presente, recusando seu invólucro
material sem caracterizar inaceitação ou desfeita.
Uma mulher, agradecida por ter recebido
do médium uma mensagem do falecido pai, tentou pagar Chico em
dinheiro, tendo recebido dele a seguinte resposta:
— Não posso aceitar, minha
irmã, nenhum dinheiro. Tudo o que recebo é de graça,
vem do mais Alto, por misericórdia imensa do Pai, devo também
dar de graça para continuar digno do Amparo que lhe recebo. (Gama,
1986: 167)
Se a arquicategoria carma remete a uma regulação impessoal
e abstrata por uma ordem superior, cuja analogia privilegiada é,
em Chico, com uma concepção de "estadania"
(23) antes que de indivíduo,
a relação do médium mineiro com os homens é
condicionada pela lógica da dádiva com o mundo espiritual.
Como receptor material dos espíritos e doador espiritual dos
homens, ele relaciona-se com cada membro dos mundos como se relacionasse
com o seu conjunto, com a "série", para usarmos um
termo classificatório. Assim, ele está numa típica
situação de dom para com a série dos "espíritos
amigos", resgatando suas dívidas através do cumprimento
de sua missão: passar para a série dos "encarnados"
as mensagens, bens, curas, graças e intercessões, como
contraprestação mediata pelo mundo espiritual ter-lhe
concedido os seus dons.
Por outro lado, sua relação
material com o mundo espiritual faz com que ele, paradoxalmente, possa
tanto ser o médium de espíritos amigos quanto ser vítima
de espíritos inimigos ou baixos, que seguidamente tentam atingi-lo
materialmente com armas espirituais. Estas atingem-no como qualquer
arma do mundo material o atingiria. No sistema espírita, os espíritos
das trevas, pouco evoluídos, estão para os espíritos
de luz como a matéria está para o espírito
(24). Logo, eles estão em posição equivalente
à "matéria", no duplo sentido de densidade e
inferioridade, de valores e de comportamento. Nesse sentido, a resposta
de Chico às agressões materiais dos espíritos é
uma resposta "elevada", "espiritual" e cristã,
nunca revidando às agressões, respondendo-lhes de forma
sublimada, com a prece, a compreensão bondosa e a resignação.
Ou seja, relaciona-se com os espíritos inimigos também
como doador espiritual, comportamento inspirado pela mesma lógica
com que se relaciona com tudo aquilo que é "material"
(o que os "espíritos trevosos" não suportam.
A magnífica lição se repete
e se repetirá, por muitas vezes durante a sua vida.
Diante do alarido — o silêncio.
Diante da calúnia — a prece.
Diante da ofensa — o perdão.
(...) Qualquer outra atitude que expresse
revide, ali [na FEB, a "Casa de Ismael"] não encontra
ressonância.
Nenhuma defesa, nenhum revide.
Não há do que se defender.
A linha do comportamento é a
do Evangelho de Cristo.
É aquela traçada pelo
Divino Amigo faz qual ele se faz o exemplo. (Schübert,
1986: 135)
A calúnia, a ofensa e a desmoralização
pelos homens também são presentes ou dádivas envenenadas
pois, além de desafiarem ao revide (uma forma de contraprestação,
sem dúvida), é ali que a linguagem atinge o máximo
de sua densidade e materialidade, na acepção espírita.
Prender-se a ela seria não apenas rebaixar-se a um padrão
vibratório condicionado por espíritos baixos, comprometendo-se
diante da Lei, inclusive com riscos de anulação de seus
poderes mediúnicos. Reagir a ofensas na visão espírita
equivale a acionar o código da vingança, ou seja, um circuito
condenado de prestações e contraprestações,
ainda que de alto interesse narrativo nas histórias de obsessão,
na medida em que faz equivaler o par de papéis obsessor/obsidiado
a uma relação circunstancial e transitiva entre algoz
e vítima. Essas narrativas, abundantes na literatura espírita,
são exemplares das disposições e comportamentos
que o espírita não deve cultivar e Chico, nesse sentido,
dá o completo testemunho desses valores em suas histórias
e atitudes.
Assim, o médium renuncia aos
diversos circuitos de trocas que o comprometeriam pela lógica
da dádiva: troca de presentes, troca de favores, trocas matrimoniais,
direitos autorais, oriundos de encarnados, restringindo-se, como intermediário,
ao circuito da intercessão e da graça. No entanto, há
uma situação em que Chico Xavier doa bens materiais em
abundância, é na prática da caridade aos pobres,
para quem ele doa roupas, víveres, cobertores, travesseiros,
etc. Ali, Chico está doando como mediador de uma missão,
ou seja, como intermediário exemplar de atos cristãos
para a série social e religiosa dos pobres, espécie de
Imitatio Christi que caracteriza a realização de sua "missão"
(25).
Mesmo em nítida composição
com o catolicismo, Chico recusa a qualificação de "santo"
sem, entretanto, poder escapar da dinâmica imperativa de relações
sociais, representações e expectativas de santidade que
as procissões e romarias a sua casa engendraram, tendo que se
amoldar a elas na forma de atendimentos no centro espírita a
familiares em busca de mensagens e consolo. Trata-se de um efeito não
intencional de sua fama de intercessor, que dialoga com os costumes
da religiosidade popular no Brasil, ainda que viabilizada pelas sugestões
míticas contidas na unidade de sua vida e obra. Apesar da coerência
do modelo que venho discutindo, é preciso salientar que, se examinada
em filigrana etnográfica, essa santidade acaba se tornando um
depósito semântico em aberto para os fiéis, no interior
do qual os significados atualizados extravasam um único mito
ou modelo, ainda que a ele(s) não cessem de se referir.
Como santo, ele também tem a
capacidade de manipular espiritualmente as situações adversas,
reinterpretando-as pela "lógica do mais alto", como
quando foi a um bordel e, ao reconhecê-lo, todos se puseram a
rezar (Souto Maior, 1995:30) ou, então,
quando conseguiu a arrecadação diária de um mendigo
de Pedro Leopoldo no auxílio ao enterro de seu ex-patrão.
Pela mediunidade, ele reinterpreta o sentido de males e infortúnios
de doentes. Ranieri conta que, ao visitar um menino
de nome Emmanuel, entrevado numa cadeira de rodas, cuja mãe era
extremamente pobre e doente, Chico contou a seguinte história:
— Pois é Ranieri, nosso amigo Emmanuel foi Robespierre,
outrora, na França; governou o povo francês, no terror,
e conquistou uma legião de inimigos. Como prova renasceu assim;
aleijado e, nessas condições, torturado. Com ele acontece
um fato interessante:
— Quando
dorme e o seu espírito desprendido sai do corpo, aqueles a quem
mandou matar na Revolução avançam contra ele, desesperados
e o atacam. Aflito, aterrorizado, retorna ao corpo físico, onde
se oculta, e desperta, deste lado, aos gritos. Este corpo deformado
desse jeito é ainda assim, uma fortaleza e um refúgio.
