Alguns autores
definem o luto como 'o preço que pagamos por amar'
Na música Muerte, uma das faixas
do álbum De Todas Las Flores, de 2022, a cantora mexicana Natalia
Lafourcade diz logo nas primeiras estrofes que "agradece a morte
por ter ensinado a viver".
Embora a frase indique uma aparente contradição,
ela resume de forma poética algo que acontece no nosso cérebro
toda vez que perdemos alguém que amamos.
Após uma série de processos difíceis
e dolorosos, que se arrastam por meses ou até anos, a maioria
de nós aprende a viver sem aquela pessoa por perto — ainda
que às vezes memórias e saudades um tanto agridoces apareçam
de forma repentina ou em datas específicas.
Mas o que realmente acontece no cérebro quando
nos deparamos com a morte de uma pessoa importante na nossa vida?
Nas últimas décadas, o conhecimento sobre
esse tema evoluiu bastante — e a BBC News Brasil conversou com
alguns dos autores das pesquisas mais importantes nessa área
para desvendar a neurociência do luto, como você confere
a seguir.
É impossível ser feliz sozinho
Embora as investigações científicas
sobre o luto tenham diferentes abordagens e pontos de partida, os especialistas
ouvidos para essa reportagem foram unânimes em afirmar que, para
entender o impacto da morte, é essencial conhecer os fundamentos
do amor.
"Quando falamos sobre a perda de alguém importante, precisamos
antes compreender a fundo o que é o vínculo entre duas
pessoas", concorda a neurocientista Zoe Donaldson, professora da
Universidade do Colorado em Boulder, nos EUA.
Em uma série de entrevistas e palestras, a professora de Psicologia
e Psiquiatria Mary-Frances O’Connor define o luto como "o
preço que pagamos por amar alguém".
Após publicar diversos estudos sobre o tema na Universidade do
Arizona, também nos EUA, a especialista chegou à conclusão
de que o sentimento de "perder um pedaço" de nós
mesmos diante da morte de um familiar ou um amigo querido é algo
real, uma vez que esse vínculo afetivo está enraizado
e codificado nos neurônios.
O'Connor, uma das pioneiras no estudo do luto e autora do livro O
Cérebro de Luto (Editora Principium), explica que, num momento
tão difícil como este, o cérebro entra numa espécie
de contradição.
De um lado, a massa cinzenta registrou as memórias da morte e
de todos os ritos associados a ela, como o funeral e o enterro. Ou seja:
uma parte do sistema nervoso tem plena consciência do que aconteceu.
De outro, no entanto, há um fluxo diferente de informações,
interpretado pelo que a especialista americana descreve como a teoria
ou a neurociência do apego — termo que vem do inglês
attachment theory.
O luto envolve um conflito entre as memórias
concretas e sistemas neurais relacionados ao vínculo e ao apego
Para O’Connor, quando criamos
um vínculo especial com alguém, certas partes do cérebro
(sobre as quais falaremos adiante) criam uma noção
bem forte, que pode ser resumida na frase: "Eu sempre estarei aqui
por você, e você sempre estará aqui por mim".
Ela avalia que esse sentimento está no âmago de todo relacionamento
afetivo e funciona muito bem quando nos afastamos momentaneamente desses
indivíduos (como durante uma viagem a trabalho, por exemplo).
No fundo, sabemos que essa separação
é limitada e logo estaremos juntos com aquela pessoa amada novamente.
Mas daí vem a morte — e
aqueles dois fluxos de informação (memórias x apego)
entram literalmente em parafuso.
Conscientemente, sabemos que aquela
pessoa não está mais ali.
Mas as estruturas neurais relacionadas
ao apego sinalizam justamente o oposto. Após dias, semanas, meses,
anos, décadas de convivência, essa parte do sistema nervoso
cria uma noção de que o amigo/familiar/companheiro sempre
estará ali conosco.
E esse choque gera raiva, frustração,
estresse e todo o fluxo de sentimentos que marcam o processo de luto.
Em seu livro, O'Connor pontua que o
vínculo afetivo está registrado no nosso cérebro,
mais especificamente na conexão entre os neurônios. Segundo
ela, quando criamos amor por alguém, há uma mudança
física no contato entre essas células e até na
forma como certas proteínas atuam no sistema nervoso.
