Julio F. P. Peres (1);
Andrew Newberg (2)
> Neuroimagem e mediunidade: uma promissora linha de pesquisa
1 Instituto de Psiquiatria (Proser), Universidade de
São Paulo (USP).
2 Jefferson-Myrna Brind Center for Integrative Medicine, Thomas Jefferson
University, Philadelphia, Pennsylvania, United States of America.
Revista de Psiquiatria Clínica
Série mente-cérebro
Peres JFP, Newberg A / Rev Psiq Clín. 2013;40(6):225-32
Resumo
A relação mente-corpo
tem despertado perguntas e debates desde os tempos das milenares
tradições religiosas e dos antigos gregos até
a neurociência contemporânea e, apesar de essas questões
ainda não terem sido decisivamente respondidas, atualmente
intervenções terapêuticas são orientadas
por suposições a esse respeito. As investigações
sobre os correlatos neurais da consciência e expressões
mentais progrediram ao longo dos últimos 15 anos por meio
do desenvolvimento de métodos de imagiologia funcional do
cérebro. Essa abordagem pode abrir novas perspectivas para
investigação da expressão de consciências
supostamente espirituais com importantes implicações
éticas, sociais e filosóficas. Propomos uma promissora
nova linha de pesquisa em neurociências e discussão
de algumas questões pertinentes à efetiva utilização
da neuroimagem como potencial método de investigação
da mediunidade para avançar a compreensão consensual
a respeito da consciência, da suposta comunicação
espiritual e suas relações com o cérebro. Destacamos
certos aprendizados e desafios metodológicos adquiridos em
nossa pesquisa neurofuncional sobre mediunidade a serem considerados
em novos estudos nesse campo para formulação de hipóteses
a respeito de tais fenômenos e discutimos orientações
úteis para estudos de neuroimagem envolvendo experiências
espirituais em geral.
__________________________________
Introdução
Há atualmente diversas teorias
que procuram explicar a consciência e a personalidade por meio
de um extenso espectro de hipóteses, tais como interações
de fatores ambientais, psicossociais, neurais, genéticos e espirituais
(1-3). A fonte e o suposto término
da "vida psíquica" vêm sendo debatidos desde
as milenares tradições religiosas e antigos gregos até
a neurociência contemporânea, mas sem o estabelecimento
de um consenso (4-6). Contudo, a visão
do homem e a da natureza que o constitui são esteios que norteiam
as intervenções terapêuticas dos profissionais da
saúde (7-11). Aproximadamente 40%
dos cientistas americanos acreditam em Deus e mantêm visões
dualistas quanto à relação mente-cérebro
e 7,9% dos membros da Academia Nacional de Ciências dos Estados
Unidos acreditam na vida após a morte (12).
Suposições a respeito da relação entre a
mente e o cérebro têm implicações filosóficas,
científicas e práticas (3,13).
A etiologia do sofrimento humano, da consciência e dos fatores
que constituem a personalidade é de interesse essencial aos profissionais
que se ocupam de tratar a dor psíquica em suas inúmeras
expressões (10). Nenhuma teoria
da Psicologia pode ser vista como completa se não levar em consideração
as experiências consideradas como paranormais/anômalas (14).
Essas experiências parecem ser relativamente comuns na população
em geral (48%) e aqueles que as relataram às vezes/frequentemente
as descreveram como altamente significativas (15).
Investigações sobre a mediunidade – em que um indivíduo
(o médium) alega se comunicar com a (ou ser controlado pela)
mente de uma pessoa morta – estão situadas nessa agenda
de experiências anômalas. Por exemplo, o estudo clássico
de Pierre Janet (16) sobre a dissociação
examinou vários médiuns; a tese de doutorado de Carl Jung
(17) envolveu um estudo de caso mediúnico;
e William James (14) pesquisou a médium
Leonore Piper. Mais recentemente, apesar de alguns resultados apresentarem
acertos de informações altamente significativos por parte
dos médiuns (18,19), outras investigações
obtiveram resultados não significativos (20,21),
provocando consideráveis debates metodológicos (19,20).
Persiste, portanto, a necessidade de estudos controlados sobre a mediunidade,
com critérios adequados para que pesquisadores investiguem se
os médiuns podem manifestar informações específicas
e precisas não obtidas por vias conhecidas e, em caso afirmativo,
em que condições isso ocorre (19).
Outras linhas de pesquisa devem ser associadas à investigação
da mediunidade e consideramos que a neurociência pode contribuir
significativamente com geração de dados neurofuncionais
relativos ao conhecimento mais amplo sobre os fenômenos mediúnicos
em que, supostamente, a consciência e a volição
do médium estão atenuadas ou mesmo dissociadas (22).
