(trecho inicial)
Quando, hoje, buscamos referências
sobre o início do Cristianismo, muito frequentemente nos
debruçamos nos documentos canônicos que constituem
o chamado Novo Testamento, ou seja, os Evangelhos de Mateus, Marcos,
Lucas e João, o texto intitulado Atos dos Apóstolos,
as Epístolas de Paulo, de Pedro, de João e de Tiago,
e o Apocalipse de João. Subsidiariamente, podemos consultar
os escritos do judeu romanizado Flavio Josefo, em especial sua obra
Guerras Judaicas, e alguns parcos comentários sobre o nascente
movimento dos cristãos feitos por escritores romanos muito
depois da morte de Cristo. Mas é pouco lembrado, porém,
que os textos oficiais do Novo Testamento foram estabelecidos como
tais em uma época bastante posterior aos acontecimentos que
envolveram a vida de Jesus e o trabalho desempenhado por seus discípulos
diretos, pois o cânone oficial só veio a ser estabelecido
em 397 d.C. durante o chamado Concílio de Cartago, onde as
diretrizes do que seria a Teologia Romana - paradoxalmente extremamente
ligada aos processos políticos e administrativos do mesmo
Império que havia perseguido tão duramente os cristãos
- foram cristalizadas, num desdobramento político que veio
se fazendo desde que Constantino oficializou o cristianismo como
a Religião do Império - sem que tivesse, contudo,
postergado diretamente a religião pagã anterior.
Por esta época estavam sendo erguidos os estatutos da instituição
chamada Igreja - na verdade, mais especificamente os da Igreja Romana,
incentivada pelo imperador Constantino, e que, por isso, deveria
ser a hegemônica por estar ligada diretamente à sede
do Império, pois várias eram as tradições
cristãs vigentes, como as da Igreja Grega, a Igreja de Alexandria,
a Igreja de Antioquia, a Igreja de Éfeso, a Igreja Copta,
a Igreja Gnóstica e outras tradições, nem uma
delas mais poderosa que as demais, com exceção, talvez,
da Igreja de Alexandria, cujas profundidades ou ideias eram divergentes
das de Roma e que seriam vistas e condenadas como ameaças
ao poder do núcleo romano, sendo, pois, consideradas heresias.
Parte destas igrejas orientais permaneceram críticas da teologia
construída por Roma, com especial ênfase na primazia
quase supra-humana do bispo de Roma, o Papa, o que levou, no século
XI, ao cisma definitivo entre a Igreja Romana e as do Oriente, hoje
conhecidas como Igrejas Católicas Ortodoxas.
Os textos que se tornaram a base da Bíblia Cristã
oficial foram escolhidos, como hoje sabemos, entre vários
outros que circulavam sobre a vida de Cristo à época
- alguns extremamente fantasiosos, mas outros com aprofundadas informações
sobre Jesus e o pensamento dos cristãos da época -
e que, a partir de então, em especial com São Jerônimo,
foram editados e copiados em um processo que, atualmente sabe-se,
não escapou de ser cheio de manipulações e
adaptações aos interesses da nascente instituição
religiosa, em especial na construção e edição
de um texto dirigido a leitores romanos, orgulhosos de sua nacionalidade
e da história de seu Império, o que levou a expedientes
como o recheio dos textos com enxertos de frases, supressões
ou adendos interpretativos que procuravam dar uma visão de
mundo que fosse concorde com os interesses da Igreja que se estabelecia
como instituição. Um dos exemplos deste tipo de manipulação
é o esforço para se minimizar a participação
dos romanos na execução de Jesus, jogando a responsabilidade
quase que completamente em cima dos judeus (a esta altura já
dispersos pelo Império depois da destruição
de Jerusalém por Tito no ano 70), esquecendo-se que o Galileu
foi vítima de dois processos: um político-religioso,
da parte dos judeus, e outro político, por parte dos romanos.
Esta temática será desenvolvida mais adiante.