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03/12/2024


Por Bruno Molinero —
Reportagem para a Folha de SP

 

 

'A criança não deve perder o contato com a morte', diz Reginaldo Prandi

Em 'A Morte e o Menino sem Destino', Reginaldo Prandi, escritor e professor da USP investiga o fim da vida a partir dos terreiros de candomblé

 

 

"Bruno estava diante da pior combinação do mundo: Ouorim-Ejiobê significava a Morte está com você, Morte imediata. Ele ia morrer, seu destino se encerrara.

"É a partir daí que o livro "A Morte e o Menino sem Destino" desabrocha. Bruno, o garoto protagonista, é um pré-adolescente que mora num terreiro de candomblé. Curioso para saber o que vai acontecer na sua vida, ele surrupia os búzios da mãe de santo e faz um jogo escondido, quando lê nas conchas que vai morrer em breve, talvez naquele dia mesmo.

 



Bruno, protagonista de "A Morte e o Menino sem Destino", livro de Reginaldo Prandi - Divulgação

 

 

"Fazia tempo que eu tinha a ideia de escrever sobre uma criança que rouba o jogo de búzios e acaba aprontando", diz o sociólogo Reginaldo Prandi, professor da Universidade de São Paulo e autor do livro que acaba de ser lançado pela Escarlate, selo infantojuvenil da Companhia das Letras.

Mas, falando assim, Prandi comenta somente a superfície da narrativa. É verdade que a história se lambuza na tradição dos personagens travessos da literatura infantojuvenil. Mas o autor vai além disso —e cutuca na obra dois tabus que rondam a escrita para crianças e jovens: a morte e as religiões de matriz africana, constantemente perseguidas num Brasil cada vez mais evangélico e refém da intolerância religiosa.

"A criança não deve perder o contato com a morte", afirma o escritor.

"Essa coisa de não falar sobre o fim da vida ou de não levar as crianças ao velório, por exemplo, é forte na classe média das cidades grandes, na pequena burguesia urbana e metropolitana. Nas periferias e no interior não costuma ser assim."

Não à toa, esse é o cenário de "A Morte e o Menino sem Destino". As descrições apontam a todo instante para uma geografia afastada dos centros, com bicicletas cortando as ruas, campinhos tomados pelo futebol e, é claro, o terreiro de candomblé, onde a avó do protagonista é a ialorixá, a mãe de santo.

Se o conflito entre o menino e a morte surge dentro da religião, é também nesse universo que ele se resolve. A trama se desenrola dentro das fronteiras do terreiro durante apenas um dia, quando todos estão se preparando para uma celebração. Enquanto os adultos se dividem entre os afazeres, Bruno e seus amigos ouvem dos mais velhos diversas histórias sobre Icu, a entidade iorubá que representa a morte.

Surgem então narrativas sobre a luta entre Icu e Exu, a perseguição da morte ao Ifá, o dia em que os gêmeos Ibejis fizeram Icu dançar até não conseguir mais e toda uma coleção de contos ancestrais. "A ideia era passar as tradições preservadas nos terreiros, mas a partir da ficção, de um jeito mais sutil."

Essa, porém, não é a primeira vez que o autor escreve para crianças sobre esses temas. Conhecido dos adultos pelo clássico "Mitologia dos Orixás", Prandi é também autor de diversos infantojuvenis, entre eles "Xangô, o Trovão", "Os Príncipes do Destino" e "Aimó". Mas há uma diferença agora.

Ao contrário de boa parte dos títulos anteriores, nos quais os orixás são protagonistas de narrativas fantásticas e mitológicas, "A Morte e o Menino sem Destino" joga seus holofotes para o candomblé de hoje, com personagens atuais, num terreiro contemporâneo, onde a religião convive com a padaria e com a escola, no qual os filhos de santo mexem no celular e têm profissões para além dos postos religiosos.

"Às vezes, a convivência é capaz de superar as diferenças religiosas. O pessoal do terreiro não vai ao templo para ver a pregação do pastor. Os evangélicos não vão assistir a um orixá dançar. Mas eles podem comer juntos, por exemplo. Há sempre uma possibilidade de comunhão. No livro, não quis transformar o terreiro numa ilha", diz Prandi.