E, diante da perda de alguém
tão importante, todo esse arcabouço neuronal precisa ser
reorganizado, o que é custoso e demanda tempo e novas experiências
de vida (como conhecer outras pessoas para criar conexões inéditas).
O que roedores podem ensinar
Mas quais são as áreas
específicas do cérebro que estão relacionadas ao
luto?
Para encontrar respostas para essa pergunta, estudiosos de várias
partes do mundo se voltaram a uma espécie animal de características
únicas.
Falamos aqui dos arganazes-do-campo
(Microtus ochrogaster), roedores típicos da América do
Norte que são absolutamente monogâmicos — na contramão
de outros ratos e camundongos, que costumam adotar um comportamento
classificado como "promíscuo" pelos cientistas.
Quando um arganaz-do-campo escolhe um
parceiro, esse vínculo dura pela vida toda — ou até
que a morte os separe.
Essa característica, um tanto
incomum no reino animal — apenas 3 a 4% dos mamíferos do
planeta são monogâmicos — tornaram esses roedores
os modelos perfeitos para estudar o vínculo emocional e o que
acontece quando um dos parceiros parte dessa para outra.
"De uma perspectiva científica,
os arganazes reúnem as características perfeitas para
estudarmos o assunto. Eles têm esse comportamento carismático,
parecido ao de humanos, e possuem um tamanho similar ao de outros roedores,
o que permite o uso das técnicas avançadas de neurociência
que temos à disposição", conta Donaldson,
que possui um laboratório dedicado a estudar esses animais.
Entre as técnicas mencionadas
pela cientista, há a possibilidade de realizar exames de imagem
em tempo real do cérebro dos bichinhos, para ver como os neurônios
se comportam diante de diversas situações — como
quando eles são afastados do parceiro, por exemplo.
"Basicamente, o que diferencia
o luto de uma depressão é o anseio/saudade. No luto, há
um forte desejo de reencontrar aquele indivíduo, mesmo que isso
não seja mais possível", raciocina a pesquisadora.
"E por que há esse anseio? Porque estar reunido com aquele
ser é algo recompensador."
Quando alguém tão querido morre,
o cérebro continua a manifestar esse desejo de estar junto. Como
isso não é mais possível, surgem os sentimentos
típicos do luto, como a frustração, a tristeza,
a perda do prazer, a raiva…
Donaldson lembra que esses efeitos não
se limitam à cabeça — não à toa, a
morte de um familiar ou amigo costuma ser descrita pelos enlutados como
"a perda de um pedaço do corpo" ou "o aparecimento
de um buraco no coração".
"As emoções surgem
na cabeça, mas elas ganham formas fisiológicas. Elas mudam
a maneira como o corpo se expressa", observa a neurocientista.
"Há, por exemplo, a elevação do hormônio
cortisol, que acelera os batimentos cardíacos e diminui o apetite."
O núcleo accumbens (em laranja na ilustração)
parece ser prejudicado quando perdemos alguém que amamos
O neurobiólogo Oliver Bosch,
que também estuda arganazes-do-campo no Departamento de Neurobiologia
Molecular e Comportamental da Universidade de Regensburg, na Alemanha,
pondera que não é correto afirmar com todas as letras
que esses roedores passam pelo luto.
"Isso é algo que gostamos
de pensar, mas não podemos ter certeza absoluta", explicou
o cientista à BBC News Brasil.
"O que podemos dizer é que
os arganazes monogâmicos mostram sinais parecidos ao que vemos
em uma pessoa enlutada como, por exemplo, aumento nos níveis
de estresse, surgimento de passividade e uma variabilidade nos batimentos
cardíacos", detalha ele.
Em pesquisas no laboratório,
Bosch separou os roedores machos de suas parceiras.
"Observamos que o núcleo
accumbens, uma estrutura cerebral importante para o sistema de recompensa
e também para a formação do vínculo entre
um casal, ficava prejudicada nesses arganazes machos", conta o
pesquisador.