As investigações sobre os correlatos neurais da consciência
e expressões mentais progrediram ao longo dos últimos
15 anos por meio do desenvolvimento de métodos de imagiologia
funcional do cérebro (23,24), o
que permitiu pesquisadores observarem a dinâmica cerebral envolvida
em estados supostamente inconscientes de coma/vegetativo em estados
minimamente conscientes e síndrome de encarceramento (23).
As descobertas sobre as atividades de circuitos neurais relacionados
à compreensão cognitiva dos indivíduos aparentemente
inconscientes favoreceram a melhor qualidade das terapêuticas
psicológicas e médicas nesse âmbito (25,26).
Por outro lado, considerando as várias hipóteses a respeito
do problema mente-cérebro que discutiremos a seguir, também
seríamos capazes de observar a atividade cerebral atenuada durante
atividades mediúnicas, quando um espírito é
supostamente o autor do conteúdo que um médium está
expressando em palavras, escrita, pintura etc. A abordagem neurocientífica
pode abrir novas perspectivas para investigação da expressão
de consciências supostamente espirituais com importantes implicações
éticas, sociais, filosóficas, assim como no âmbito
da saúde.
O tema a que se propõe este artigo envolve um terreno fronteiriço
e paradoxalmente desgastado em conflitos históricos controversos,
que brevemente abordaremos aqui. Temos como objetivo apresentar uma
nova e promissora linha de pesquisa no âmbito das neurociências
e discutir algumas questões pertinentes à efetiva utilização
da neuroimagem como potencial método de investigação
da consciência, da suposta comunicabilidade espiritual e suas
relações com o cérebro.
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O debate mente-cérebro
na perspectiva histórica
Ao final do século VI a.C.,
na Magna Grécia, Crotona foi a cidade que mais se destacou das
escolas de medicina, quando as doenças do corpo humano foram
examinadas de forma experimental, em vez de serem atribuídas
a razões sobrenaturais. Alcmeão, um dos médicos-filósofos
mais interessados em fisiologia humana na tradição médica
de Crotona, declarou que a alma era imortal e foi possivelmente o pioneiro
no conceito da relação entre o cérebro e a mente,
identificando o cérebro como o centro da compreensão,
percepções, sensações e pensamentos (27).
Em continuidade a essa linha histórica, observamos que debates
filosóficos do século XVIII apresentam controvérsias
ainda atuais sobre o problema mente-cérebro. O conceito neurofisiológico
chave da segunda metade do século XVIII foi a doutrina da equipotencialidade
de todas as estruturas cerebrais, incluindo o córtex de Haller.
Pouco antes de 1800, em uma tentativa de conciliar a filosofia e a ciência,
o anatomista Samuel Thomas Soemmerring sugeriu que os fluidos ventriculares
seriam o órgão imediato da alma. A refutação
dessa hipótese e a ascensão da doutrina frenológica
de Franz Joseph Gall (1758-1820) – a qual postulava que a personalidade
e os traços de caráter complexos (combatividade, esperança,
entre outros) são controlados por áreas do cérebro
que se expandem à medida que esses traços se desenvolvem
– marcam o debate de localização cerebral no fim
da era pré-moderna (28). Hoje, cuidadosamente,
filósofos e neurocientistas, no campo da neuroética, têm
discutido se a neuroimagem seria de fato uma ferramenta de pesquisa
revolucionária ou somente uma "sofisticada" repetição
frenológica dos nossos tempos (29,30).
Além disso, são discutidas as implicações
da suposta autonomia do cérebro em produzir a mente no campo
da ética e as potenciais consequências prejudiciais quanto
à responsabilidade de cada um de nós sobre nossos atos
a partir da exclusiva "biologização" da experiência
humana (31). Dois mil e quinhentos anos
mais tarde, contribuições como a de Alcmeão continuam
influenciando debates entre filósofos, naturalistas e neurocientistas
da atualidade (32).
Alguns estudiosos têm argumentado que a crença na alma
é culturalmente universal (33,34),
provavelmente por ajudar as pessoas a explicarem a experiência
subjetiva da própria mente, que parece ocorrer de maneira não
vinculada a qualquer evento físico (35).
Nesse sentido, Dennett (36) entende que
a crença teológica tem um significado evolutivo e pode
ser vantajosa nas nossas relações com o outro, considerando
a teoria da "postura intencional", quando explicamos eventos
ou comportamentos mentais volitivos (ou "da vontade própria").