No começo, eram centenas. Mas no correr dos anos, têm sido
esclarecidos pelo espírito de Emmanuel e outros amigos espirituais.
Agora, restam poucos. Quando esses inimigos não o atacam, ele
então procura a mãe e a obseda. Aí ela fica
louca. Já esteve internada por isso.
— Quando ele se afasta dela, a
pobrezinha fica boa, volta ao normal.
— Diz nosso Emmanuel que, "quando
essas últimas entidades inimigas forem doutrinadas", ele
desencarnará.
Fitamos estarrecidos aquela criaturinha
indefesa que ali estava. Poderoso tirano, que mandara milhares para
a guilhotina, jazia agora, depois de quase dois séculos, num
berço de enfermidade, sob o guante do desespero e da dor. (Ranieri,
s. d: 24)
O mesmo procedimento pode ser observado
nesta narração da visita que o médium fez a uma
senhora muito doente, que morava numa choupana miserável com
sua filha:
Esta mãe com a filha sempre nos
braços me faz lembrar um quadro da Madona. Estes dois espíritos,
naturalmente em resgate de existências anteriores, são
para mim nobre exemplo de fé e de aceitação que
muito me edificam. Muitas vezes, em horas difíceis, ou em momentos
de provação dos quais preciso e mereço, meu pensamento
se volta para esta casa e aqui encontro novas forças. (Worm,
1993: 11)
Da mesma forma, os eufemismos que predominam na retórica de Chico
Xavier também podem ser analisados pelo processo de segmentação
e hierarquização a que o médium submete todas as
coisas do mundo: da mesma forma que as pessoas, os presentes e as ofensas,
a linguagem é uma espécie de "dom" que também
pode ser dividida numa parte espiritual (pensamento, conteúdo
e intenção) e noutra material, como veículo de
expressão (sons, texto). O passo seguinte à divisão
classificatória é a hierarquização do objeto,
pessoa ou situação em "superior" e "inferior",
"sutil" ou "densa", de "vibração
elevada" ou de "baixa vibração"
(26). Para usar uma fórmula
condensada, o médium mineiro realiza uma manipulação
espiritual do mundo , neste caso convertida a uma manipulação
espiritual da linguagem.
Além de interpretar acertadamente a concepção
espírita das implicações morais e fluídicas
das vibrações contidas nas palavras, o biógrafo
Souto Maior registrou a maestria de Chico em lidar com metáforas
e eufemismos:
No seu mundo não havia prostitutas,
mas "irmãs vinculadas ao comércio das forças
sexuais". Os presos eram "educandos", os empregados eram
"auxiliares", os pobres eram "os mais necessitados",
os mongolóides eram "os nossos irmãos com sofrimento
mental", os adversários eram "nossos amigos estimulantes"
e os maus eram os "ainda não bons". Ninguém
fazia anos e sim, "janeiros" ou "primaveras". Os
filhos de mães solteiras deveriam ser encarados como "filhos
de pais ausentes". (1995: 93).
A despeito de possíveis aproximações
com o "politicamente correto" o estilo de linguagem empregado
por Chico Xavier aponta para uma direção diversa. Enquanto
o politicamente correto tem uma inspiração puritana de
reconceitualizar o mundo sem ambigüidades nem discriminações,
ou seja, o politicamente correto corrige injustiças através
da linguagem (27),
Chico atualiza uma verve católica e "mineira", que
não abole as distinções hierárquicas mas
suaviza-as em virtude da crença na desimportância relativa
de todos diante do Plano Espiritual. Difere da linguagem encontrada
nos livros de Allan Kardec, mais árida e pontificadora. Difere
ainda da linguagem severa de seu mentor Emmanuel, freqüentemente
comparada à de um rígido sacerdote jesuíta. Nesse
sentido compreende-se a opção pelo uso do eufemismo: este
é o uso mais "sutil" e "superior" de um instrumento
evolutivamente "denso" e "inferior" que é
a linguagem. O eufemismo — como figura de linguagem marcada pela
sutileza — é usado como a forma mais suavizante possível
de falar, estando para a linguagem assim como o espírito está
para a matéria. Ele é uma espécie de linguagem
purificada, aproximando-se de um "pensamento desmaterializado",
ou seja, é o máximo de espiritualização
a que a linguagem humana de Chico Xavier poderia atingir.
Além disso não se trata
apenas de identificar o "politicamente correto" em sua linguagem,
mas o que poderia ser chamado de "liminarmente correto". Além
de transfigurador de situações, ele transfigura conceitos
densos em sutis através de eufemismos. Ou seja, em Chico Xavier,
o eufemismo é o tropo retórico espiritual por excelência.
Os eufemismos abaixo não tentam afrontar o senso comum mas suavizar
o estigma a eles associado. A inclusão fraterna de excluídos,
subalternos e vítimas de preconceito resulta de uma reinterpretação
da categoria renomeada, com base na infusão de um significado
transitório: preso é o "educando" e o rico é
o "administrador dos tesouros de Deus". A transfiguração
metafórica dos eufemismos de Chico suaviza a violência
real dos preconceitos e operações de rotulação,
de exclusão social, das relações sociais de violência
simbólica e dominação, apenas na medida em que
essa transfiguração não se percebe como restrita
ao terreno retórico mas, como venho sustentando, é uma
manipulação espiritual da linguagem, decorrente de seu
código liminar de santidade. Tudo se passa como se, mesmo nas
conversas e discursos, também formas de troca de dons, Chico
Xavier procurasse emitir suas frases e mensagens numa forma lingüisticamente
purificada dos "pesados fluidos" ligados às palavras
duras, cujo máximo limite possível de expressão,
no ethos espírita, é o eufemismo. Ou para empregarmos
uma terminologia espírita, trata-se de uma relação
sublimada com a linguagem - bem entendido, no sentido etimológico
de "tornada sublime" e não no sentido psicanalítico.
Um espiritismo letrado e nacional
Todas as revelações de
Chico Xavier em relação à obra de André
Luiz levam-nos a uma série de reflexões.
Por que razão Emmanuel não
escreveu, ele mesmo, tais livros? Ou Bezerra de Menezes, que foi médico
na Terra? Quais os motivos que teriam levado à escolha de André
Luiz? Quais os critérios adotados para essa escolha? A verdade
é que houve atenta, meticulosa e completa preparação.
André Luiz foi o escolhido para
transmitir os novos ensinamentos. E o fez, absolutamente com a orientação
segura e sábia de Emmanuel e Bezerra. E ambos trabalhando em
conformidade com as altas autoridades espirituais.
