Novo livro mostra que pessoas humildes
também que contribuíram para a difusão do cristianismo
A tradição nos acostumou
a ver as pessoas que escreveram o Novo Testamento como autores individuais
e divinamente inspirados. Assim, os evangelhos canônicos foram
atribuídos a Marcos, Lucas, Mateus e João, e a maior parte
das cartas, a Paulo.
Um livro publicado em março por Candida Moss,
professora de teologia da Universidade de Birmingham (no Reino Unido),
traz reflexões interessantes sobre o tema. O título é
"God’s ghostwriters" ou "Os escritores
fantasmas de Deus". Sua ideia central é a de que os textos
que depois compuseram o Novo Testamento foram escritos em um processo
de colaboração com pessoas escravizadas.
De fato, já nos primeiros séculos os pensadores
da Igreja se perguntavam se o evangelho de Marcos não seria de
autoria de Pedro. Qual seria, então, o papel de Marcos? Um simples
copista do que foi ditado? Um coautor? Por outro lado, sabe-se que Paulo
contou com vários colaboradores, inclusive quando estava preso.
Um deles declara ter redigido a Epístola aos Romanos. Chamava-se
Tertius, um nome comum entre escravos no mundo romano.
A ideia de que um seguidor de Jesus sentou e escreveu
os originais de um evangelho ou de uma epístola e que estes textos
foram reproduzidos fielmente por gerações de copistas
simplifica uma realidade mais complexa. A separação entre
um pensador intelectual do texto e aquele que pôs a tinta sobre
um papiro ou pergaminho não era algo muito claro naqueles tempos.
Boa parte dos escritores da Antiguidade ditava seus
textos a secretários ou escribas especializados nas artes da
escrita. Por vezes, esses trabalhadores eram responsáveis por
organizar, fazer as cópias manuscritas e mesmo cuidar da publicação
das obras. E muitos deles eram ou haviam sido escravos.
Para Moss, esse trabalho não era uma simples
reprodução mecânica das ideias ditadas pelos autores
intelectuais. Pelo contrário, era uma espécie de coautoria
em que a pessoa que realmente escrevia o texto escolhia as palavras,
intervinha na argumentação, acrescentava ou excluía
passagens.
Escrever podia ser uma tarefa extremamente penosa, que exigia longas
horas e grande esforço físico. Uma boa disposição
corporal e uma visão acurada eram mais facilmente encontradas
em jovens servidores do que em discípulos de idade avançada.
Além disso, os colaboradores eram qualificados para escrever
em grego, a língua que permitiu que a nova fé se espalhasse
pelo mundo mediterrânico.
Esses textos eram copiados, recopiados,
enviados para os cantos mais remotos do império romano e frequentemente
eram transmitidos para as plateias por via oral. Muitos desses primeiros
missionários do cristianismo nascente foram pessoas humildes,
mulheres e escravizados, o que era justamente visto negativamente pelos
romanos. A ideia de que a expansão do cristianismo dependeu apenas
de um punhado de apóstolos escolhidos diretamente por Jesus não
explica seu sucesso.
As evidências desse trabalho criativo de pessoas
escravizadas na redação dos evangelhos ou das cartas são
raras e indiretas. Mas isso não surpreende. Nas sociedades escravistas,
ocorre um verdadeiro silenciamento das tarefas realizadas pela mão
de obra servil. Eles foram considerados somente "a mão"
ou "a pena" dos verdadeiros autores. O tempo e a tradição
reforçaram o esquecimento desses escritores invisíveis
e consolidaram a imagem ilusória de um autor único, normalmente
pertencente à elite letrada.
Candida Moss não tem a ambição
de oferecer todas as repostas. Mas seu livro faz repensar como foram
produzidas as narrativas sobre a vida de Jesus e como os escravizados
puderam ter um papel ativo na redação dos textos que fundaram
o cristianismo. Ao fazer isso, a autora não pretende questionar
a autoridade dos textos do Novo Testamento, mas promover uma reparação
histórica das pessoas humildes que contribuíram para sua
criação e difusão.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/08/teologa-examina-participacao-de-escravizados-na-redacao-do-novo-testamento.shtml
Vejam abaixo entrevista realizada
com a autora
por Alessandra Corrêa
BBC News Brasil
Um livro lançado neste ano nos
Estados Unidos traz um argumento surpreendente para muitos leitores
da Bíblia: o de que pessoas escravizadas tiveram um papel crucial,
e pouco reconhecido, na criação e na disseminação
do Novo Testamento.