Além disso, estudos com neuroimagem funcional mostraram correlatos
neurais para muitos fenômenos mentais/psicológicos, incluindo
os juízos morais (37,38), expressões
emocionais (39) e efeitos neurobiológicos
da psicoterapia (40,41). Tais pesquisas
conquistaram também a atenção da mídia e
do público em geral. A captura de imagens vívidas do cérebro
"iluminado" durante a atividade mental parece sugerir aos
leigos "provas concretas" de que a mente é uma expressão
decorrente do cérebro. Apesar dos muitos avanços da neuroimagiologia
funcional, há ainda uma questão epistemológica
da mente que a neurociência pode não ser capaz de resolver,
chamada de "hard problem of consciousness" (1)
ou de "explanatory gap" (42).
Por outro lado, alguns materialistas reducionistas afirmam que não
há "perguntas difíceis" a serem respondidas
ou mesmo "lacunas" a serem explicadas, porque a mente não
pode existir separada do cérebro: a mente é o cérebro.
Nesse sentido, as experiências mentais seriam explicadas exclusivamente
pela atividade cerebral (2).
Hoje, uma significativa parcela de investigadores da Inteligência
Artificial acredita ser possível construir algoritmicamente a
alma humana (43,44). Esse ponto de vista
nega a "separação" dos fenômenos mentais
e físicos, sendo a mente análoga à operação
de sofisticados softwares cerebrais (45).
Todavia, não houve acordo sobre a compreensão da gênese
da mente ou como os processos neurofisiológicos podem produzir
experiências conscientes, sentimentos e intenções.
Apesar das discussões recorrentes, o materialismo promissório
não foi entregue até agora (46,47).
É notório, contudo, que a neurociência pode identificar
correlatos neurais associados aos processos mentais, mas ainda assim
não explica precisamente como a atividade no cérebro cria
a experiência dos fenômenos mentais, e essa lacuna deixa
alguns aspectos da mente inexplicáveis, favorecendo implicações
para a crença na alma (5,48,49).
_______
Vieses a serem desconstruídos
Demertzi et al. (13)
conduziram duas pesquisas realizadas na Universidade de Edimburgo (estudantes
universitários, n = 250) e na Universidade de Liège (profissionais
da saúde, público leigo, n = 1.858) para investigar as
opiniões/atitudes sobre a relação mente-cérebro
e as variáveis que afetaram as diferenças entre os pontos
de vista. As afirmações apresentadas aos participantes
foram: (1) a mente e o cérebro são duas coisas distintas,
(2) a mente é fundamentalmente física, (3) uma parte espiritual
de nós sobrevive após a morte, e (4) cada um de nós
tem uma alma que é separada do corpo. A primeira pesquisa revelou
uma predominância de atitudes dualistas, enfatizando a separação
entre mente e cérebro. A segunda mostrou que os participantes
mais jovens, as mulheres e as pessoas com crenças religiosas
eram mais propensos à crença de que a mente e o cérebro
são separados, que alguma parte espiritual de nós sobrevive
à morte e cada um de nós tem uma alma. A crença
religiosa foi observada como o maior preditivo de atitudes dualistas.
Embora a maioria dos profissionais de saúde tenha negado a distinção
entre a consciência e o cérebro, mais de um terço
dos profissionais médicos e paramédicos consideraram a
mente e o cérebro como entidades separadas (13).
Mais recentemente, Preston et al. (48)
investigaram um grupo de estudantes de Psicologia e descobriram que
a exposição de textos com explicações fortemente
mecanicistas foi associada à diminuição das pontuações
relativas à crença na alma, enquanto a exposição
das fragilidades da neurociência em explicar a mente e a consciência
aumentou os escores relativos à crença na alma. Em outras
palavras, explicações neurocientíficas sobre correlatos
neurais e faculdades cognitivas levaram à atenuação
da crença na alma, enquanto a menção das fragilidades
da neurociência em explicar a consciência favoreceu a crença
na alma. O "materialismo promissório" (50)
envolve uma expectativa de que a ciência será capaz de
mostrar no futuro como o cérebro produz a mente. Embora essa
promessa, que já tem 300 anos (46),
possa se materializar em algum momento, não podemos ignorar as
explicações alternativas, como as propostas por Henri
Bergson, William James e Frederic Myers, ou seja, de que o cérebro
funciona como um filtro, e não como a causa de manifestações
mentais (3,51,52). Portanto, é preciso
cautela com declarações exageradas e ponderação
ao interpretar os resultados obtidos em estudos neurofuncionais. O que
parte dos neurocientistas atualmente chama de "bases neurais"
deveria ser corrigido para "correlatos neurais", em consideração
a outras hipóteses para a relação mente-cérebro
(3,22).