A forma da narrativa foi planejada,
visando facilitar o entendimento. André Luiz corporifica o aprendiz,
que se torna, depois, repórter da vida além-túmulo.
Conta as suas próprias experiências ou, quem sabe, um conjunto
de outras experiências que ele, com um recurso de escritor, as
transforma em suas, sem que isto invalide em nada a força de
seu discurso ou autenticidade.
Se ele fosse um iniciante na Doutrina
Espírita, nem por isso haveria o perigo de prejudicar o trabalho,
já que ele era ali, também ele, MÉDIUM de outros
Espíritos mais elevados. (Schübert,
1986: 101)
Ao mesmo tempo em que busca conciliar-se
com a cultura católica brasileira, Chico Xavier concretiza uma
proposta simultaneamente cívica e letrada. Nacionalista, sua
obra transmite a imagem de uma religião das letras, que difunde
a literatura e o hábito da leitura, assim como o respeito ao
saber científico e ao panteão da língua portuguesa.
É nos anos 30 e 40 que surge
a parte mais famosa das obras de Chico Xavier, inicialmente representada
pelo Parnaso de além-túmulo, pelos romances de Emmanuel
Há dois mil anos, Cinqüenta anos depois, Paulo e Estevão
, Renúncia, por Brasil coração do mundo, pátria
do evangelho, de Humberto de Campos e pelo best seller Nosso lar, de
André Luiz.
Chico atinge a notoriedade, não
só pela difusão de suas obras pela Federação
Espírita Brasileira, mas também pelo espanto causado quando
se soube que o "Parnaso" havia sido escrito por um "caixeirinho
de venda do interior", um "mineirinho pobre e inculto, que
mal havia terminado o primário", imagem que ele não
apenas nunca desmentiu, como sempre fez questão de reforçar.
O próprio incentivo de Manuel
Quintão, jornalista e prócere da FEB, no início
de sua carreira é significativo novo posicionamento do espiritismo
em direção às diversas classes médias urbanas.
Como Chico, Quintão é um ex-comerciário e autodidata,
tendo ascendido socialmente a partir de uma origem humilde. Assinando
o prefácio do Parnaso de além-túmulo, Quintão
salienta:
Quem é Francisco Cândido Xavier? Será um rapaz culto,
um bacharel formado, um rotulado desses que por aí vão
felicitando a Família, a Pátria e a Humanidade? Nada disso.
O médium polígrafo Xavier é um rapaz de 21 anos,
um quase adolescente, nascido ali, assim em Pedro Leopoldo, pequeno
rincão do estado de Minas Gerais. Filho de pais pobres, não
pôde ir além do curso primário, dessa pedagogia
incipiente e rotineira, que faz do mestre-escola, em tese, um galopim
eleitoral e não vai, também em tese, muito além
das quatro operações e da leitura corrida, com borrifos
de catecismo católico, de contrapeso.
Órfão de mãe aos
cinco anos, o pai infenso a literatices e, ao demais, premido pelo ganha-pão,
é bem de ver-se que não tinha, que não podia ter
o estímulo ambiente, nem uma problemática hereditariedade,
nem um, nem dez cireneus que o conduzissem por tortuosos e torturantes
labirintos de acesso aos altanados paços do Olimpo para o idílico
convívio de Calíope e de Polímnia. (prefácio,
apud Xavier, 1938: 18)
Em vista dessas afinidades, é
compreensível que Quintão tenha funcionado como padrinho
de Chico, juntamente com seu grande amigo Wantuil de Freitas, que foi
presidente da Federação Espírita Brasileira. Tratava-se
de uma fase em que se iniciavam as atividades da editora da FEB e a
caudalosa produção de Chico insere-se perfeitamente no
projeto de uma promoção mais agressiva do espiritismo
através do livro, que caracterizou a gestão de Guilhon
Ribeiro à presidência da entidade (28).
Compatibilizando-se com a cultura beletrista e
bacharelística das elites brasileiras nos anos 30, entende-se
o impacto causado por Parnaso de além-túmulo, em que dezenas
de poetas desencarnados escreveram pela pena do médium Chico
Xavier, passando a defender os ideais espíritas. Não é
casual a escolha da poesia como forma de expressão do médium.
Consagrada como um gênero literário de suma importância,
ser capaz de ler e declamar poesias fazia parte da formação
escolar e até de certos jogos de salão, a esta época
(29). Não raro os poetas, como
Olavo Bilac, eram celebrados e identificados com ideais nacionalistas.
Não é simples reconstituir o clima simultaneamente oral
e letrado dessas situações, mas com certeza há
uma relação entre a posse ornamental da capacidade de
declamação poética e o pertencimento às
elites letradas, o que dificilmente se encontraria na atualidade e que
contribuiu decisivamente para chamar a atenção dos literatos
da época para o espiritismo.
Em segundo lugar, a questão do
estilo tinha uma maior ressonância do que a mera comunicação
de conteúdos. A disputa em torno da interpretação
do fenômeno Chico Xavier jamais pôs em dúvida o seu
"dom", mas sim o seu significado: uns o tinham na conta de
realizador de pastiches, outros como médium extraordinário
(30). O debate travado, à época, que reuniu na imprensa
alguns críticos e literatos, atualizava uma curiosidade pública
sobre o espiritismo, cujas raízes datam da metade do século
XIX. Com o boom das mesas girantes (e na esteira das ênfases românticas
em experiências transcendentes), os homens de letras do Ocidente
sentiram-se atraídos por experiências místicas.
Não houve grande literato que não tivesse presenciado
ou comentado sessões espíritas, de Victor Hugo a Monteiro
Lobato (Lantier, 1971; Machado, 1983; Inglis,1992).
Nesse sentido Laplantine & Aubrée (1990) salientam as relações
do espiritismo francês e brasileiro através da reivindicação
de uma "herança cultural comum" em que, por exemplo,
o aparecimento de um Victor Hugo e de um Balzac nas psicografias não
são de forma alguma fenômenos inusitados, apenas atualizando
uma antiga e complexa relação com a cultura francesa.
A novidade do Parnaso de além-túmulo
era a plêiade de autores que compareciam na psicografia, muitos
oriundos do mais seleto clube da alta literatura de língua portuguesa,
como Casemiro de Abreu, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Augusto
dos Anjos, Cruz e Souza e Olavo Bilac. Em médiuns anteriores
a Chico Xavier, como Zilda Gama, são escritores célebres
do Velho Mundo que comparecem, tal como Victor Hugo, e a poesia não
tem tanta importância.