Em "God's Ghostwriters: Enslaved Christians and
the Making of the Bible" ("Ghostwriters de Deus: Cristãos
Escravizados e a Criação da Bíblia", em tradução
livre), a historiadora Candida Moss afirma que pessoas escravizadas
ajudaram os discípulos de Jesus a redigir os textos bíblicos
e a espalhar o Evangelho pelo Império Romano.
Segundo Moss, que é professora de Teologia da Universidade de
Birmingham, no Reino Unido, somente 5% a 10% da população
era alfabetizada na época — entre eles, os mais ricos.
A maioria dos apóstolos e primeiros cristãos
não sabia ler ou escrever. Mesmo os que sabiam, muitas vezes
eram impedidos por sofrer de artrite ou problemas de visão, em
uma época em que óculos não existiam.
Compor e copiar textos a mão era um trabalho
árduo e fisicamente cansativo, que os membros da elite não
queriam fazer e que o resto da população não tinha
como fazer.
Assim, a tarefa cabia geralmente a pessoas escravizadas,
que eram alfabetizadas desde jovens para desempenhar a função
de secretários, escribas, leitores e mensageiros.
Nesse contexto, o fato de alguém ser identificado
como autor de um texto não significava que tinha escrito com
suas próprias mãos.
O mais comum era que a obra fosse ditada a pessoas
escravizadas ou, em alguns casos, que haviam sido libertas mas, de acordo
com Moss, não eram totalmente livres.
A historiadora argumenta que, ao redigir o material
ditado por outros e copiar manuscritos, esses escravizados não
apenas reproduziam os textos, mas contribuíam de forma ativa
como coautores, fazendo correções e edições.
Essa colaboração se estendeu pelos dois
primeiros séculos da Era Cristã, segundo a pesquisa.
"Você pode ver pessoas escravizadas e ex-escravizadas
como parte fundamental da atividade missionária, da escrita e
da interpretação bíblica no início do Cristianismo.
Elas estão envolvidas em tudo isso", diz Moss.
Os escravizados viajavam a locais distantes para ler
passagens bíblicas a fiéis que não eram alfabetizados,
em um papel que Moss compara ao de missionários, escolhendo gestos
e entonação para transmitir e interpretar os ensinamentos
de Jesus.
Dessa forma, ajudaram a moldar os fundamentos do Cristianismo.
Moss cita o exemplo das Cartas de Paulo. Segundo a historiadora,
Paulo era o único apóstolo alfabetizado, mas ele próprio
indica, em seus textos, que usava a ajuda de outras pessoas para ler
e escrever.
Além disso, algumas de suas cartas foram redigidas
quando ele estava na prisão, que costumava ser em um subsolo
escuro e de onde seria difícil escrever.
Moss considera provável que tenham sido ditadas
a assistentes escravizados, emprestados por seguidores ricos.
A Epístola aos Romanos traz o trecho "Eu,
Tércio, que escrevi esta carta", indício de que foi
redigida com a ajuda de Tércio.
De acordo com Moss, ele é comumente descrito
como escriba, o que pode dar a impressão de que era um amigo
ou alguém que havia desempenhado a tarefa de forma voluntária.
A historiadora lembra, porém, que escribas e
secretários na Era Romana não eram profissionais de classe
média, mas sim pessoas escravizadas ou ex-escravizadas que haviam
sido libertas.
Moss destaca ainda que Tércio significa simplesmente
"Terceiro", nome comum entre escravizados na época.
A Epístola aos Filipenses menciona Epafrodito. De acordo com
Moss, o nome está relacionado à deusa do amor, Afrodite,
e tem o significado de "belo", sendo comum entre escravizados
na Antiguidade, período em que muitos meninos eram explorados
sexualmente.
Outro exemplo é o Evangelho Segundo Marcos. A
historiadora salienta que o autor é descrito como intérprete
de Pedro e argumenta que há indícios de que Marcos era
escravizado.
Moss afirma que, à medida que o Cristianismo
passou a dominar o Império Romano, o status de escravizados dos
primeiros cristãos foi apagado, e "muitos heróis
das Escrituras foram promovidos a bispos".
Ela lamenta que as contribuições dos escravizados
para o Novo Testamento e o florescimento do Cristianismo não
sejam reconhecidas.
