
Há necessidade de se trabalhar
não apenas em nível cognitivo, mas com os valores e
sentimentos
O inolvidável Wallace Leal
V. Rodrigues publicou em 1975 a portentosa obra A esquina de pedra.
Fundamenta-se em textos de Job, dos Salmos e de Isaías, respectivamente,
sobre a “pedra de esquina”, “a cabeça da
esquina” e a “pedra preciosa de esquina”. Passa
por Atos: “Esta é a pedra que foi rejeitada por vós,
os edificadores, a qual foi posta por cabeça de esquina”
(Atos, 4,11) e focaliza Pedro: “É uma pedra de tropeço
e rocha de escândalo, para aqueles que tropeçam na palavra,
sendo desobedientes; para o que também foram destinados”
(I Pedro, 2:6-8).
O autor romanceia ou se recorda de
fatos que se passam no período do imperador Constantino, focalizando
momentos em que ocorreram as descaracterizações do Cristianismo
primitivo e puro, época de muitos sacrifícios de cristãos
e tendo como pano de fundo a benquerença do romano Prisco e
da cristã Galla, em Sebastes, na região da Capadócia.
Depois de muitas enxertias na prática rotineira dos cultos,
“uma divergência ameaça dividir a igreja [...]
a questão é esta: devemos considerar Jesus Cristo como
um Deus que assumiu forma humana ou simplesmente como um homem que
atingiu uma perfeição quase divina?”(1).
Estavam às vésperas do Concílio de Niceia: “Verás
o Cristianismo desaparecer e ceder lugar a uma nova doutrina à
qual denominarão Catolicismo” [...] Mas um dia o Cristianismo
se erguerá das cinzas”(2).
Passados séculos, vivemos o momento do “reerguimento
das cinzas”. A marcante Codificação Espírita
e obras clássicas marcaram presença, bem como exemplos
de dedicação e de renúncia de lidadores de um
autêntico “exército de formiguinhas”. O Movimento
Espírita brasileiro cresceu, mas ao mesmo tempo está
cheio de ideias e ações personalistas e que representam
um grande potencial para desfigurar a proposta essencial da Doutrina
Espírita, calcada no ensino moral do Cristo.
Evidentemente que tudo tem seu momento
e dosagem. Os cursos foram e são necessários, mas é
notório um excesso de “escolarização”,
de requisitos e de pré-requisitos. O potencial trabalhador
tem dificuldade de integrar-se com espontaneidade nos centros espíritas.
A própria mediunidade está “engessada” e
há espíritas e centros que nem contam com a atuação
de médiuns porque estes se tornaram quase “especializados”
e raros. Se somar a quantidade de anos desde os momentos iniciais
dos ciclos de infância e juventude, até os demais cursos,
ultrapassa-se o tempo de formação de um profissional
de nível superior. É hora de fazer um reestudo sensato
e sério de todo o processo.
Numa série de quatro seminários
intitulados “Educação & Atividades Espíritas”,
realizados na FEB em 2014 e no início de 2015, concluiu-se
que há necessidade de algumas mudanças que possam levar
a transformações, como: “criar espaços
interativos e dialógicos nos encontros de aprendizagem (mais
conversa, menos exposição; os participantes têm
muito com que contribuir); organizar espaços de aprendizagem
atrativos e diversificados (jardins, excursões, visitas culturais
e assistenciais); promover mais momentos informais de confraternização;
conhecer o perfil do grupo e considerá-lo na escolha de abordagens
didático-pedagógicas, as quais devem ser criativas e
diversas; desenvolver acolhimento e zelo nas relações
interpessoais; abordar o conhecimento doutrinário como apoio
à transformação moral e social e não como
um fim em si mesmo; considerar os saberes anteriores e atuais dos
participantes no desenvolvimento do conteúdo; desenvolver acolhimento
e zelo nas relações interpessoais; abordar o conhecimento
doutrinário como apoio à transformação
moral e social e não como um fim em si mesmo; considerar os
saberes anteriores e atuais dos participantes no desenvolvimento do
conteúdo; trabalhar com problemas e não somente com
temas”(3).
Ou seja, há necessidade de se trabalhar
não apenas em nível cognitivo, mas com os valores e
sentimentos.
Por outro lado, há uma exagerada
comercialização dos chamados “produtos espíritas”,
como os livros, e muitas instituições perdendo o caráter
espírita, inclusive no texto do estatuto, para manterem convênios
com governos.
É chegado o momento de realizar
estudos e profundas reflexões sobre o Movimento Espírita:
O que pretendemos? Para onde vamos?
Valores como os da simplicidade, fraternidade
e solidariedade legítimos andam pouco valorizados. Nos centros
espíritas, como anda o atendimento espiritual dos que chegam,
como o acolhimento, consolo, esclarecimento e orientação?
Entre as importantes Obras Básicas
de Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo é
utilizado para estudos e reflexões, com vistas à internalização
e roteiro de vida ou simplesmente empregado como “leitura preparatória”
de reuniões ou temas de algumas palestras?
Vivemos a época do “Consolador Prometido”
pelo Cristo e será que não estaríamos correndo
o risco de que o “Cristianismo que se erguerá das cinzas”
se comprometerá como uma “uma pedra de tropeço
e rocha de escândalo”?
Interessante é que, na história,
há registro do ex-doutor Saulo de Tarso, que ao visitar a Casa
do Caminho após sua conversão sentiu-se “torturado
pela influência judaizante. Tiago dava a impressão de
reingresso, na maioria dos ouvintes, nos regulamentos farisaicos.
Suas preleções fugiam ao padrão de liberdade
e do amor em Jesus Cristo”(4) e
optou em deixar a tradicional e pioneira eclésia de Jerusalém,
iniciando sua grande tarefa de divulgador do Evangelho. Quase dois
milênios depois, Chico Xavier optou em deixar a Comunhão
Espírita Cristã, de Uberaba, da qual foi um dos fundadores,
e deu início a um novo e simples ponto de referência:
o Grupo Espírita da Prece, de Uberaba.
Em nossos dias, são muito necessárias profundas reflexões
e análises sobre os rumos do Movimento Espírita, sendo
sugestivas as ilustrações da “esquina de pedra”,
o rompimento com o farisaísmo feito por Paulo e a opção
pela simplicidade de Chico Xavier.
1. RODRIGUES, Wallace Leal V. A esquina
de pedra. 9. ed., Cap. XIII. Matão: Ed. O Clarim, 2009. p. 139.
2. RODRIGUES, Wallace Leal V. A esquina de pedra. 9.
ed., Cap. XXIX. Matão: Ed. O Clarim, 2009, p.399.
3. http://www.febnet.org.br/blog/geral/noticias/material-do-seminario-educacao-atividades-espiritas/
(acesso em 23/03/2015).
4. XAVIER, Francisco Cândido. Pelo espírito
Emmanuel. Paulo e Estêvão. 1. ed.esp. 2ª. parte, cap.
III, Brasília: FEB, 2012, 257.
- publicado originalmente em Publicado
na RIE- Revista Internacional de Espiritismo, Matão, SP. Maio/2015
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