Essa concentração da obra psicográfica nos escritores
de língua portuguesa não tinha precedentes no espiritismo
brasileiro. Ao reunir poetas brasileiros e portugueses no Parnaso, Chico
compromete-se desde o início com uma nacionalização
das referências espirituais do kardecismo, incorporando um beletrismo
português e brasileiro no proselitismo espírita. Atingindo
a notoriedade na década de 1930, época de surgimento e
difusão da umbanda e de emergência de propostas políticas
de efetivação de uma identidade nacional, o movimento
espírita brasileiro encontra em Chico Xavier um médium
símbolo na implementação de uma nova proposta de
relação com a religiosidade e com a nação,
exposta em Brasil, coração do mundo, pátria do
Evangelho, pelo espírito de Humberto de Campos.
O livro atribuído ao espírito
de Humberto de Campos representa, juntamente com Nosso lar, um marco
na história do espiritismo brasileiro, sendo reconhecido como
uma das obras mais influentes a nortear a prática dos espíritas,
principalmente a partir do Pacto Áureo (o congresso de unificação
das federações espíritas, em 1949
(31)).
Neste livro há uma reflexão sobre a missão histórica
da implantação do espiritismo em solo tupiniquim, onde
emerge uma certa vocação brasileira triunfante no kardecismo,
e no qual a própria história da formação
desta nação passa a ser lida à luz de uma programação
no plano espiritual superior. Esgotadas as possibilidades das civilizações
européias regenerarem a humanidade, Cristo trava diálogo
com seu assistente Ismael, designando-a para a missão de transplantar
a árvore do Evangelho para o país do Cruzeiro, que será
a futura "Pátria do Evangelho". A história da
formação da nação confunde-se com os desígnios
da equipe espiritual de Ismael. Rio de Janeiro e Minas Gerais são
os grandes centros de irradiação da proposta evangélica
de brasilidade, combatendo os excessos indiáticos do Amazonas
e a influência platina no Sul (32).
O Brasil é celebrado por conseguir manter
a unidade territorial ao longo do tempo e não ter derramado sangue
nas grandes transformações históricas, coisa que
a civilização hispânica não conseguiu concretizar.
As características do povo brasileiro associam-se à idéia,
de grande circulação na época, do congraçamento
harmonioso das três raças num povo com tendências
pacíficas. Bondade, fraternidade e religiosidade são os
traços distintivos do povo brasileiro. Os principais personagens
da história nacional são encarnações de
"espíritos missionários", em cumprimento da
tarefa delegada pelo próprio Cristo a Ismael. Toda a seqüência
da narrativa conduz ao aparecimento do espiritismo, produzindo uma mito-história
espírita da nação e de sua responsabilidade no
"concerto dos povos", liderada pelos "espíritos
missionários". Já Tiradentes, ao morrer, resgata
a dívida cármica contraída por ter sido um cruel
inquisidor em vida anterior, tornando-se, no mesmo gesto, símbolo
da luta pela independência da nação. Assim, na visão
espírita a nação é construída paulatinamente
pela ação de espíritos missionários, ela
mesma um indivíduo coletivo dotado de um telos glorioso, cuja
origem remontaria a um plano do próprio Cristo.
Não é o caso de
se analisar a extensa obra de Chico Xavier, mas de detectar algumas
tendências gerais e articulá-las à trajetória
do médium e às transformações do público
leitor das obras espíritas. Em primeiro lugar, seu caráter
de intercessor privilegiado com o plano espiritual, especialmente no
domínio das letras, liga-se à formação de
um cânone ritual, literário e narrativo para o espiritismo
brasileiro. Este assume uma feição literária e
nacional tanto pelo Parnaso de além-túmulo quanto por
Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho,
e um decidido caráter cristão nos primeiros romances ditados
por Emmanuel. Mas é com a série André Luiz, iniciada
em Nosso lar , que Chico consolida uma proposta de articulação
entre as esferas religiosa e científica, em livros cujo cenário
privilegiado é o chamado "plano espiritual"
(33).
Novamente há uma fusão de valores
oriundos de uma matriz sincrônica mas que pretendem se realizar
no tempo como "evolução" e, por isso, ganham
necessariamente a forma de narrativas (34). Nosso
lar, ditado a Chico Xavier em 1943 pelo espírito André
Luiz, é um dos livros paradigmáticos do espiritismo brasileiro.
Espécie de romance de formação, nele é relatada
a experiência pós-morte do autor espiritual na colônia
"Nosso lar", situada acima da Terra. Ao narrar a sua experiência,
André Luiz detalha as crenças espíritas sobre a
substância do cotidiano no plano espiritual, aproveitando para
reafirmar a profissão de fé numa evolução
adquirida pelo aprendizado, pela caridade e pelo trabalho. O texto é
formado por uma série de capítulos curtos, com predomínio
de longos diálogos doutrinários sobre os valores espíritas,
apresentando uma forma de organização social num mundo
governado burocraticamente por ministérios, onde os habitantes
se dedicam a tarefas edificantes, atualizando uma espécie de
utopia de vida comunitária.
Do ponto de vista enunciativo, o texto
é narrado em primeira pessoa num foco onisciente e tom memorialista
em que a organização retrospectiva das vivências
do narrador é coroada de juízos morais sobre as situações
e as personagens. Senhor da situação, o narrador espiritual
insere em cada capítulo um metadiscurso teológico. Cada
episódio é interpretado de acordo com o referencial espírita,
num movimento espiralado de descobertas progressivas, rumo à
aquisição da cidadania plena na colônia "Nosso
lar". Ou seja, estamos diante de um romance doutrinário
em que o narrador, ou algum dos personagens, comenta os acontecimentos
através de um metatexto, longa dissertação doutrinária
inserida em cada capítulo, que funciona sempre ao modo de uma
lição ou ensinamento.
Reza a tradição
oral espírita que, em encarnação anterior, o espírito
André Luiz foi Oswaldo Cruz, médico sanitarista heróico
de fortes ideais republicanos. E, anteriormente, teria sido Estácio
de Sá, Capitão-mor e fundador do Rio de Janeiro, onde
se situava a capital federal e a sede da Federação Espírita
Brasileira, até a década de 1960. Como Emmanuel, André
Luiz também constitui sua identidade pelo recolhimento de traços
metonimicamente disseminados em encarnações anteriores,
no caso a partir de heróis nacionais. Também aqui o sincrônico
veste máscaras diacrônicas: Estácio de Sá,
pela bravura e espírito pioneiro, que combina a raiz portuguesa
com a origem da nacionalidade brasileira e Oswaldo Cruz, pelo espírito
público e pela fusão do ideal médico com o científico.
Todas essas características somam-se no personagem e autor André
Luiz, tido como o mais "científico", "jornalístico"
e "sociológico" dos espíritos que ditam mensagens
a Chico Xavier. A entrada em cena de André Luiz estabelece uma
divisão do trabalho espiritual com Emmanuel, este funcionando
como ponto de referência para questões doutrinárias
e aquele para as científicas, esclarecendo pontos polêmicos
sobre a vida após a morte, problemas experimentais da mediunidade
e da obsessão, assim como ministrando conselhos práticos
para o convívio intrafamiliar.