Mas num país onde denúncias de intolerância religiosa cresceram 80% no primeiro semestre deste ano em comparação ao mesmo período de 2023, a maior parte delas ligadas ao preconceito contra religiões de matriz africana, essa convivência é realmente possível?

"Acho que sim. Ao mesmo tempo, já tive livro queimado em praça pública, né? Numa escola, a diretora e uma bibliotecária evangélicas pegaram meus livros, jogaram na rua e botaram fogo. Eu me senti o próprio Galileu."


A Morte e o Menino sem Destino

Preço R$ 79,90 (160 págs.)
Autoria Reginaldo Prandi
Editora Escarlate
Ilustrações Pedro Rafael

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/era-outra-vez/2024/11/a-crianca-nao-deve-perder-o-contato-com-a-morte-diz-reginaldo-prandi.shtml

 

 

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Diz a história que a menina Iemanjá estava triste. Então Olodumaré, o criador, resolveu entregar um presente para a princesa. Batendo palmas, fez pedras racharem e, de dentro delas, brotar toda a água que criou rios, lagos e mares. Foi lá que a menina decidiu morar.

Diz outra história que Iemanjá estava casada com o rei Oquerê. Depois de uma briga, ela resolveu fugir, mas foi perseguida pelo marido. Na correria, acabou quebrando um frasco que sua mãe, Olocum, tinha lhe dado de presente. Dele, surgiu um rio caudaloso que ajudou Iemanjá a fugir até o mar.

Diz ainda uma terceira história que a menina Omilayó vivia chateada porque seus cabelos eram feitos de água e molhavam tudo ao redor. Até que um dia sua tia-avó contou um segredo. A tataravó da garota também tinha esses mesmos cabelos e vestia o adê — ou a coroa — de Iemanjá. As três narrativas fazem parte de três diferentes livros para a infância. A primeira é de "Omo-Oba", de Kiusam de Oliveira. A segunda ajuda a compor "Os Príncipes do Destino", de Reginaldo Prandi, que já pode ser considerado um clássico. Por fim, a terceira é o fio condutor de "A Menina dos Cabelos d'Água", de Sidnei Nogueira.

Mas, de certa forma, todas elas são fios que costuram uma mesma história — uma trama complexa e milenar que nasce na África e chega ao Brasil com as pessoas escravizadas, onde encontra terreno para se enraizar e se transformar.

Talvez o melhor início por esse caminho seja "Os Príncipes do Destino". O livro de Reginaldo Prandi foi lançado originalmente em 2001 pela Cosac Naify e chegou a ser finalista do prêmio Jabuti. Após o fechamento da editora, a obra ganhou uma nova edição pelas mãos da Pallas, com novo projeto gráfico e ilustrações de Anna Cunha, que teve as imagens desse livro e as de "Origem" premiadas no ano passado na 29ª Bienal de Ilustração de Bratislava.


Ilustração de Anna Cunha para 'Os Príncipes do Destino' - Divulgação

 

Na história, conhecemos 16 odus, ou príncipes do povo iorubá, que tinham a obrigação de guardar as principais histórias de sua gente — afinal, "saber as histórias já acontecidas, as histórias do passado,
significava para eles saber o que acontece e o que vai acontecer na vida daqueles que vivem o presente".

Cada um dos 16 capítulos apresenta um desses príncipes, suas histórias e seus deuses —ou orixás. O odu Oxé, por exemplo, sabia todas as narrativas de amor. Já Odi falava de viagens, negócios e guerras, enquanto Ossá narrava coisas sobre a vida em família.

Com uma costura complexa, baseada em pesquisa profunda, a narrativa de Prandi alcança algo difícil. Ela consegue ser ao mesmo tempo interessante para crianças, ao apresentar todo um universo mitológico iorubá, e servir de introdução a adultos que desejam se aproximar desse universo. Esse segundo aspecto é reforçado pelo sumário, escrito para essa nova edição como uma espécie de dicionário dos orixás.