Em síntese, as teorias relativas à gênese da consciência
podem ser divididas em duas categorias: (1) aquelas que propõem
que a consciência é um produto da atividade cerebral e
(2) aquelas que postulam que a consciência é uma entidade
com vida e funcionamento próprio e que não é necessariamente
limitada ao cérebro. Estudos neurofuncionais nesse campo devem
respeitar os dados obtidos sem tentar fazê-los caber em uma teoria
ou outra. Por outro lado, até recentemente, tivemos poucas oportunidades
para testar essas teorias experimentalmente e, entre outras linhas de
pesquisa, investigações neurofuncionais sobre a mediunidade
podem avançar a compreensão consensual a respeito da consciência,
da suposta comunicação espiritual e suas relações
com o cérebro. Em adição aos estudos sobre experiências
religiosas, estudos focados na suposta comunicação espiritual
podem permitir-nos observar correlatos neurais em situações
em que um indivíduo e seu cérebro estão supostamente
produzindo conteúdos de outra consciência (o espírito)
durante um transe mediúnico, desse modo ampliando nosso conhecimento
a respeito do complexo mente-cérebro.
___________
Neuroimagem funcional e experiências
religiosas
As tecnologias de neuroimagem funcional favorecem investigações
sobre os correlatos neurais de experiências complexas, uma vez
que a dinâmica cerebral pode ser observada in vivo durante situações
controladas. Os métodos mais utilizados nos últimos 15
anos são: a tomografia por emissão de fóton único
(SPECT), tomografia por emissão de pósitrons (PET) e ressonância
magnética funcional (fMRI) (53).
Decidir qual método usar requer avaliação cuidadosa
das vantagens e limitações (53,
54). Fatores como sensibilidade à detecção
anatômica e funcional (resolução espacial e temporal),
possibilidade de controlar e reproduzir ensaios, assim como custo e
disponibilidade para utilização do método devem
ser ponderados para o estudo ideal relativo ao objetivo proposto da
investigação (Tabela 1). Por exemplo, utilizamos o método
SPECT porque esse permite que os sujeitos desempenhem suas tarefas complexas,
as quais exigem silêncio e concentração, em um ambiente
adequado e livre de muitos efeitos que possam distrair ou causar ansiedade.
A fMRI, por outro lado, é um método neurofuncional não
invasivo e apresenta superior resolução espacial e temporal
(Tabela 1). Contudo, os ruídos devem ser controlados nos ensaios
das tarefas anteriores ao estudo para que a expressão mediúnica
não seja prejudicada.
Recentemente, alguns estudos revelaram que regiões e sistemas
cerebrais medeiam os diferentes aspectos da experiência religiosa
(55,57), descartando, assim, a teoria "ponto
de Deus", que postulava um local no cérebro como responsável
pela experiência com o "divino" (58).
As experiências religiosas são complexas e multidimensionais
na medida em que envolvem alterações na percepção
(por exemplo, imagens mentais visuais); cognição (por
exemplo, representações do self), e emoção
(paz, alegria e amor incondicional) (57).
Os estudos neurofuncionais tendem a sugerir maior atividade do córtex
frontal e pré-frontal durante experiências religiosas (55-,57,59,60).
Outras semelhanças entre os achados incluem um aumento da atividade
nas redes atencionais relacionadas ao pensamento reflexivo durante tais
experiências (55,56,57,59,60). Outros
estudos contribuíram para o nosso entendimento das experiências
religiosas pela investigação de experiências com
indução de drogas (61) e
a natureza da crença religiosa (62,63).
Esses estudos também apontam para a atividade de áreas
como os lobos frontal e parietal, correlacionados com elementos psicológicos
e cognitivos específicos das experiências religiosas. Essas
áreas parecem ser parte de uma rede neural envolvida na elaboração
dos fenômenos religiosos. A tabela 2 lista estudos de neuroimagem
em práticas religiosas. Vale notar que nosso estudo sobre mediunidade
(22), ao contrário de outros estudos
sobre práticas religiosas, encontrou diminuição
na atividade nas redes atencionais durante a suposta comunicação
espiritual. Similares achados ocorreram durante a experiência
de glossolalia – "falar em línguas" – em
que indivíduos dizem acessar um domínio espiritual (56).
São necessários mais estudos para preencher detalhes da
natureza e diferenciação das práticas religiosas
e espirituais e seus respectivos correlatos neurais.