Como não há evidências diretas,
a interpretação de Moss é baseada principalmente
na leitura de textos religiosos e seculares e no que se sabe sobre a
escravidão nesse período histórico, e o livro recebeu
algumas críticas por usar muitas "conjecturas" e "especulação
sobre o passado".
Mas ela salienta que foi "transparente sobre onde
há evidências melhores ou piores" e garante que o
argumento de que pessoas escravizadas colaboraram no Novo Testamento
não é especulação.
"Gostaria que pensássemos de forma diferente
sobre quem estamos lendo quando lemos a Bíblia", afirma.
"Não é apenas um livro de reis e
bispos. É também uma coleção de livros produzidos
por pessoas de diferentes setores da sociedade, que merecem visibilidade."
Em entrevista exclusiva, Moss falou sobre o papel dos
escravizados na Antiguidade, como contribuíram para a Bíblia,
as evidências que encontrou em sua pesquisa e a resposta aos críticos.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O que se sabe sobre o papel de pessoas escravizadas
em ajudar a redigir a Bíblia?
Elas são coautoras do Novo Testamento, porque
os textos que conhecemos como Novo Testamento, as Cartas de Paulo, os
Evangelhos, foram ditados a pessoas escravizadas ou ex-escravizadas.
E esse foi um processo muito ativo e colaborativo, elas tinham um grande
trabalho.
Uma vez escrito um texto, ele seria copiado e corrigido
por um escriba escravizado. Seria transportado a outro local por um
mensageiro escravizado que era, para todos os efeitos, um missionário.
E seria, então, lido em voz alta e interpretado para o público
por pessoas escravizadas.
Você pode ver pessoas escravizadas e ex-escravizadas
como parte fundamental da atividade missionária, da escrita e
da interpretação bíblica no início do Cristianismo.
Elas estão envolvidas em tudo isso.
A senhora ressalta que os escravizados tinham
um papel muito ativo nessa colaboração. De que maneiras
eles contribuíram na edição e correção
dos textos?
Era um trabalho muito ativo. Na Antiguidade, eles
usavam taquigrafia, mas não era padronizada, era muito individual.
Isso significa que quem fizesse a anotação seria a pessoa
a expandir [as abreviações] e, ao fazer isso, estaria
tomando decisões sobre como fazer o texto soar bem.
Secretários escravizados tinham alto grau de
educação, especialmente se comparados aos apóstolos,
que eram pescadores. Assim, era útil aos apóstolos ter
pessoas instruídas que pudessem ajudar a melhorar o estilo, tornar
a história mais cativante, esse tipo de coisa.
Então, devemos supor que os escravizados
estão participando disso. E é importante, porque significa
que eles não são apenas colaboradores, mas que sua visão
de mundo, sua perspectiva, suas prioridades e sua genialidade, tudo
isso também está presente nos textos.
A senhora afirma que as pessoas escravizadas
tinham alto grau de instrução, o que é diferente
da escravidão atlântica, quando muitos escravizados eram
impedidos de aprender a ler. Como era esse aspecto da escravidão
na Era Romana?
Essa é uma das grandes diferenças entre a escravidão
romana antiga e a escravidão atlântica. Na escravidão
atlântica, os proprietários não queriam que seus
trabalhadores escravizados aprendessem a ler e escrever precisamente
porque isso lhes daria poder, então tomaram medidas ativas para
evitar isso.
Mas com os romanos era diferente, por
uma série de razões. Uma delas é que não
tinham óculos.
Cerca de 40% da população
atual teria dificuldade de ler e escrever se não tivesse óculos.
Você pode imaginar como, na Antiguidade, ter trabalhadores escravizados
que podiam ler e escrever melhor que você, simplesmente porque
podiam enxergar melhor, era realmente importante.
E não era apenas deficiência
visual, mas também problemas como artrite, gota [que dificultavam
a escrita]. Se você escreve por um longo período de tempo,
começa a doer. Essa é outra razão pela qual as
pessoas não queriam fazer [essa tarefa].
E você adiciona a isso a falta
de eletricidade. Grande parte da leitura era feita à noite. Então
eles usavam trabalhadores escravizados, especialmente jovens, que tinham
visão aguçada. Temos evidências deles falando sobre
isso.
Na época da escravidão
atlântica já existiam máquinas que podiam copiar
textos, mas os romanos não tinham isso, então precisavam
de pessoas. Não queriam fazer esse trabalho eles próprios,
por isso usavam pessoas escravizadas e devidamente treinadas para produzir
textos legíveis.