Ao formar um conjunto próprio de referências, o espiritismo
brasileiro autonomiza-se em relação a seus confrades franceses,
através de uma ampla base literária para estudo e citações
que colocavam o segmento ligado à FEB em companhias literárias
mais familiares ao público do que o polêmico francês
Jean-Baptiste Roustaing(35).
Um grande espectro de autores
espirituais manifestou-se na pena mediúnica de Chico Xavier.
Após a colaboração com Waldo Vieira, em que os
livros de André Luiz passam por um período de complexificação
extrema na linguagem, ganha força a publicação
de "livros de mensagens", a partir dos anos 60. Trata-se de
cartas psicográficas a familiares que consultavam o médium
em Uberaba. As temáticas do sexo livre, da juventude e das drogas
passam a ter destaque em seus escritos e a linguagem fica mais leve
e direta, com parágrafos mais curtos e sintéticos. Acompanhado
o espírito de reestruturação editorial por que
passou a indústria do livro (36),
a partir dos anos 70, especialmente com Jovens no além (1975)
e Somos seis (1976), a linguagem dos escritos assinados pela mediunidade
de Chico modifica-se na direção dos novos padrões
do público, tão ávido por concisão quanto
curioso pelas respostas do médium às questões surgidas
nos anos 60] (37).
Findo o período mais erudito e orgânico
de implantação de um espiritismo sincrético, a
mudança na orientação editorial em Chico Xavier
indicará um privilégio da vertente mais popularizante
em suas psicografias. Desse modo, pavimentava-se o caminho para a modernização
da linguagem dos textos espíritas, em direção ao
estilo que aparecerá nos livros assinados, por exemplo, pelas
médiuns Zibia Gasparetto e Vera Lúcia de Carvalho. Essas
mudanças antecipavam uma pluralização nos modos
de ser e de participar do espiritismo, inspiradas no médium de
Pedro Leopoldo: mais voltado a públicos maiores, menos científico,
mais "evangélico" e simplificado em sua linguagem,
mais aberto em sua referência aos santos católicos e à
figura de Maria. Com Chico Xavier, o espiritismo atinge uma espécie
de ápice de uma vocação mediadora, centrado na
preeminência carismática dos médiuns e dos espíritos.
Ademais, Chico Xavier contribuiu para
criar um núcleo espírita de valores na sociedade nacional,
fortemente enraizado em religiosidades vividas no Brasil. Tudo indica
que esta fase heróica de popularização de um espiritismo
sincrético religioso-cívico, centrada no carisma do médium
de Pedro Leopoldo, esteja sendo substituída pelas atuais tendências
de privatização da experiência religiosa, que remetem
à pluralização das matrizes de produção
de significado para a religiosidade, em que se introduz a influência
da Nova Era, da auto-ajuda, do individualismo reflexivista com ênfase
no self e no qual se difundem uma infinidade de romances mediúnicos,
ligados ou não ao movimento espírita organizado. Ora isto
nos remete à formação de novas modalidades de ser
e de pertencer à cultura espírita, especialmente relacionada
a um público que lê livros espíritas, mas se identifica
só parcialmente com a participação em atividades
de centros espíritas.
Conclusão: as sínteses do mito
Chico Xavier
A biografia e obra de Chico Xavier
são paradigmáticas dos caminhos e dilemas que o espiritismo
percorre em sua relação com a sociedade brasileira no
século XX. Religião letrada e racionalista, ela principia
por ser adotada pelos segmentos de elite do Brasil pré-republicano.
Ainda que alguns de seus pioneiros tenham participado de causas progressistas
como o abolicionismo, o espiritismo se populariza não pelo heroísmo
ou pelo profetismo de seus pioneiros, mas sim através da oferta
de serviços de cura (o chamado "receitismo
mediúnico", cf. Damazio, 1994 e Giumbelli, 1997)
passando, após, por movimentos de fragmentação
interna e concorrência com outras religiões mediúnicas,
especialmente a partir dos anos 20, como aconteceu em sua relação
com a umbanda (38).
Leigo e anticlerical, o espiritismo
kardecista sofre transformações no século XX, absorvendo
tendências que pareciam correr em leitos ideológicos, culturais
e políticos distintos: uma cultura letrada erudita de um pequeno
e nunca inteiramente autônomo campo intelectual, cultivada na
crítica literária dos jornais, na Academia Brasileira
de Letras e nos colégios da República Velha
(39); um certo modernismo cientificista,
meritocrático e nacionalista, que absorvia com um pesado viés
militarista o humanismo racionalista do kardecismo e que extravasava
suas conseqüências para uma composição com
outros segmentos sociais, através da extensão desse modelo
pelo corporativismo profissional, que incluía profissões
ligadas a um projeto de nação, como a educação
e a medicina.
A composição entre determinismo
e livre-arbítrio, base da noção de pessoa espírita
(Cavalcanti, 1983), pouco espaço
ensejou para a autonomia individual como princípio ético
e valor religioso, restringida que estava pelos dispositivos doutrinários
e rituais no espiritismo brasileiro de boa parte do século XX.
Tratava-se, ali, de uma concepção minimalista de indivíduo,
não apenas vinculado sincronicamente a espíritos e homens
mas também a leis, regulamentos, estatutos e graus de evolução
e, é claro, a uma noção cármica de justiça,
no interior do que denominei de "sistema da dívida".
Havia certamente uma exacerbação da racionalidade no espiritismo,
mas não a racionalidade individualista, liberal e psicologizante
mas outra, ligada a uma vertente organizada da sociedade brasileira,
mais conservadora, cujas bases sociais eram as camadas médias
urbanas da população, de onde saíam os funcionários
públicos, professores de escola, advogados, militares e médicos,
profissões de tradicional expressão no espiritismo. Diferente
de certas tendências psicologizantes e new age de parte das camadas
médias urbanas da atualidade, uma das fontes do espiritismo de
Chico Xavier, dos anos 40 aos anos 70, enraiza-se numa estrutura religiosa
formalmente federativa e doutrinariamente ligada a uma visão
corporativista de mundo social, próxima, portanto, do pensamento
conservador que circulava na sociedade brasileira da primeira metade
do século XX.
Ora, se essa concepção religiosa
podia ser muito sedutora para setores organizados das camadas médias
brasileiras ou mesmo da elite letrada, durante a primeira metade do
século XX, ela ainda pouco ecoava entre pessoas que vivenciavam
uma religiosidade popular, tão forte junto às faixas sociais
subalternas da população, em boa parte marcada pelo catolicismo,
pela benzeção e pelos cultos afro-brasileiros e que não
dispunha de recursos culturais e simbólicos que lhe permitissem
criar uma identidade espírita, mesmo que dela fizessem uso como
recurso de cura. É justamente nesses setores sociais que o modelo
de espiritismo de Chico Xavier alcançará um sucesso sem
precedentes, não obstante a inegável liderança
dos segmentos intelectualizados.