_________________________
Uma linha de pesquisa nascente e desafios
metodológicos
Usamos neuroimagem para investigar a prática
da psicografia, em que supostamente "um espírito desencarnado
escreve por intermédio da mão do médium" (22).
Baseados na experiência adquirida em nosso estudo, traremos algumas
discussões e orientações pertinentes para novos
estudos sobre o tema, assim como aqueles relativos a experiências
espirituais em geral.
A psicografia é uma das muitas formas dissociativas da expressão
mediúnica. Durante a psicografia, os médiuns escrevem
narrativas estruturadas e legíveis, mas frequentemente alegam
desconhecer o conteúdo ou a estrutura gramatical do texto escrito.
Tivemos como objetivo investigar se esse tipo de estado de transe dissociativo
se relaciona com alterações específicas na atividade
cerebral que sejam distintas das verificadas quando se escreve habitualmente,
isto é, fora do estado de transe. Assim, medimos o fluxo sanguíneo
cerebral regional (FSCr) usando SPECT durante a psicografia (escrita
em estado de transe dissociativo) e comparamos os dados com aqueles
adquiridos durante a escrita no estado habitual de consciência,
fora do transe mediúnico (tarefa de controle). Nossa hipótese
a priori era a de que as áreas envolvidas em processos cognitivos
quando se escreve conscientemente, tais como raciocínio e planejamento
de conteúdo, mostrariam ativação semelhante durante
a escrita sob o transe mediúnico.
Examinamos dez médiuns brasileiros divididos em dois grupos –
cinco médiuns "menos experientes" e cinco com "experiência
substancial". A comparação entre médiuns experientes
e médiuns menos experientes pode favorecer a obtenção
de dados neurofuncionais mais realistas a respeito dessa prática.
De acordo com William James14, é crucial concentrar as investigações
sobre as manifestações mais extremas do fenômeno
em pauta. Assim, há base racional para pesquisas neurofuncionais
de casos isolados de médiuns mostrando expressão robusta
ou décadas de experiência, o que pode favorecer achados
mais consistentes. Triar cuidadosamente a amostra é um desafio
especial nesse âmbito de pesquisa. Médiuns que cobram suas
consultas espirituais devem ser evitados. A necessidade de entregar
um resultado pode enviesar a experiência mediúnica espontânea.
É importante avaliar as possíveis interfaces entre a mediunidade
e fenômenos autoproduzidos pela expectativa de resultados "convincentes",
transtornos dissociativos ou outras condições psiquiátricas
e charlatanismo para que resultados duvidosos não contaminem
a epistemoloia nesse campo nascente. Assim sendo, métodos para
controlar essas variáveis devem ser desenvolvidos.
____________
Auxiliando os voluntários a sentirem
conforto
O ato de escrever, nos dois casos, realizou-se em ambiente
silencioso e com luz suave, em uma antessala do laboratório de
neuroimagem. Todos seguiram o mesmo procedimento: sentaram-se confortavelmente,
fecharam os olhos, concentraram-se e fizeram uma oração.
De modo geral, entraram em transe em poucos minutos, pegaram um lápis
e começaram a escrever. Os médiuns relataram entrar em
transe com facilidade e tranquilamente. Para que os médiuns estejam
confortáveis e o fenômeno se manifeste tal como se estivessem
"em casa", é importante conduzir com antecedência
uma entrevista qualitativa adequada e perguntar ao participante da pesquisa:
"O que é necessário para que o fenômeno ocorra?".
Médiuns em geral não fazem objeção, ao contrário,
apreciam participar de estudos, mas certamente ficam desconfortáveis
quando se sentem "testados". Portanto, os pesquisadores devem
estabelecer um vínculo amistoso, respeitar as sugestões
dos médiuns e mostrar-lhes que as suas opiniões são
importantes. Por exemplo, em nosso estudo, os voluntários pediram
o apoio espiritual dos colegas médiuns a distância e próximo
daquele que se submetia à neuroimagem, e tal pedido foi respeitado.
Devemos minimizar as expectativas e receios dos médiuns de não
realizarem bem as tarefas do estudo e desconstruir qualquer fantasia
dos participantes a respeito das expectativas dos pesquisadores, ressaltando
que a experiência mediúnica será bem-vinda, simplesmente,
assim como é. A familiarização dos voluntários
da pesquisa com potenciais gatilhos de ansiedade ou outros efeitos perturbadores
(ambiente hospitalar, tecnologia neuroimagem, amostras de sangue, injeções
etc.) é fundamental, além de começar o estudo com
os voluntários mais confiantes, que naturalmente transmitirão
segurança/tranquilidade para os outros participantes.