"Curiosamente, estudos com humanos que sofrem com luto prolongado
[saiba mais sobre o transtorno a seguir] mostram que pensar
na pessoa que faleceu também gerou uma ativação
do núcleo accumbens", complementa ele.
Os estudos feitos na Alemanha ainda revelaram que, após a separação,
o sistema de sinalização do estresse dos animais ficava
mais agitado — o que gerava uma inibição da ocitocina,
substância conhecida como hormônio do amor ou do afeto que
é fundamental para a formação do vínculo
entre duas pessoas.
Cientistas agora buscam entender o papel da dopamina, um outro neurotransmissor,
nesse processo.
"Queremos compreender como o luto é engatilhado e por que
algumas pessoas sofrem mais que outras", resume o neurobiólogo.
Um conflito complexo entre partes
do cérebro
Para a neurologista Lisa M. Shulman,
professora da Escola de Medicina da Universidade de Maryland, nos EUA,
a morte de alguém querido pode ser comparada a outros eventos
traumáticos — pelo menos do ponto de vista do funcionamento
da mente.
"O cérebro possui um sistema de vigilância que é
ativado diante de diferentes ameaças", diz a médica,
que é autora do livro Before and After Loss – A Neurologist's
Perspective on Loss, Grief, and Our Brain ("Antes e Depois
da Perda - A Perspectiva de uma Neurologista sobre Perda, Luto e Nosso
Cérebro", em tradução livre).
Esse sistema envolve partes neurais mais primitivas,
como a amígdala e o sistema límbico.
"Quando essas estruturas identificam algum nível
de ameaça, elas disparam um alarme", continua a médica,
em entrevista à BBC News Brasil.
Esse alarme pode ser interpretado como aquela série
de reações observadas nos arganazes monogâmicos
em laboratório — subida do cortisol, disparos no coração,
perda de sono, alterações de apetite, tristeza, catatonia…
Por outro lado, outras regiões cerebrais mais
avançadas, que estão relacionadas ao pensamento racional
— como o córtex pré-frontal — ficam enfraquecidas
e menos ativas.
"E essas alterações colocam o indivíduo
numa situação de grande ansiedade e hipervigilância",
observa Shulman.
A neurologista explica que esses traumas são
cumulativos e, embora a reação a cada morte seja algo
individual, certos padrões são observados independentemente
se a perda é súbita — por acidente ou homicídio,
por exemplo — ou após um longo processo de doença
— como no tratamento de câncer ou demência.
"Mesmo nos casos em que uma enfermidade se arrasta
por meses ou anos, e você vê o declínio daquela pessoa,
a morte ainda é impactante, porque é um momento definitivo,
impossível de antecipar", raciocina ela.
As reações ao luto são diversas
e não seguem uma 'receita de bolo', dizem especialistas
Mas esses padrões citados pela especialista
não significam que o luto siga uma espécie de "receita
de bolo".
Os famosos estágios do luto —
negação, raiva, negociação, depressão
e aceitação —, elaborados a partir do trabalho da
psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross com pacientes
que estão nos últimos dias de vida, não estão
escritos em pedra e tampouco respeitam fielmente uma ordem em todos
os que sofrem pela perda de alguém querido.
Um dos estudos que testou esse conceito
foi publicado em 2010 por especialistas do Centro de Avaliação
em Cuidados de Saúde VA Palo Alto e do Centro Médico da
Universidade Stanford, nos Estados Unidos.
Ao analisar mais de 600 participantes,
os autores não encontraram evidências de que todos experimentaram
aqueles estágios do luto.
"Nossa pesquisa sugere que as vivências
relacionadas ao luto são muito mais diversas do que um modelo
estrito de estágios", resume o psicólogo Jason Holland,
um dos autores do artigo.
Um detalhe que chamou a atenção
dos especialistas no estudo foi o que eles chamaram de "reação
de aniversário", marcada pelo aumento repentino do estresse
e pela redução no nível de aceitação
da morte.
Os dados levantados nos EUA apontam
que, curiosamente, as datas próximas ao segundo ano após
o falecimento costumam ser as mais complicadas.
"Nós ficamos surpresos que
a reação de aniversário foi mais aparente no segundo
ano do que no primeiro", confessa Holland.