Qual era a situação dos ex-escravizados que haviam
sido libertos, muitos dos quais também atuavam como escribas
e leitores?
Muitos continuavam morando nas casas de seus escravizadores
e continuavam obrigados a eles. Caso sentissem que um liberto tinha
sido ingrato, os romanos debatiam no Senado sobre sua reescravização.
Em determinadas situações, os libertos poderiam ser executados.
Há passagens na literatura romana sobre como
os libertos eram obrigados a fornecer serviços sexuais a seus
ex-escravizadores, principalmente no caso das mulheres.
Certamente não era uma liberdade
da forma como pensamos atualmente.
Seu livro cita exemplos específicos que indicam a colaboração
de escravizados e libertos na criação do Novo Testamento.
Quais são alguns dos principais?
Sabemos que Paulo, que era um dos poucos autores
cristãos da época com bom nível de instrução,
estava ditando. E sabemos disso porque ele próprio nos diz.
Sabemos o nome do escriba que escreveu
a Epístola aos Romanos, Tércio, que significa apenas "terceiro",
e é o nome [comum] de trabalhador escravizado.
Na Epístola aos Gálatas
e na Primeira Epístola aos Coríntios, Paulo faz referência
ao fato de estar escrevendo partes das cartas sozinho, o que sugere
que outra pessoa escreveu o resto. Ele efetivamente diz que foi coautor
de várias de suas cartas.
Em relação ao Evangelho
Segundo Marcos, sabemos que Marcos era, na verdade, o secretário
de Pedro. A tradição [cristã] mais antiga nos diz
que ele era um intérprete para Pedro, e podemos supor que um
intérprete [na época] seria uma pessoa escravizada.
Quando você olha para os dados,
a maioria dos intérpretes era escravizada. Então, essa
primeira camada da tradição [cristã] faz com que
Marcos pareça ser um tipo de trabalhador escravizado.
Posteriormente, ele é [apresentado
como] o primeiro bispo de Alexandria, mas não é isso que
a tradição antiga diz.
Sabemos que todos os textos do Novo
Testamento, quando copiados, teriam sido copiados por trabalhadores
escravizados ou ex-escravizados. Esses eram textos muito longos, levavam
muito tempo para serem copiados.
E quando você vê os nomes
de alguns dos associados de Paulo, como Epafrodito ou Fortunato, esses
são nomes [comuns] de trabalhadores escravizados.
Se você olhar para as evidências,
se deixar de lado a tradição cristã e perguntar,
dados seus nomes, dado o que estão fazendo, que tipo de pessoas
eram eles, você dirá que eram escravizados. Essa seria
a conclusão lógica.
Além de contribuir para a redação da Bíblia,
pessoas escravizadas também ajudaram a espalhar o Evangelho.
Como era esse trabalho?
Para espalhar o Evangelho, ele precisava ser levado
por alguém [a locais distantes]. Viagens eram perigosas na Antiguidade
e, por isso, essa tarefa costumava ser atribuição de trabalhadores
escravizados em quem se podia confiar para transmitir as cartas com
precisão.
Eles tinham que descobrir como chegar
ao destino. Quando chegavam, tinham que decidir quando se anunciar e
entregar a mensagem. E, se estivessem em uma comunidade cristã,
eram chamados a ler a mensagem em voz alta para o grupo.
Se você pensar nas Cartas de Paulo,
ou nas cartas de outras figuras do início do Cristianismo, temos
os nomes de alguns desses mensageiros, e são todos libertos ou
trabalhadores escravizados.
Ao ler a mensagem em voz alta, o tom
de voz e a ênfase, são muito importantes. Os gestos com
as mãos, as expressões, tudo isso dependia da pessoa escravizada
que estava interpretando o texto.
Naquele momento, eles se tornam a face
do Evangelho. Eles são os intérpretes das escrituras.
Há várias evidências
da Antiguidade tentando limitar a forma como os textos eram interpretados,
porque havia preocupação com isso, com a influência
da pessoa que faz a leitura.
[Esses mensageiros] também respondiam
a perguntas. No caso das Cartas de Paulo, mesmo hoje em dia algumas
pessoas têm dificuldade de entender.
Paulo dava instruções
aos mensageiros sobre como ler e como explicar as cartas. Sabemos disso
porque ele próprio nos diz.
Se você estivesse em uma igreja
hoje, esses mensageiros seriam a pessoa que faz a homilia e, muitas
vezes, o sermão. Porque são eles que estão fazendo
a interpretação dos textos.