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clique nas tabelas para ampliar a imagem -
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Avaliação da produção
mediúnica por peritos cegos
Os próprios médiuns relatam que diferentes
tipos de comunicação espiritual podem acontecer isoladamente
ou mesmo simultaneamente. De acordo com os voluntários por nós
estudados (22), as principais manifestações
mediúnicas são: incorporação (a experiência
de sentir o espírito no próprio corpo); psicofonia (a
experiência de expressar verbalmente o que o espírito comunica);
clariaudiência (a experiência de ouvir espíritos
ou ruídos produzidos por eles); clarividência (a experiência
de ver espíritos); psicografia (a experiência de escrever
o que o espírito comunica).
Futuros estudos devem considerar a possibilidade de avaliadores externos
especialistas pontuarem cegamente aspectos da experiência mediúnica,
bem como a qualidade dos conteúdos produzidos nesse estado (expressados
em palavras, textos, pinturas etc.), e dos conteúdos gerados
em estado habitual de consciência (fora do transe) pelos próprios
médiuns e por grupos de controles. Além disso, uma avaliação
cuidadosa da experiência fenomenológica investigada por
neuroimagem pode favorecer a correlação mais precisa entre
a experiência em primeira pessoa (fenomenológica) e a experiência
em terceira pessoa (atividades neurais). Os escores de complexidade
– avaliados cegamente por especialistas – dos conteúdos
produzidos durante o transe ou aspectos relevantes da experiência
podem ser usados como regressores em análises estatísticas.
Por exemplo, nosso estudo trouxe resultados interessantes a esse respeito.
Um especialista da área de letras cegamente avaliou a complexidade
dos textos produzidos pelos médiuns durante as duas tarefas.
A análise de correlação linear comparando mudanças
nos escores de complexidade para o conteúdo escrito e alteração
do fluxo sanguíneo cerebral (FSC) nas áreas relacionadas
com o estado de psicografia (cúlmen esquerdo, hipocampo esquerdo,
giro occipital inferior esquerdo, cíngulo anterior esquerdo,
giro temporal superior direito e giro pré-central direito) mostrou
uma tendência de correlação inversa: os níveis
crescentes de complexidade foram associados com diminuição
gradual do FSC em cada região. A tendência de correlação
inversa encontrada em nosso estudo, quando levada em conta a complexidade
do conteúdo psicografado, requer discussões futuras e
novos estudos para formulações de hipóteses explicativas.
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Discussões desafiadoras
Um bom estudo pode ser prejudicado por uma discussão
imprópria. Dados devem ser analisados cautelosa e respeitosamente
a partir de uma abordagem com mente aberta para evitar o viés
do "eterno retorno do materialismo promissório" (46).
Nossa hipótese a priori não se confirmou, já que
os resultados apresentaram significativas alterações no
fluxo sanguíneo em diversas áreas do cérebro durante
a psicografia, em comparação com a escrita fora do estado
de transe. Além disso, os médiuns experientes, durante
a escrita em estado de transe dissociativo, apresentaram FSCr significativamente
mais baixo em comparação com a escrita habitual da condição
de controle.
Os voluntários relataram que o transe envolvia um "estado
de relaxamento mental". Tal relaxamento poderia explicar a atividade
geral atenuada do cérebro, mas o fato de que os indivíduos
produziram textos complexos em estado de transe dissociativo sugere
que eles não estavam meramente relaxados. Os resultados também
não condizem com simulação ou fraude, que, por
vezes, têm sido oferecidas como explicações para
a mediunidade. Circuitos neurais relacionados ao planejamento presumivelmente
seriam recrutados para a composição dos textos, caso os
indivíduos estivessem simulando tais conteúdos.
O nível comparativamente reduzido de atividade no córtex
temporal, giro pré-central, hipocampo e cíngulo anterior
em médiuns experientes também reforça os seus relatos
subjetivos de que não tinham consciência do conteúdo
escrito durante a psicografia, cujos temas envolveram princípios
éticos/espirituais e a importância da união entre
ciência e espiritualidade. Os médiuns relatam que "a
autoria dos textos psicografados foi dos espíritos comunicantes
e não pode ser atribuída a seus próprios cérebros",
o que é também uma hipótese plausível.
Nossos achados poderiam ser discutidos em relação a estudos
neurofuncionais sobre outros estados alterados de consciência
como a hipnose (65) e meditação
(66), os quais são fenomenologicamente
distintos das expressões mediúnicas e, por isso, tais
condições não são diretamente comparáveis.
