"É uma obra que com certeza veio elucidar
algumas coisas, que eram talvez desconhecidas. Mas é uma literatura
bastante forte, bastante impactante. Estudando a doutrina, a gente
vê que não funciona bem dessa forma", aponta Maria
Cecilia.
"Eu acho que não é esse caminho.
Eu acredito muito mais na misericórdia divina", diz, indicando
acreditar que o filho foi perdoado pelo ato.
O suicídio é visto no espiritismo
como um ato repreensível — embora se admita algumas atenuantes
— desde as obras organizadas pelo fundador da religião,
o francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido
por seu pseudônimo Allan Kardec (1804-1869)
A história de Maria Cecilia e a forma como
os espíritas tratam o suicídio são o tema da
terceira reportagem da série “Suicídio & Fé”,
que aborda o tabu religioso com o ato, com foco nas religiões
com mais adeptos no Brasil.
A primeira reportagem mostrou que, por séculos,
o suicídio
foi visto como um pecado pela Igreja Católica.
Até 1983, havia um documento oficial determinando que suicidas
não recebessem ritos funerários normais, como a missa
de sétimo dia.
Igrejas
evangélicas veem o suicídio como um pecado,
de acordo com especialistas ouvidos na segunda reportagem da série.
Há relatos de que é comum, nesse meio, escutar que alguém
que se suicidou vai para o inferno.
O número de suicídios no país
vem aumentando ano a ano desde 2016, segundo dados do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. Apenas em 2022, houve
16.262 mortes.
Um estudo publicado na revista científica The
Lancet Regional Health Americas em fevereiro mostrou que a
taxa anual de suicídios a cada 100 mil habitantes no Brasil
cresceu em média 3,7% entre 2011 e 2022.
As religiões têm, como apontam especialistas,
uma forte influência não apenas na forma como as pessoas
lidam individualmente com o suicídio, mas também em
como as famílias lidam com a perda de quem tirou a própria
vida.
O que dizem os textos espíritas
Vários livros importantes de Kardec abordam
o suicídio.
Neles, tanto as mensagens relatadas
como recebidas dos espíritos quanto as anotações
de Kardec indicam que o suicídio contraria as leis divinas
e gera algum tipo de punição ao espírito de quem
se matou.
Em O Céu e o Inferno,
são frequentemente usadas palavras como "castigo"
e "pena" para quem se mata.
Um trecho diz ser comum que espíritos de suicidas sintam vermes
corroendo o corpo, embora as consequências do ato variem de
"duração e intensidade conforme as circunstâncias
atenuantes ou agravantes da falta".
Em outro, é dito que "longa e terrível
deve ser a pena dos culpados por se terem voluntariamente refugiado
na morte para evitar a luta" — nesse caso, referindo-se
especificamente ao caso de suicidas que tenham escolhido essa saída
para escapar de forma honrosa de alguma situação.
No Livro dos Espíritos, médiuns
fazem uma série de perguntas sobre o ato de se matar.
Os espíritos respondem que o suicídio
"voluntário" seria uma "transgressão"
do direito de Deus sobre a vida — "voluntário"
demarcaria a diferença do "louco que se mata" e "não
sabe o que faz".
Também afirmam que "muito diversas são
as consequências do suicídio".
"Não há penas determinadas e, em
todos os casos, correspondem sempre às causas que o produziram.
Há, porém, uma consequência a que o suicida não
pode escapar: é o desapontamento", respondem os espíritos,
segundo o livro de Kardec.
"Mas, a sorte não é a mesma para
todos; depende das circunstâncias."
Trecho de 'O livro dos espíritos' aborda
o suicídio
A historiadora e socióloga
Celia Arribas, que estudou o espiritismo em seu mestrado e doutorado,
resume que, do ponto de vista de Kardec, a escolha pelo suicídio
seria uma "triste ilusão" — e isso tem a ver
com a perspectiva de duração da vida para a religião.
"O espiritismo traz uma visão
de que a vida é praticamente eterna, no sentido de que a gente
tem várias existências: o que morre é o corpo,
e não a alma", diz Arribas.
"Não teria muito sentido
se pensar em suicídio, porque o espírito continuaria
vivo com as suas angústias, suas dores."
Arribas, que é professora da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explica que Kardec considerava
que sua produção tinha um caráter científico
— por isso, embora os livros dele sejam vistos como um "farol",
obras posteriores são bem-vindas.
"Há um princípio
proposto pelo Kardec de que o espiritismo precisaria sempre estar
ao lado da ciência e dos avanços científicos.
Isso abre a possibilidade de uma renovação constante."
Assim, um livro como Memórias
de um suicida pode ganhar a dimensão que tomou, popularizando
a ideia de que existe um "Vale dos Suicidas" — descrito
na obra como um lugar onde a alma de quem se matou passa por um período
de punição e sofrimento.