Essa dureza racionalista na concepção
espírita de Chico Xavier - de resto vinculada à concepção
cármica de justiça - é compensada pela força
de sua composição com as crenças e práticas
oriundas de um catolicismo familiar, de culto aos santos e à
figura de Maria, transformadas através da moeda comum do circuito
da intercessão e da graça, da relação personalizada
com Jesus e com benfeitores espirituais, tudo isto numa construção
eminentemente sincrética, ainda que nunca reflexivamente enunciada.
A relação do espiritismo
de Chico Xavier com projetos de organização social e de
identidade nacional é basicamente datada, circunscrita a conjunturas
históricas específicas do Brasil antes e depois da Segunda
Guerra Mundial, quando ocorre uma série de transformações
sociais sem precedentes em termos de urbanização, industrialização
e padrões da sociabilidade, incluindo-se o degelo da autoridade
religiosa, fundada no antigo primado da Igreja Católica sobre
a identificação da nacionalidade. Se o caminho pavimenta-se
no sentido da pluralização das modalidades de crer e participar
das religiões, o modelo de Chico Xavier ofereceu uma alternativa
religiosa de pertencimento à sociedade brasileira com uma plena
identificação com símbolos laicos de ordem, como
a nação, bem como com estratégias de prestígio
e distinção ligadas à posse de um capital cultural
que valorizava a leitura, o estudo, a erudição e a ciência,
de indiscutível valor no mundo contemporâneo. Ele viabilizou
ao participante viver a integridade de uma relação com
um ethos religioso tradicional pleno de hierarquias, mediações
e súplicas a santos, mas também de se sentir participando
do mundo da "alta cultura", dos saberes escolares, da erudição
e dos conhecimentos científicos, ou seja, de tudo aquilo que
goza da reputação social conferida pela cultura letrada.
Ora, é a dimensão de Chico Xavier como santo, letrado
e informal, mas também caracterizado como "homem coração",
que promete realizar uma série de sínteses que foram fundamentais
para a implementação do espiritismo no Brasil do século
XX. Em DaMatta (1979) a dimensão simbólica do coração
é associada ao improviso do malandro, própria à
vertente carnavalesca da sociedade brasileira. Em Chico Xavier o coração
tem a conotação homóloga de um englobamento hierárquico
da razão, mas sob a influência de um código religioso,
indicando uma irrestrita abertura para o Outro, encarado basicamente
como um "irmão". Ou seja, trata-se de uma alternativa
religiosa à carnavalização, por meio de um estilo
communitas ou fraternal de ultrapassar diferenças sociais e individuais
sem inversão de ordem. Recusando a vertente carnavalesca na cultura
brasileira e não havendo espaço para a criação
de uma nova alternativa mediadora, o modelo de Chico Xavier sofrerá
uma permanente oscilação entre os paradigmas culturais
do "santo renunciante" e do "caxias", assim como
o espiritismo oscila entre religião e ciência, entre o
religioso e o secular e entre fato e ficção em sua literatura.
O ethos hierárquico, fundado na face "religiosa" da
doutrina - pois a parte "filosófica" e "científica"
nunca aboliu a verve deslegitimadora da razão crítica
-, transita em Chico Xavier entre uma hierarquia relacional ligada à
dádiva e outra, do mérito, ancorada na noção
de justiça cármica. Trata-se, assim, de tentativas de
composição religiosa e ética que expressem dilemas
que não são apenas do espiritismo kardecista, mas da ordem
da sociedade e da cultura brasileira no século XX.
Como racionalizar o mundo, como pregar
a igualdade de todos, como ser moderno sem afrontar as hierarquias estabelecidas,
de tão largas raízes no Brasil? Através da combinação
de um ideal cívico de religião, combinando a ordem secular
com a ordem transcendente, que não implicasse numa exacerbação
da verve crítica ou atomizadora do individualismo moderno. Da
mesma maneira que criou modelos de pessoa e de cidadão, a literatura
de Chico Xavier formatou aos leitores o convívio interpessoal
e institucional no chamado mundo espiritual. Ou seja, ao mesmo tempo
em que reintegrou o secular num modelo religioso, contribuiu para dessacralizar
o além.
Como ser moderno, letrado, científico
e laico sem ser ateu, indiferente à caridade, "subversivo"
e desprovido de valores? Como ser cristão sem ser católico
num país sem uma massiva tradição protestante?
Não apenas pregando as concepções de carma e de
reencarnação como indistinção da ordem natural
e da ordem sagrada, mas também conciliando alguns dos modelos
modernos de autoridade e poder, como a encarnada pela burocracia, com
a tradicional devoção aos mediadores, que trilham atalhos
e personalizam a rigidez dos formalismos do mundo legal brasileiro,
este transposto à condição de ordem transcendente
no espiritismo, como se vê em Nosso lar. Conciliar o sistema relacional
da dádiva com o sistema cármico da dívida, o país
tradicional com o moderno, a hierarquia com a igualdade (ainda que sem
o individualismo liberal), a tradição familiar e o corporativismo,
a linguagem dos espíritos com o culto aos santos, o letramento
com a humildade, o coração e a razão, eis as promessas
de síntese embutidas no modelo mítico de santidade de
Chico Xavier.
Notas
1-
Este artigo baseia-se em capítulo de minha tese de doutorado
(Lewgoy, 2000). Agradeço a Paula Montero, orientadora, Otávio
Velho, Nádia Farage, Maria Lúcia Montes e José
Guilherme Magnani, membros da banca examinadora, de quem aproveitei
parcialmente as sugestões.
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2
- "Testemunhos" nos dois sentidos, provas candentes de fé
e depoimento em que supostamente o fato engloba a ficção.
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3
- A idéia de uma cultura "católico-brasileira"
foi desenvolvida por Pierre Sanchis (1994). É também neste
autor que vou me basear ao falar de sincretismo, especialmente quando
ele propõe a dessubstantivação deste conceito,
inspirada na discussão de Lévi-Strauss sobre o totemismo
(Sanchis, 1994). Para Sanchis, o sincretismo é uma tendência
conceitual abstrata do pensamento humano, resultante da influência
que costumes, sistemas simbólicos e estruturas do pensamento
alheias exercem sobre os seus vizinhos. A implantação
social do espiritismo no Brasil não é alheia a esse fenômeno,
mas não há um reconhecimento explícito da influência
católica, a não ser da parte de críticos e dissidentes
do movimento espírita. Ora, o fenômeno Chico Xavier mostra-nos
que o espiritismo kardecista está longe de ser apenas uma tendência
européia, branca e de classe média ou uma mera matriz
de religiosidades vividas em nosso país. Ao contrário,
a dominante cultura católica brasileira impregnou os diferentes
espaços sociais, tradições e atores que vivenciam
o espiritismo no cotidiano das grandes cidades brasileiras, operando-se
de uma síntese original de catolicismo e de kardecismo, que ganha
uma definitiva referência nacional na vida e na obra do médium
mineiro.