"Isso pode sugerir alguns desafios
particulares ao enlutado neste segundo ano, talvez porque aquele suporte
inicial recebido nos primeiros meses após a morte se esvai aos
poucos", especula o psicólogo.
É possível superar
o luto?
Para O'Connor, o luto pode ser encarado
como uma espécie de aprendizado.
Com o tempo, o choque entre as memórias
concretas e os sistemas da teoria do apego se ameniza e o cérebro
se reconfigura para lidar com a ausência.
E o tempo é uma palavra-chave
aqui. Nosso sistema nervoso (ou ao menos a parte que lida com o apego)
precisa entender de fato que aquele ser amado se foi — e, claro,
vai demorar um pouco para se acostumar com essa falta.
Esses períodos também
são valiosos para entender a nossa própria personalidade
diante de um novo cenário e o que significa estar neste "novo
mundo" após a morte.
Afinal, quando perdemos uma mãe,
nosso papel de filho se modifica ou ganha novas perspectivas. Um homem
cuja mulher morreu passa a ser viúvo; e assim por diante.
Além de tempo, O'Connor entende
que esse processo requer experiência. Aos poucos, a pessoa segue
a vida, se engaja em novas atividades e faz conexões valiosas
com outros indivíduos — claro, sem deixar de lembrar as
experiências e vínculos passados.
Holland entende luto e aceitação
como "os dois lados de uma mesma moeda".
"A partir desse ponto de vista,
podemos entender o luto como uma reação emocional que
surge a partir das dificuldades em aceitar a perda, que tendem a amenizar
com o tempo, conforme os enlutados processam e dão sentido ao
que aconteceu", explica ele.
Mas existem algumas pessoas que não
conseguem superar essa fase. Elas vivem no que é chamado na psiquiatria
de luto profundo ou transtorno do luto prolongado.
Resgatar ou criar novas conexões é
uma maneira de superar o luto
A médica Katherine Shear dirige
um centro de pesquisas sobre esse distúrbio na Universidade Columbia,
nos EUA, e estima que o quadro afeta entre 3% e 20% das pessoas que
perderam alguém importante.
"É um tanto paradoxal pensar que podemos
reagir tão fortemente à ausência", reflete
ela.
"Quando perdemos alguém importante, perdemos
a sensação de segurança, de cuidar e ser cuidado",
complementa a psiquiatra.
A especialista explica que, mais do que uma suposta
demora para encontrar alívio, o transtorno do luto prolongado
é definido pela intensidade dos sintomas e os impactos que eles
trazem no bem-estar e na vida do paciente.
"E, nos nossos estudos, ainda não encontramos
diferenças no transtorno entre pessoas que perderam alguém
de forma súbita e violenta ou quando a morte vem após
uma doença que se prolongou por um período maior. Quando
a condição se instala, ela é praticamente a mesma
em ambos os cenários", compara Shear.
A médica também desenvolveu um sistema
de tratamento desses casos, que é dividido em uma série
de etapas.
"Nós basicamente separamos o processo em
marcos da recuperação", começa ela.
"A primeira etapa envolve a aceitação
do luto como parte natural da vida, sem julgamentos. Depois, tentamos
abrir caminhos para mostrar que a vida ainda pode ter propósito,
significado, alegria e satisfação, mesmo que aquela pessoa
tão querida não esteja mais aqui", continua a médica.
Na sequência, a terapia desenhada por Shear incentiva
o paciente a iniciar ou reconstruir relacionamentos que possam ser significativos
— enquanto celebra e valoriza os significados e valores das histórias
passadas.
Claro que esse tratamento não é linear
— e pode ser que alguns indivíduos voltem algumas casas
ou precisem de um suporte maior em determinada etapa.
Para Donaldson, que estuda os roedores monogâmicos,
todo esse processo pelo qual passamos (ou vamos passar) tem como objetivo
"transformar memórias dolorosas em lembranças agridoces".
Ou, como diz a própria canção
Muerte, de Natalia Lafourcade, a morte não apenas nos
ensina a viver: ela nos convida a sair e a decifrar a nossa própria
sorte.
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/articles