03/11/2024
Por Fernanda Bassette
Reportagem do jornal Estadão
É possível ter uma morte bela, diz
Ana Claudia Quintana Arantes em entrevista
Geriatra especializada em cuidados paliativos explica como conforto,
respeito e gentileza podem ressignificar o fim da vida
A única certeza que temos na vida é a
de que vamos morrer. Mas, apesar de a morte ser algo do qual não
podemos escapar, receber o diagnóstico de uma doença que
ameaça a continuidade da vida é assustador, causa medo,
dor e angústia. E, na maioria das vezes, não estamos preparados
para falar sobre a possibilidade de morrer.
A médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes,
que há 30 anos tem se aprofundado na experiência de cuidados
paliativos, é uma das especialistas que tentam nos ensinar a
dialogar sobre esse momento. Sua palestra no TEDx, “A morte é
um dia que vale a pena viver”, acumula mais de 3,8 milhões
de visualizações no YouTube e o livro de mesmo nome foi
um sucesso de vendas.
Agora, com “Cuidar até o Fim”,
da editora Sextante, ela fala sobre a perspectiva da finitude e aponta
a importância de trazer clareza para as escolhas, reavivar lembranças
e nos ajuda a conduzir as etapas do adoecimento oferecendo conforto
e gentileza.
Veja abaixo trechos da conversa da geriatra com o Estadão.
Ana Claudia Quintana Arantes
Médica geriatra, escritora, professora e palestrante em temas
sobre envelhecimento e morte
O que são cuidados paliativos?
Os cuidados paliativos fazem parte de uma abordagem dentro da área
da assistência à saúde para aliviar o sofrimento
de um ser humano que enfrenta uma doença ameaçadora de
vida. Quando uma pessoa descobre uma doença e se depara com a
existência de algo que a faz correr risco de vida, ela passa por
sofrimentos em todas as dimensões humanas. Começa com
o sofrimento físico, que é o mais óbvio, mas passa
pelo sofrimento emocional; pelo sofrimento familiar, social e espiritual.
Os pacientes em cuidados paliativos se sentem frente à inevitabilidade
da morte. Isso é algo muito grande que eles terão que
atravessar e eles podem ter medo dessa travessia. Os cuidados paliativos
os ajudam a ter sabedoria de como lidar com esses sofrimentos e os ensinam
como conduzir isso. Primeiro a gente alivia o sofrimento físico,
depois temos as conversas mais delicadas sobre como o paciente quer
que seja a sua morte.
Por que ainda se tem a ideia de que cuidados paliativos só
envolvem doentes terminais?
Porque historicamente tivemos um tempo na medicina em que não
conseguíamos mudar a história natural das coisas. Não
existia antibiótico; não existia quimioterapia; não
tínhamos avanços cirúrgicos mais complexos; não
havia transplantes. A medicina era cuidar com as poucas opções
que existiam.
Com os avanços tecnológicos, evolução de
medicamentos e tratamentos, a medicina passou a ter a tarefa de evitar
a morte, ou seja, quando eu não evito a morte significa que fracassei
e que não tenho mais nada para fazer. Vivemos a cultura de que
é preciso levar o paciente para o hospital para evitar que ele
morra. A partir daí não se fala mais de morte. Por que
morrer se temos todos esses avanços? Então ficou subentendido
que o cuidado paliativo significa que o paciente está nos minutos
finais. Mas isso está equivocado. Cuidados paliativos não
significam fracasso.
Estima-se que apenas 3% das pessoas que
precisam recebem cuidados paliativos
Foto: Irina/Adobe Stock
Existe diferença entre paciente paliativo
e paciente terminal?
Na verdade, a gente nem deveria usar o termo paciente terminal porque
a definição de terminalidade não é relacionada
a tempo, e sim à condição clínica do paciente.
O que isso significa? A terminalidade é quando a pessoa chega
em uma fase da doença em que, naquele momento, não tem
mais nada que a medicina possa oferecer que impeça o seu curso
natural e, por isso, o desfecho será a morte.