 

"Omo-Oba", de Kiusam de Oliveira, segue o mesmo caminho, mas aponta suas histórias para outra faixa etária, com textos mais afinados para leitores mais novos. Assim como "Os Príncipes do Destino", o livro também é uma reedição e apresenta contos de príncipes e princesas. Publicado originalmente em 2009 pela Mazza Edições, com ilustrações de Josias Marinho, o título recebeu um novo projeto da Companhia das Letrinhas, agora com imagens de Ayodê França.


Ilustração de Óxossi e Ogum do livro "Omo-Oba", de Kiusam Oliveira - Divulgação

Aqui, a realeza é representada pelos próprios orixás. Primeiro surgem as princesas. É o caso de Oiá e sua capacidade de se transformar num búfalo que corre como o vento. E de Oxum, que dança cheia de perfume. Em seguida é a vez dos príncipes. É quando conhecemos Exu, por exemplo, que vai vender uma cabra no mercado. Mas também Oxóssi e seu irmão Ogum, além de Otim, que tem corpo de mulher e é cultuado em algumas tradições como iabá —ou orixá feminino.

É justamente a iabá mais conhecida do Brasil, Iemanjá, que ajuda a costurar o terceiro livro: "A Menina dos Cabelos d'Água". O livro do babalorixá Sidnei Nogueira, com ilustrações de Luciana Itanifè, esteve entre os títulos que inauguraram o selo Baião, o braço de literatura infantojuvenil da Todavia, no ano passado.


Ilustração de Luciana Itanifè para o livro "A Menina dos Cabelos d'Água"

A história da menina Omilayó, contada no início deste texto, já é ousada desde a apresentação. Em vez de um livro encadernado convencionalmente, a obra chega às mãos dos leitores na forma de pequenos pôsteres dentro de uma caixa, nos quais há texto de um lado e imagem do outro.

Muito já foi falado sobre essa narrativa ser uma potente mensagem de autodescoberta e aceitação, uma vez que a protagonista não gosta dos seus cabelos de água e só passa a valorizá-los quando lhe contam que sua tataravó também tinha esses mesmos fios aquosos, percebendo que aquilo pode ser uma qualidade e ajudar toda a comunidade.

Mas há algo a mais. Não é à toa que Nogueira escolheu justamente os cabelos como imagem e metáfora para a ancestralidade de Omilayó. No candomblé e em outras religiões de matriz africana, um dos principais orixás que regem a vida das pessoas é chamado de orixá de frente ou orixá de cabeça.

E é na cabeça que a protagonista leva Iemanjá, entidade que dá profundidade ao livro, ajuda a menina a espalhar suas águas e cria uma leitura religiosa delicada. No fundo, o que acompanhamos é a descoberta da garota como filha de santo, a partir do espelhamento com sua tataravó, retratada nas ilustrações com roupas, tambores e outros objetos de terreiro. Mas o livro faz isso sem se afastar da literatura nem se tornar impenetrável a leitores que não conhecem os meandros das religiões.

É o contrário. "Os Príncipes do Destino", "Omo-Oba" e "A Menina dos Cabelos d'Água" são janelas literárias.
Abrem-se para um Brasil que o Brasil historicamente e sistematicamente procurou esconder e silenciar.

 


Os Príncipes do Destino - Os Odus de Ifá e suas Extraordinárias Histórias

Preço R$ 78 (112 págs.)
Autoria Reginaldo Prandi e Anna Cunha
Editora Pallas

Omo-Oba - Histórias de Princesas e Príncipes

Preço R$ 54,90 (64 págs.)
Autoria Kiusam de Oliveira e Ayodê França
Editora Companhia das Letrinhas

A Menina dos Cabelos d'Água

Preço R$ 79,90 (52 págs.)
Autoria Sidnei Nogueira e Luciana Itanifè
Editora Baião

 

 

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/era-outra-vez/2024/03/conheca-livros-infantis-guiados-por-orixas-e-pelas-raizes-africanas-do-brasil.shtml

 

 

 

 

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