Durante quanto tempo durou esse processo, em que pessoas escravizadas
participaram ativamente da composição e da disseminação
de textos bíblicos?
Estamos falando realmente dos primeiros 200 anos
em que o Cristianismo estava se espalhando. Os anos críticos
em termos de escrever, copiar e disseminar a mensagem. Todos os livros
do Novo Testamento foram escritos nesse período.
Posteriormente, há um período
em que se vê mais pessoas que são profissionais, mas que
não são escravizadas, copiando os textos. E isso acontece
por volta do século quarto. E então você vê
o surgimento dos mosteiros, e a tarefa de copiar os textos se torna
domínio dos monges.
Seu livro recebeu algumas críticas por usar "muitas
conjecturas" e "especulação sobre o passado".
Como foi feita a sua pesquisa? E qual a sua resposta a essas críticas?
Em relação à minha pesquisa,
fiz uma série de coisas. Porque é difícil, você
está tentando contar as histórias de pessoas que foram
deliberadamente apagadas da História.
É um desafio, mas não
é sem precedentes. Estudiosos da História Atlântica
já fizeram isso antes, e desenvolveram um método chamado
fabulação crítica. Quando as pessoas dizem que
estou sendo especulativa, o que querem dizer é que estou usando
esse método.
Nesse método, sabemos que estamos
tentando preencher lacunas e, portanto, sendo especulativos. Mas eu
também diria que muitos estudos são especulativos sem
reconhecer esse fato.
Não olhei apenas para o que os
estudiosos da História Atlântica fazem, mas também
para a história da ciência cognitiva, a história
do trabalho [envolvido na escrita] de livros.
Analisei amostras do período
medieval, do século 17, do século 20, e ficou claro que,
quando se tem funcionários administrativos de baixo escalão,
eles sempre alteram o texto.
Li muitos estudos médicos para
ver o quão grave teria sido a perda de visão durante a
Antiguidade. Observei esqueletos, [para] evidências de artrite.
Li muitos relatórios arqueológicos.
Pesquisei materiais que me eram muito
familiares, como papiros antigos que registravam como as pessoas escreviam.
Vi exemplos de pessoas escrevendo sobre trabalhadores escravizados em
textos.
Este é um livro escrito para
todos, eu não queria que fosse muito técnico. Mas uma
das coisas que fiz e que não tenho certeza se os críticos
notaram foi criar um site com todos os recursos disponíveis,
de forma gratuita, com links para as fontes primárias, para quem
quiser ver as evidências.
Então acho que, quando as pessoas
dizem que estou sendo especulativa, é porque sou muito transparente
sobre onde há evidências melhores ou piores, e a maioria
das pessoas não faz isso. A maioria apenas apresenta um argumento
forte.
Em termos de especulação,
eu estava dizendo coisas como: "Se sabemos que pessoas escravizadas
trabalharam neste texto, e isso é um fato, que tipo de mudanças
podemos imaginar que eles introduziram?"
E então eu procuraria, por exemplo,
vocabulário que Paulo não usou em suas outras cartas,
e o que isso poderia significar para trabalhadores escravizados [terem
sido autores do texto].
Mas estava claro que eu estava dizendo
"talvez tenha sido isso que aconteceu, porque não posso
provar de uma forma nem de outra".
E eu diria que também não
se pode provar que foi Paulo [que escreveu]. É apenas uma suposição.
Dizer que Paulo escreveu a Epístola aos Romanos, quando o que
[o texto] diz é que Tércio escreveu, não é
apenas especulação, é errado.
Eu diria que Paulo e Tércio escreveram
a Epístola aos Romanos, e que não podemos ter certeza
[do tamanho] da contribuição de Tércio. Mas isso
não significa que devemos apagar Tércio da história.
O que a senhora espera que as pessoas levem da leitura de seu
livro?
Gostaria que pensássemos de forma diferente
sobre quem estamos lendo quando lemos a Bíblia.
Não é apenas um livro de reis e bispos.
É também uma coleção de livros produzidos
por pessoas de diferentes setores da sociedade, que merecem visibilidade.
E, se pensarmos nelas, vamos ler as escrituras de maneira
diferente. Vamos perceber coisas que não havíamos notado.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/os-cristaos-escravizados-que-teriam-ajudado-a-escrever-a-biblia-e-espalhar-o-evangelho.shtml