Espiritualidade e Sociedade



Antonio Cesar Perri de Carvalho

>   A nova “esquina de pedra”

Artigos, teses e publicações

Antonio Cesar Perri de Carvalho
>    A nova “esquina de pedra”

 


Há necessidade de se trabalhar não apenas em nível cognitivo, mas com os valores e sentimentos

 

 

O inolvidável Wallace Leal V. Rodrigues publicou em 1975 a portentosa obra A esquina de pedra. Fundamenta-se em textos de Job, dos Salmos e de Isaías, respectivamente, sobre a “pedra de esquina”, “a cabeça da esquina” e a “pedra preciosa de esquina”. Passa por Atos: “Esta é a pedra que foi rejeitada por vós, os edificadores, a qual foi posta por cabeça de esquina” (Atos, 4,11) e focaliza Pedro: “É uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, para aqueles que tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados” (I Pedro, 2:6-8).

O autor romanceia ou se recorda de fatos que se passam no período do imperador Constantino, focalizando momentos em que ocorreram as descaracterizações do Cristianismo primitivo e puro, época de muitos sacrifícios de cristãos e tendo como pano de fundo a benquerença do romano Prisco e da cristã Galla, em Sebastes, na região da Capadócia. Depois de muitas enxertias na prática rotineira dos cultos, “uma divergência ameaça dividir a igreja [...] a questão é esta: devemos considerar Jesus Cristo como um Deus que assumiu forma humana ou simplesmente como um homem que atingiu uma perfeição quase divina?”(1). Estavam às vésperas do Concílio de Niceia: “Verás o Cristianismo desaparecer e ceder lugar a uma nova doutrina à qual denominarão Catolicismo” [...] Mas um dia o Cristianismo se erguerá das cinzas”(2).

Passados séculos, vivemos o momento do “reerguimento das cinzas”. A marcante Codificação Espírita e obras clássicas marcaram presença, bem como exemplos de dedicação e de renúncia de lidadores de um autêntico “exército de formiguinhas”. O Movimento Espírita brasileiro cresceu, mas ao mesmo tempo está cheio de ideias e ações personalistas e que representam um grande potencial para desfigurar a proposta essencial da Doutrina Espírita, calcada no ensino moral do Cristo.

Evidentemente que tudo tem seu momento e dosagem. Os cursos foram e são necessários, mas é notório um excesso de “escolarização”, de requisitos e de pré-requisitos. O potencial trabalhador tem dificuldade de integrar-se com espontaneidade nos centros espíritas. A própria mediunidade está “engessada” e há espíritas e centros que nem contam com a atuação de médiuns porque estes se tornaram quase “especializados” e raros. Se somar a quantidade de anos desde os momentos iniciais dos ciclos de infância e juventude, até os demais cursos, ultrapassa-se o tempo de formação de um profissional de nível superior. É hora de fazer um reestudo sensato e sério de todo o processo.

Numa série de quatro seminários intitulados “Educação & Atividades Espíritas”, realizados na FEB em 2014 e no início de 2015, concluiu-se que há necessidade de algumas mudanças que possam levar a transformações, como: “criar espaços interativos e dialógicos nos encontros de aprendizagem (mais conversa, menos exposição; os participantes têm muito com que contribuir); organizar espaços de aprendizagem atrativos e diversificados (jardins, excursões, visitas culturais e assistenciais); promover mais momentos informais de confraternização; conhecer o perfil do grupo e considerá-lo na escolha de abordagens didático-pedagógicas, as quais devem ser criativas e diversas; desenvolver acolhimento e zelo nas relações interpessoais; abordar o conhecimento doutrinário como apoio à transformação moral e social e não como um fim em si mesmo; considerar os saberes anteriores e atuais dos participantes no desenvolvimento do conteúdo; desenvolver acolhimento e zelo nas relações interpessoais; abordar o conhecimento doutrinário como apoio à transformação moral e social e não como um fim em si mesmo; considerar os saberes anteriores e atuais dos participantes no desenvolvimento do conteúdo; trabalhar com problemas e não somente com temas”(3).

Ou seja, há necessidade de se trabalhar não apenas em nível cognitivo, mas com os valores e sentimentos.

Por outro lado, há uma exagerada comercialização dos chamados “produtos espíritas”, como os livros, e muitas instituições perdendo o caráter espírita, inclusive no texto do estatuto, para manterem convênios com governos.

É chegado o momento de realizar estudos e profundas reflexões sobre o Movimento Espírita: O que pretendemos? Para onde vamos?

Valores como os da simplicidade, fraternidade e solidariedade legítimos andam pouco valorizados. Nos centros espíritas, como anda o atendimento espiritual dos que chegam, como o acolhimento, consolo, esclarecimento e orientação?

Entre as importantes Obras Básicas de Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo é utilizado para estudos e reflexões, com vistas à internalização e roteiro de vida ou simplesmente empregado como “leitura preparatória” de reuniões ou temas de algumas palestras?

Vivemos a época do “Consolador Prometido” pelo Cristo e será que não estaríamos correndo o risco de que o “Cristianismo que se erguerá das cinzas” se comprometerá como uma “uma pedra de tropeço e rocha de escândalo”?

Interessante é que, na história, há registro do ex-doutor Saulo de Tarso, que ao visitar a Casa do Caminho após sua conversão sentiu-se “torturado pela influência judaizante. Tiago dava a impressão de reingresso, na maioria dos ouvintes, nos regulamentos farisaicos. Suas preleções fugiam ao padrão de liberdade e do amor em Jesus Cristo”(4) e optou em deixar a tradicional e pioneira eclésia de Jerusalém, iniciando sua grande tarefa de divulgador do Evangelho. Quase dois milênios depois, Chico Xavier optou em deixar a Comunhão Espírita Cristã, de Uberaba, da qual foi um dos fundadores, e deu início a um novo e simples ponto de referência: o Grupo Espírita da Prece, de Uberaba.

Em nossos dias, são muito necessárias profundas reflexões e análises sobre os rumos do Movimento Espírita, sendo sugestivas as ilustrações da “esquina de pedra”, o rompimento com o farisaísmo feito por Paulo e a opção pela simplicidade de Chico Xavier.

 

1. RODRIGUES, Wallace Leal V. A esquina de pedra. 9. ed., Cap. XIII. Matão: Ed. O Clarim, 2009. p. 139.

2. RODRIGUES, Wallace Leal V. A esquina de pedra. 9. ed., Cap. XXIX. Matão: Ed. O Clarim, 2009, p.399.

3. http://www.febnet.org.br/blog/geral/noticias/material-do-seminario-educacao-atividades-espiritas/ (acesso em 23/03/2015).

4. XAVIER, Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Paulo e Estêvão. 1. ed.esp. 2ª. parte, cap. III, Brasília: FEB, 2012, 257.

 

 

- publicado originalmente em Publicado na RIE- Revista Internacional de Espiritismo, Matão, SP. Maio/2015 -

 

 

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