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4
- Falo aqui de uma "interautoria", na qual os leitores de
livros espíritas identificam uma colaboração entre
espírito e médium como uma indissociável unidade,
especialmente quando se trata de um médium de grande carisma,
como Chico Xavier, mesmo reconhecendo-se a divisão do trabalho
psicográfico e a despeito das inúmeras nuanças
e pesos diferenciados de um e de outro no trabalho final. Ou seja, mesmo
sendo psicógrafo, idealmente desempenhando um papel meramente
instrumental, Chico é lido por seu público como imprimindo
uma espécie de marca de autoridade difusa no texto, sem entretanto
poder-se sustentar uma "co-autoria", como idêntica responsabilidade
intelectual pela mensagem. A interautoria espírita ¾ bem
entendido, não se trata de uma categoria nativa, mas do antropólogo
¾ pressupõe um composto de autoridade religiosa e autoria
pelos espíritos. Reconhecendo a grande complexidade do tema,
tratei-o em minha tese de doutorado (Lewgoy, 2000).
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5
- Os livros de Ramiro Gama e de R. A. Ranieri aproximam-se de modos
populares e orais de contar casos, com intervalos descontínuos
entre as pequenas narrativas, enquanto os de Marcel Souto Maior e Ubiratan
Machado aproximam-se do gênero biográfico. Suely Schübert
teve acesso às cartas pessoais de Chico a companheiros da Federação
Espírita Brasileira, especialmente às trocadas com Wantuil
de Freitas, com quem se correspondeu intensamente durante a década
de 1940. Seu estilo é mais sóbrio do que dos outros autores,
destacando mais aspectos íntimos da personalidade de Chico do
que feitos mediúnicos, sem no entanto destoar do padrão
mitologizante geral encontrado nas narrativas. A despeito das compreensíveis
objeções de Chico e do movimento espírita ao livro
de R. A. Ranieri (s. d.), Chico Xavier: um santo para nossos dias, ele
expressa toda a ambivalência da relação desta religião
com o catolicismo, da qual retira a gramática simbólica
e os valores subjacentes ao modelo de santidade atualizado por sua imagem
e mito.
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6
- Souto Maior relata uma tentativa de "linchamento pelos espíritos"
assim como o episódio dos espíritos de moças nuas
tentando o médium em sua banheira. Ora ambos os episódios
contêm a articulação narrativa da prova —
comum em histórias de santidade.
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7
- A devoção doméstica e o papel familiar e religioso
da mãe são objeto de um sem número de orientações
psicográficas do mentor Emmanuel, assim como de outros espíritos,
como o de Meimei, em capítulo sobre o dia das mães em
Evangelho em casa (1959), ou de André Luiz, no romance Libertação
(1949), em que a relação entre mãe e filho tem
um papel central no desenrolar da trama.
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8
- Essas catálises, como na discussão de Barthes (1971),
implicam a abertura da fabulação mítica para incluir
um sem-número de histórias e revelações
em pontos pouco explorados da biografia de Chico. Por exemplo, a relação
com a madrinha obsidiada pode ser considerada uma provação
expiatória, resultante de uma relação prévia
em outras vidas, etc.
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9
- Para a influência dos códigos morais mediterrâneos
no Brasil bem como sobre o lugar estrutural da categoria mãe
na sociedade brasileira estou me baseando em Tarlei de Aragão
(1983).
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10
- Sobre as tensões entre o espiritismo e as autoridades leigas
no início do século XX, ver Giumbelli (1997).
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11
- No culto do Evangelho no lar, o espiritismo é praticado como
uma religião familiar, com preces e comentários de livros
espíritas. Essa prática religiosa, que enfatiza a unidade
familiar, é simultaneamente popular e polêmica no meio
espírita. Há espíritas, por exemplo, que denunciam
o caráter católico da prática, embutido na categoria
culto.
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12
- É interessante que não se produz aqui uma conexão
anterior dos parentes de Chico em vidas passadas como em sua relação
com Emmanuel, de quem teria sido a filha mártir, durante o Império
Romano. Trata-se, como boato, de uma dinâmica oral, agonística
e situacional, nos termos de Walter Ong (1982).
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13
- Sobre as tendências católicas à censura de leituras,
há o trabalho de Aparecida Paiva (1997).
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14
- Saliento que esta atitude não surge com Chico, mas já
estava presente com os chamados "místicos", desde Bezerra
de Menezes e a ascensão do "rustanguismo", um espiritismo
influenciado pelo catolicismo na Federação Espírita
Brasileira (Santos, 1997).
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15
- "Baixo-espiritismo" na acepção espírita,
ainda que Chico sempre tenha se referido respeitosamente a umbanda como
simplesmente diferente, o fato é que nem pretos velhos, nem exus
ou outros espíritos ligados a divindades africanas, comparecem
em suas histórias.
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16
- Como se vê, há uma inspiração maussiana
nessa fórmula, de caráter metafórico e na qual
pretendo condensar os princípios que norteiam a ação
simbólica de Chico Xavier no mundo.
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17
- Para uma conceituação de "carma" no sentido
mais racionalizante ver Cavalcanti (1983). Em Chico Xavier o carma é
manipulável e composto com a possibilidade da graça, como
faço alusão a seguir.
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18
- Dessa forma, Chico tem uma relação de caxias com a ordem,
é formal e discursivo, passivo e legalista. Em qualquer dos casos,
sua posição é sempre de subordinado, aos espíritos
e aos homens.
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19
- Nas recomendações espíritas o carnaval, como
as festas e os prazeres em geral, deve ser vivido com moderação.
Como resultado, entre os espíritas praticantes, há aqueles
que se retiram durante o carnaval e outros que dele participam.
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20
- Essa atualização de uma tensão entre um humano,
que considera seriamente a opção de dedicar-se aos negócios
privados, e um plano espiritual divino, que lhe atribui uma missão,
ganha um decisivo espaço no mundo do moderno individualismo.
A esse respeito, o instigante ensaio "Jesus Cristo na literatura",
de André Dabezies (1998), discute as apropriações
literárias da figura de Jesus ao longo dos tempos. É com
o romantismo e a crítica bíblica, ou seja, nos séculos
XVIII e XIX, que o destaque à "divindade" de Jesus
começa a sofrer questionamentos e nuanças em prol da sua
"humanidade", ainda que um vínculo pessoal e próximo
com o "mestre" fosse um tema medieval muito tradicional. Creio
que no caso de Chico Xavier, essa atração do individualismo
é apenas um recurso de verossimilhança a elevar o valor
de sua santidade e não propriamente uma fonte de tensão.