Você pode ter uma terminalidade com tempos variáveis.
Poder ser um caso de paciente que vai morrer em horas; em dias; em semanas;
em meses ou até em anos. Tem situações de terminalidade
em que o paciente vive por muito tempo, como se caminhasse numa corda
bamba. Não tem mais nada a ser oferecido, mas se ele não
se desequilibrar, se ninguém empurrar, ele segue a vida numa
boa. Mas se ele tiver qualquer outro problema de saúde, ele pode
não sustentar o equilíbrio e morrer.
Então todos os pacientes, do diagnóstico
à morte, todos que sofrem diante de uma doença ameaçadora
de vida são pacientes merecedores de cuidados paliativos. E todos
os que estão na sua fase de terminalidade devem receber cuidados
paliativos exclusivos.
Existe uma quantidade de tempo que uma pessoa
pode ficar em cuidados paliativos?
Não. Essa questão relacionada ao tempo nós “importamos”
dos Estados Unidos porque lá não existe saúde pública
e o paciente só tem direito à assistência de cuidados
paliativos quando dois médicos atestam que ele tem uma expectativa
de vida menor do que seis meses.
Mas os cuidados paliativos não são para
quem está morrendo. Eles existem para ajudar qualquer pessoa
que está em sofrimento, para melhorar a sua qualidade da vida
diante de uma doença grave. Vários estudos científicos
mostram que as pessoas que recebem cuidados paliativos vivem mais tempo.
Ao receber o diagnóstico, qualquer pessoa pode entrar
em cuidados paliativos?
Sim, mas qual é a primeira barreira que
você vai encontrar? A do médico e da equipe que atende
essa pessoa. Há vários casos de pacientes que dizem ao
médico que querem passar por cuidados paliativos e ouvem que
ainda não é a hora. A pessoa está sofrendo, sente
dor, está com a família em colapso, tem dificuldade para
trabalhar, está com limitações, mas não
consegue iniciar os cuidados paliativos porque ouve do profissional
de saúde que eles são “só para pacientes
terminais, sem opção de tratamento”.
Infelizmente, o serviço não está
disponível para pacientes em fases mais precoces da doença.
Hoje temos muito mais pacientes conscientes de que precisam de cuidados
paliativos do que profissionais de saúde capazes de oferecer
ou recomendar. Por isso estima-se que apenas 3% das pessoas que precisam
recebem cuidados paliativos no Brasil.
No livro, você compara a notícia
de uma doença ameaçadora da vida com um tsunami. Por quê?
Porque os grandes desafios da nossa vida podem se comportar da forma
como o tsunami. De que maneira? Quando o tsunami começa a se
armar, o mar se recolhe. Nesse momento (ao descobrir uma doença
grave), a pessoa começa a perceber que tem alguma coisa errada,
começa a descobrir coisas que estavam submersas, escondidas.
A pessoa passa a entender que ainda tem muita coisa importante a ser
feita.
O momento do tsunami é o momento em que a doença
chega de vez, que o tratamento não funcionou, que a pessoa está
com muito efeito colateral, ou foi demitida, ou perdeu o companheiro...
O tsunami é o momento em que acontecem coisas que, embora o paciente
soubesse que uma hora elas iam acontecer, ele não estava esperando.
Quando o tsunami passa, a pessoa percebe que a vida está um caos
e é preciso aprender a lidar com o caos.
"Todos que sofrem diante de uma
doença ameaçadora de vida são pacientes merecedores
de cuidados paliativos", defende Ana Claudia Quintana Arantes
Outro tema que você aborda é a
importância de o paciente registrar as diretivas antecipadas de
vontade. O que isso significa?