"O livro tem um cenário bastante
excessivo, que olha para os suicidas condenando essas pessoas”,
diz Arribas.
"Essa é uma visão
que não necessariamente Kardec defendia, mas a gente tem uma
certa autonomia do espiritismo no Brasil."
O livro da médium Yvonne do
Amaral Pereira foi lançado em 1956. A obra, publicada pela
Federação Espírita Brasileira (FEB), já
teve 27 edições em português e foi traduzida para
inglês e francês, além de adaptado para radionovelas.
"Não havia então
ali, como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem
esperança: tudo em seu âmbito marcado pela desgraça
era miséria, assombro, desespero e horror", diz um trecho
do livro que descreve o Vale dos Suicidas.
"Aqui, era a dor que nada consola,
a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que
ideia alguma tranquilizadora vem orvalhar de esperança! Não
há céu, não há luz, não há
Sol, não há perfume, não há tréguas!",
diz outro trecho.
'Memórias de um suicida' já tem
27 edições publicadas
Após um intenso período
de sofrimento, os espíritos de suicidas do livro pouco a pouco
— ainda no mundo espiritual — refletem sobre sua decisão
e passam por uma espécie de tratamento, com mentores e até
uma universidade que os ajudam a se preparar para uma nova encarnação.
O Vale dos Suicidas também
foi retratado na TV brasileira na novela A Viagem, exibida primeiro
pela Tupi e depois em uma reedição pela Globo, que completa
30 anos esse mês e será reexibida este ano pelo canal
Viva.
O personagem Alexandre sofre as consequências
de seu suicídio no Vale — um lugar onde se escuta gritos,
o fogo arde, moribundos perambulam e o personagem é torturado.
Herança católica
no espiritismo
Um trecho no início do livro 'Memórias
de um suicida' afirma que o
Vale dos Suicidas seria um lugar de 'miséria, assombro, desespero
e horror'
Arribas lembra de outro livro posterior
a Kardec, Missionários da Luz, do médium Chico
Xavier.
"O livro traz o relato de um suicida que
também vai descrever que ele vivia num vale de trevas, de aprisionamento,
de muita dor”, diz a socióloga.
"Então, a gente tem essas
trilhas um pouco pesadas, deterministas, condenatórias [para
suicidas], que têm a ver com a tradição católica
de pensamento."
A pesquisadora explica que algumas
crenças do catolicismo e do espiritismo têm semelhanças,
mas também diferenças. Por exemplo, enquanto o castigo
de uma alma é eterno na crença da Igreja Católica,
no espiritismo é transitório.
"O céu e o inferno não
existem para o espiritismo. A ideia é que são estados
mentais para onde os espíritos acabam indo por conta da semelhança
vibratória", explica Arribas.
Sociólogo e um dos diretores
da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas (SBEE), Rui Simon
Paz diz que ele e colegas da entidade não acatam a crença
de que exista um Vale dos Suicidas ou o umbral — também
comumente apontado como um lugar transitório de sofrimento
para espíritos de suicidas.
Simon Paz aponta que essas crenças
têm origem no que chama de "ranço" da cultura
católica no Brasil, trazendo ideias de punição
e castigo.
Na SBEE, são priorizadas as
obras de Kardec e sucessores de uma época próxima, como
Camille Flammarion (1842-1925), Léon Denis (1846-1927), Ernesto
Bozzano (1862-1943) e Gabriel Delanne (1857-1926) — que, segundo
o sociólogo, perpetuaram a leitura de Kardec sobre o suicídio.
Embora as obras de Kardec indicassem
algum tipo de punição para os suicidas, Simon Paz diz
que é preciso sempre levar em consideração o
contexto dos livros.
"Toda obra sofre o curso do tempo",
diz o membro da SBEE. "A comunicação é uma
integração de 50% do espírito, 50% do médium.
Mas a estética que será registrada é a estética
do médium, e essa estética envelhece."
"Não vemos [o suicídio]
como castigo, vemos como um passivo", explica, falando em nome
da entidade.
"Você se ausentou antes
do tempo que deveria permanecer aqui, e, ao mesmo tempo, deixou de
fazer o seu crescimento. É como se você abandonasse um
curso na metade do ano, trancasse matrícula: vai ter que voltar
para refazer", diz, acrescentando que esse passivo pode ser "difícil",
mas tem sempre um "sentido construtivo".
'Um ato falho e humano'
'Lembro do meu filho com alegria', diz Maria Cecilia, que tem pela
casa várias
fotos do jovem, além de pinturas e desenhos feitos por ele
Ao adentrar no apartamento de Maria
Cecilia Cencini, logo percebe-se de certa forma a presença
do filho dela ali — em fotos e em muitas pinturas e desenhos
que ele, que era ilustrador, fez e estão expostos pela casa.
Também não há
uma fala sobre ele que pareça vir sem alguma emoção
— às vezes saudade, às vezes carinho, talvez um
choro contido que não chega e desaguar e, muitas vezes, sorrisos.