Além disso, assim como na meditação, a ideia de
que a hipnose reflita um estado dissociativo ainda é controvertida
(67). A improvisação musical,
em que a diminuição da atividade em circuitos atencionais
pode ter envolvido o treinamento para a inibição da atenção,
favorece a emergência da criatividade (68,69).
Ainda sobre criatividade, um estudo recente mostrou que o consumo de
álcool reduz a atividade do lobo frontal e parece aumentar a
criatividade ou talvez diminuir a crítica
(70). Porém, os estados de improvisação
musical – com acentuada participação da memória
motora – e consumo de álcool são bastante particulares
e distintos da psicografia, que envolve elaboração de
textos inteligíveis com mensagens éticas e, portanto,
não podem ser comparáveis entre si. Por outro lado, estudos
sobre expertise cognitiva envolvendo planejamento mostraram circuitos
neurais com maior atividade durante tarefas realizadas por especialistas
(71). Por exemplo, assim como o planejamento
de escrita refinada, o xadrez é um jogo que envolve muitos aspectos
da cognição e requer habilidades sofisticadas de resolução
de problemas. Especialistas no jogo mostraram atividade acentuada no
cíngulo posterior, córtex órbito-frontal e córtex
temporal direito quando comparados com enxadristas iniciantes (72).
A observação neurofuncional de prodígios em cálculos
aritméticos e especialistas em ábaco (antigo instrumento
de cálculos matemáticos) também sugere que experts
em tarefas cognitivas sofisticadas expressaram maior atividade em rotas
cerebrais diferenciadas e mais extensas, como nos circuitos atencionais
e de planejamento (73). Contudo, é
necessário realizar mais pesquisas para comparar minuciosamente
a psicografia com outros estados mediúnicos e elucidar com precisão
as possíveis relações entre os circuitos relacionados
a criatividade e atenção versus a profundidade, intensidade
e complexidade do conteúdo produzido durante os estados mediúnicos.
Seria útil observar a complexidade das expressões mediúnicas
e seu aumento e/ou diminuição de atividade em relação
a circuitos atencionais, e por isso esperamos que projetos funcionais
sejam desenvolvidos nessa direção.
Vale lembrar que, embora os voluntários do nosso estudo tenham
relatado alucinações auditivas, alterações
de personalidade e outros comportamentos dissociativos, as entrevistas
clínicas estruturadas excluíram transtornos psiquiátricos
(22). Esses achados sublinham a importância
de futuras investigações endereçarem a precisão
dos critérios para distinguir expressões dissociativas
saudáveis e patológicas no escopo da mediunidade.
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Limitações
Uma linha de pesquisa embrionária pode enfrentar
dificuldades quanto à discussão entre os achados obtidos
nos primeiros estudos e publicações neurocientíficas
sobre outros estados de consciência fenomenologicamente distintos
das expressões mediúnicas. Portanto, mais pesquisas devem
ser conduzidas para que condições mediúnicas similares
sejam diretamente comparáveis entre si, considerando controles
(tarefas e sujeitos) escolhidos com pertinência para investigarmos
temas como, por exemplo, a hipótese da comunicabilidade espiritual,
os critérios de distinção entre as expressões
dissociativas saudáveis e patológicas no âmbito
da mediunidade e relações/diferenciações
entre esquizofrenia e mediunidade.
Wilder Penfield, a partir de seus estudos com estimulação
elétrica do cérebro em indivíduos acordados (com
preservação da consciência) para mapear as funções
corticais, trouxe importantíssimas contribuições,
como o "Homúnculo de Penfield", que relaciona estruturas
cerebrais a funções específicas (74).
Mais tarde, no livro Mistério da mente, considerando seus longos
anos de estudo, afirmou: "a mente tem uma existência distinta
do cérebro, embora esteja intimamente relacionada a ele. [...]
Não há local no córtex cerebral onde a estimulação
elétrica fará o paciente decidir" (75).
Determinar as funções em isolamento espacial e temporal
é naturalmente o primeiro passo das neurociências para
a compreensão coerente de toda atividade encefálica. Mesmo
como primeiro passo, reconhecer e limitar as funções específicas
de cada estrutura encefálica não tem sido uma tarefa fácil,
e talvez seja mesmo inexequível. Ao fazermos pesquisas neurofuncionais
sobre consciência e expressões mentais, as estruturas e
circuitos neurais vão além da especificidade de funções,
conforme variáveis que pouco compreendemos ainda. Por exemplo,
as condições imaginárias de audição
e visualização também obedeceram a reciprocidades
neurais similares às condições reais de ouvir e
visualizar os mesmos eventos (76, 77).