As diretivas antecipadas de vontade constituem a manifestação
dos desejos da pessoa que está com uma doença grave, para
que esses desejos sejam respeitados caso ela não tenha condição
de se manifestar quando o problema acontecer. Mas para você garantir
que os seus desejos sejam respeitados, você precisa falar sobre
eles. Porque não adianta nada a pessoa escrever sobre isso e
guardar para ela, sem ter falado com mais ninguém. É preciso
falar sobre morte com os familiares. Eu costumo brincar com os meus
pacientes e dizer: “Eu falo sobre morte faz 30 anos e nunca morri,
então falar sobre morte não vai fazer você morrer”.
A questão é que o paciente precisa dizer
se quer sustentar um prolongamento de vida com sofrimento ou não.
E quando ele quiser prolongar a vida, até que ponto os profissionais
devem seguir? A pessoa quer passar os últimos momentos no hospital
ou em casa ao lado da família? Quer ser intubada ou não?
Quer ser submetida a uma traqueostomia? Gostaria de ser reanimada, caso
sofra uma parada cardíaca? Quer ser alimentada por sonda? São
questões técnicas que o paciente desconhece e, por isso,
precisam ser discutidas abertamente com o médico para que ele
possa “traduzir” o que significa cada um dos procedimentos.
O papel do médico não é obedecer a qualquer coisa,
mas ajudar o paciente a compreender o que está acessível
a ele.
Qual a importância de atender aos desejos
do doente, mesmo os mais difíceis?
Isso é extremamente importante justamente para esse paciente
ainda poder viver experiências. É uma forma de permitir
que essa pessoa viva coisas que nunca viveu, mas quer viver nesse tempinho
do recolhimento do tsunami no mar. Mas deve ser feito dentro das possibilidades
de cada um.
No livro, conto a história da paciente que tinha
o desejo de voar de balão. Não seria possível atender
esse desejo, então levei para ela óculos 3D de realidade
virtual e promovi essa “viagem”. Quando não é
possível atender ao pedido, você modula a expectativa com
a realidade para a frustração não aparecer tão
intensa.
Como a gente sabe que o paciente paliativo está em processo
ativo de morte?
No livro, eu descrevo as quatro etapas do processo ativo de morte. A
dissolução da terra, caracterizada pela imobilidade, movimentos
lentificados, mais pesados. Depois tem a dissolução da
água, que é a diminuição da ingestão
de líquidos e redução da aceitação
alimentar. Em seguida vem a dissolução do fogo, que é
uma espécie de melhora antes da morte, a pessoa fica um pouco
mais animada. Por fim, tem a dissolução do ar, que é
a parte em que o paciente fica com a respiração mais esquisita,
chamada de respiração agônica. Mas quando a pessoa
está recebendo cuidados e conforto, vemos o rosto dela pleno,
super sereno. Todos esses elementos são os sinais de que existe
a proximidade da morte.
É possível ter uma morte bela?
A morte bela é uma experiência que pode acontecer quando
a pessoa recebe os cuidados que ela escolheu, que ela considerou dignos,
e que aconteceram de forma a respeitar a sua história de vida.
A morte bela acontece quando você não prolonga nem encurta
o tempo de vida daquela pessoa, quando você aceita no processo
do cuidado a experiência que o paciente considera digna.
No livro, cito um exemplo trágico que aconteceria
comigo e, para eu ter uma morte bela, minha experiência seria
ouvir a voz das pessoas que eu amo (na obra, a autora afirma que gostaria
de receber um áudio com a voz da filha, mesmo que, em teoria,
não pudesse ouvir). Isso seria uma forma de respeitar a minha
morte.
Outro exemplo que dou é quando o Samu vai atender
um paciente idoso, demenciado, que teve uma parada cardíaca e
não resistiu. A morte bela é devolver àquele corpo
morto o cuidado. É abotoar a camisa do pijama, passar as mãos
no rosto dele para fechar os olhos; pegar as mãos da pessoa e
colocar em cima do peito. Olhar em volta, se existir um terço,
por exemplo, colocar nas mãos do idoso. E dizer para a família
‘sinto muito’. Isso é uma morte bela, uma morte que
foi respeitada, porque você devolve para a família um corpo
cuidado e não um corpo coberto por um saco preto.