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21
- Comuns nos anos 30, esses posicionamentos ecoarão nos mais
diversos setores, desde militares até clérigos e intelectuais
da Igreja Católica, como mostra o seguinte texto de revista eclesiástica
da época: "Enquanto indivíduo, o homem deve obediência
ao Estado ; enquanto pessoa sujeita-se aos princípios morais
ditados pela Igreja". (Editorial de A ordem, ano XIII, n. 26, abr.
de 1932: p. 242, apud Sadek., 1977: 98). Há também semelhanças
com o corporativismo de Oliveira Viana, crítico tanto do individualismo
quanto da efervescência pregada pelos totalitários (como
Plínio Salgado) e entusiasta de uma concepção orgânica
de Estado: "O conceito chave [de Viana] era o de pessoa, tirado
da tradição católica. A pessoa é o indivíduo
inserido numa rede de relações, um indivíduo que
mantém sua identidade, que deve ter seus direitos respeitados".
(Carvalho, 1998: 225)
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22
- Sobre a questão do "baixo espiritismo" e sua relação
com a implantação social do espiritismo, ver Giumbelli
(1997).
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23
- Estou entendendo estadania no sentido de Carvalho (1998), como a impossibilidade
de realização da cidadania fora de uma ordem que sujeita
o indivíduo antes ao Estado do que à sua consciência.
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24
- No sistema simbólico em questão temos um conjunto homólogo
de oposições instaurado pela oposição abstrata
"alto" x "baixo": espíritos superiores: espíritos
inferiores :: espírito:matéria :: alto:baixo :: sutil
:denso :: Plano Espiritual: Plano Terreno, logo os espíritos
desencarnados estão numa posição materializada
e densa, próxima à situação dos homens,
de onde se explica o seu comportamento "baixo".
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25
- Em minha pesquisa, ouvi de alguns interlocutores espíritas
restrições à prática da doação
material. Para eles, uma necessidade material pode ser uma provação
necessária e a caridade, neste caso, estaria mais no esclarecimento
espiritual do que na ajuda material.
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26 - Deve-se evitar a
tentação de fazer esta oposição equivaler
à concepção saussuriana do signo, que pressupõe
a unidade indissociável de significante e significado. Desde
o Livro dos espíritos, Allan Kardec assume uma espécie
de platonismo, que valoriza o conteúdo em detrimento da forma
tanto em arte (na qual o conteúdo moral é superior, mais
verdadeiro e mais belo em face da apresentação formal)
como na linguagem, em que o "pensamento" é distinto
da linguagem. Só os espíritos "menos evoluídos"
a utilizam e a tendência do progresso evolutivo implica a eliminação
da necessidade da articulação verbal, da linguagem utilizada
por espíritos menos evoluídos, em benefício do
pensamento. É óbvio que a oposição hierárquica
entre espírito x matéria está replicada na oposição
entre pensamento e linguagem.
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27
- Não pretendo esgotar a discussão de um tema tão
amplo e complexo quanto o politicamente correto num pequeno texto. Há
uma boa discussão do assunto em Ribeiro (2000).
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28
- Sobre a gestão de Guilhon Ribeiro à presidência
da FEB, ver Giumbelli (1997).
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29
- Sobre a cultura brasileira ser tradicionalmente mais oral do que letrada,
ver Cândido (2000).
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30
- Sobre a polêmica ensejada pelo caso Humberto de Campos, ver
Timponi (1984) e Bertolli Silva (1997).
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31
- Sobre o pacto áureo, ver Aubrée & Laplantine (1990)
e Santos (1997).
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32
- Interessante como Chico Xavier foi recebido com reservas por espíritas
gaúchos, à mesma época, conforme relata Sueli Schubert.
No espiritismo, esses conteúdos são quase sempre sintomáticos
de disputas entre grupos, com apelo a referências espirituais
como fontes de autoridade na condução da disputa.
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33
- A categoria "plano espiritual" é fundamental no espiritismo.
Trata-se de um termo polissêmico, que designa o lugar onde habitam
os espíritos e um conjunto de valores que orientam as suas ações,
simultaneamente um parâmetro de seu ethos e um projeto para o
mundo.
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34
- Paul Ricoeur (1995) sustenta que a narrativa é uma forma de
inovação através da linguagem, em que há
um "agenciamento de elementos heterogêneos através
do tempo". O discurso narrativo, no caso do espiritismo, dá
concreção e didática a uma doutrina fortemente
abstrata, mas a ela coaduna-se em vista da crença no carma (ou
"lei de causa e efeito", no kardecismo) no qual toda a ação
tem conseqüências no tempo, exatamente um dos princípios
da narrativa em geral.
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35
- Os quatro evangelhos, psicografados por Jean-Baptiste Roustaing, um
contemporâneo de Kardec, pretendiam apresentar uma nova versão
dos Evangelhos e, desde então, tem sido um objeto de polêmica
entre os espíritas brasileiros.
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36
- Para um estudo sobre as mudanças no público e no mercado
editorial brasileiro a partir dos anos 60, ver o trabalho de Sandra
Reimão (1996).
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37
- Sem pretender extrair conclusões taxativas da evolução
cronológica, pode-se arriscar a hipótese de que essas
transformações sinalizam uma nova relação
do espiritismo com o seu público leitor, especialmente na época
do desenvolvimentismo econômico, entre os anos 40 e os 60, quando
se expandem os setores sociais médios da população.
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38
- Para o caso da umbanda, ver Ortiz (1991).
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39
- Sobre a formação do campo intelectual no Brasil centrado
na literatura, ver Cândido (2000), Castro Rocha (1998) e Miceli
(1979).
voltar
Bibliografia
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BARTHES, R.1971 "Introdução
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Vozes.
BERTOLLI SILVA, C.1997 "O quase
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crítica literária brasileira", in Gêneros de
fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário,
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2007 Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP
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Leiam de Bernardo Lewgoy:
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Chico Xavier e a cultura brasileira
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Os Espíritas e as Letras: um estudo antropológico sobre Cultura
Escrita e Oralidade no Espiritismo Kardecista
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Espiritismo, religião do meio
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Etnografia da leitura num grupo de estudos espírita
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O Livro religioso no Brasil recente : uma reflexão sobre as estratégias
editoriais de espíritas e evangélicos
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O mal à moda espírita: estruturas narrativas da desobsessão
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Representações de ciência e religião no espiritismo
kardecista: Antigas e novas configurações
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A transnacionalização do espiritismo kardecista brasileiro: uma
discussão inicial
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Uma religião em trânsito: o papel das lideranças brasileiras
na formação de redes espíritas transnacionais
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