Voluntários músicos, ao imaginarem uma certa melodia,
ativaram circuitos neurais tal como na condição de ouvir
a mesma melodia tocada em fones de ouvido. Os autores atribuíram
um título sugestivo ao artigo: "O som do silêncio
ativa o córtex auditivo" (76).
O fato de estimular regiões específicas do cérebro
e provocar certas experiências não implica a origem da
experiência no cérebro. A sintaxe neural parece combinar
as estruturas isoladas tal como as letras que compõem incontáveis
palavras, períodos e parágrafos em distintos idiomas,
que favorecem a tradução das inúmeras experiências
humanas, e ainda assim muitas delas possivelmente indescritíveis
nessa semântica cerebral. Enquanto a neurociência tem feito
grandes progressos na descoberta das funções de regiões
do cérebro, pouco se sabe sobre os padrões dinâmicos
de tradução, conectividades e fluxos das informações
mentais no cérebro. Portanto, é um equívoco primário
identificar uma região ou circuito do cérebro envolvidos
em experiências mediúnicas e concluir que esses correlatos
neurais são a causa final dessas experiências. Moreira-Almeida
e Santos (3) afirmam que a mesma experiência
pode ter diferentes etiologias (por exemplo, taquicardia pode ter uma
ampla gama de causas, tais como a ansiedade, a insuficiência cardíaca,
o exercício, o consumo de cocaína). Portanto, encontrar
a causa de um episódio de taquicardia em um paciente em particular
não significa que encontramos a causa de todos esses episódios
para esse paciente, ou para todos os seres humanos. Este parece ser
o caso de similares experiências alucinatórias relatadas
por médiuns (3,22).
A neurociência cognitiva geralmente desenvolve hipóteses
para explicar fenômenos a partir da atividade mensurável
no espaço (estruturas e circuitos do encéfalo) e no tempo
(aquisições de imagens únicas, como no caso do
método SPECT ou aquisições contínuas em
sequências temporais, como no caso dos métodos PET e fMRI).
Devido à influência do materialismo promissório,
alguns neurocientistas podem estar olhando na direção
errada em busca de regiões cerebrais ativadas durante a suposta
comunicação espiritual, em vez de observar a atenuação
das atividades neurais esperadas para gerar informações
– às vezes complexas – resultantes do transe mediúnico.
Além de considerar o aumento e especialmente o decréscimo
da atividade neural em manifestações mediúnicas,
devemos pensar cuidadosamente em tarefas e grupos de controle, e também
em estratégias de análise estatística pertinentes
ao objetivo do estudo, a comunicabilidade espiritual.
A baixa resolução temporal e espacial dos métodos
de neuroimagiologia atuais é um limite relevante à captação
da complexa filigrana neural. Não somos capazes de abranger a
complexidade da sintaxe cerebral com a tecnologia e o conhecimento de
que dispomos no presente. Futuros métodos multimodais, que integrem
as vantagens das distintas técnicas de neuroimagem53, examinarão
substratos neurais funcionais, estruturais, neuroquímicos/moleculares
para uma crescente compreensão de como os fluxos de informações
trafegam no cérebro em acordo com as experiências mentais,
que parecem ser traduzidas (78,79).
__________________
Conclusões
O presente artigo cobre alguns dos principais debates
do complexo mente-cérebro, estudos neurofuncionais sobre experiências
religiosas, alguns desafios metodológicos e limitações
que consideramos serem úteis ao formular novas pesquisas sobre
mediunidade e experiências espirituais. Observamos que, até
agora, os estudos neurofuncionais sobre experiências religiosas
não focaram especificamente a questão "comunicação
espiritual", mas precisamente este tema pode ser relevante à
ciência. Nossos resultados preliminares (22)
sugerem a continuidade e extensão dessa nascente e frutífera
linha de pesquisa. Uma vez que a compreensão de correlatos neurais
envolvidos em mediunidade se encontra em estágio inicial, enfatizamos
que essas essas descobertas demandam futuras replicações
e hipóteses explanatórias. Essa nova linha de pesquisa
precisa seguir de mãos dadas com a formulação de
hipóteses que cubram uma larga gama de fenômenos mediúnicos
e supostas manifestações espirituais. Portanto, consideramos
que estudos subsequentes com métodos de neuroimagem devem focar
na mediunidade e convidamos nossos colegas neurocientistas a colaborarem
e investirem nessa importante linha de pesquisa a fim de aperfeiçoar
o consenso de compreensão sobre consciência, experiências
espirituais e suas relações com o cérebro.
__________________________________
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Fonte:
http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol40/n6/225.htm
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