"Eu lembro do meu filho com alegria",
diz a mãe, ao mostrar uma foto dele que diz sempre despertar
um sorriso nela.
Diferente de muitas famílias
enlutadas pelo suicídio que ela conheceu em grupos de apoio,
Maria Cecilia diz que não quis passar a evitar e isolar o quarto
do filho onde ela própria encontrou o corpo.
Cerca de um mês após
o suicídio, ela doou as roupas e materiais de trabalho dele
e passou a usar o espaço como seu escritório. Para ela,
que tem mais uma filha, essas atitudes exemplificam sua crença
de que já havia sido preparada no plano espiritual para esta
morte.
"Dentro da doutrina espírita,
a gente já vem para a vida com um roteiro programado. Aquilo
que não está definido depende do livre arbítrio.
Acho que realmente fui preparada para esse momento da minha vida",
diz a tradutora.
"Transformei o quarto dele no
meu escritório. Fiz questão disso, porque o meu filho
não se resumia àquilo ali. Eu trouxe a minha força
de trabalho aqui para dentro", conta.
Ela também deixou ali no cômodo, no cavalete, a última
pintura que o filho fez antes de morrer — que mostra uma mulher
com os olhos fechados, aparentemente em prece e com um manto.
Na base, ela deixou vários pequenos objetos
que a lembram dele, como um cachorrinho de brinquedo que ele gostava
e uma foto 3x4 do jovem.
O filho dela tomava antidepressivos, mas Maria Cecilia
desconfia que ele tivesse um transtorno bipolar que não foi
diagnosticado corretamente. A tradutora está cursando uma pós-graduação
em Suicidologia para entender o que aconteceu com o filho.
"O estado de saúde dele se agravou com
a pandemia: ele ficou mais recluso e tinha medo de sair na rua",
relata a mãe.
Maria Cecilia acredita que o filho agora está
passando por um período de aprendizado, guiado por espíritos
bondosos que estão ajudando-o a refletir sobre o ato do suicídio
e preparando-o para uma futura encarnação.
"Não digo que não haja um período
de sofrimento para o espírito quando ele desencarna, porque
existe uma confusão", diz a tradutora, dizendo que espíritos
desencarnados de várias formas, não só pelo suicídio,
passam por um período de angústia para entender onde
estão e o que aconteceu com eles.
"Mas isso é absolutamente normal. É
nesse ponto que o espírito é auxiliado [por espíritos
benfeitores]."
A tradutora cursou por anos uma formação
em espiritismo, que ela prefere definir como uma doutrina de vida
em vez de religião.
Dos escritos de Kardec, Maria Cecilia foca nos "atenuantes"
que podem suavizar as consequências do suicídio para
o espírito.
"A bondade de coração dele [do
filho] com certeza contribuiu para ele hoje estar bem", diz a
tradutora.
Ela também destaca a diferenciação
que Kardec faz entre o suicídio voluntário e a decisão
de um "louco".
"Simplesmente todas as pessoas que tinham qualquer
tipo de transtorno mental eram classificadas como louca", aponta
a tradutora, referindo-se à época das obras de Kardec.
"Então, o 'louco' é acolhido, é
perdoado, porque ele tem um transtorno."
Para Maria Cecilia, o suicídio é um
"um ato falho e humano de um espírito que estava com sérios
comprometimentos".
Segundo ela, o espiritismo foi importantíssimo
no luto.
"Quem tem fé e entende o propósito
das coisas na vida consegue superar as dificuldades e buscar dentro
delas o aprendizado", afirma a tradutora.
"E quando você vibra amor, faz chegar isso
até o seu ente querido desencarnado. Ele recebe todos os seus
bons pensamentos, todas as suas preces."
"Aprendi a me dirigir ao meu filho como 'meu
filho amado'. Quando repito isso, sinto que vai direto para ele. Sinto
como se saísse do meu coração uma luz de amor
que chega até ele", diz a mãe.
O suicídio é abordado por vários
livros fundamentais do espiritismo
O espiritismo é a terceira
religião com mais seguidores no Brasil, atrás do catolicismo
e das igrejas evangélicas.
Tem 3,8 milhões de adeptos,
cerca de 2% da população segundo o Censo 2010. Houve
um aumento em relação ao Censo 2000, quando os espíritas
eram 1,3% da população, ou 2,3 milhões de pessoas.
Mas Celia Arribas afirma que o número
é na prática maior, porque, na pesquisa demográfica,
o participante geralmente só indicava uma religião,
e não várias.
Segundo o IBGE, no Censo 2010, os
entrevistados até podiam declarar pertencer a várias
religiões, mas os funcionários responsáveis por
coletar os dados não tinham sido tão bem orientados
sobre essa possibilidade quanto em 2022 (cujos resultados sobre religião
ainda não foram divulgados).
"As pessoas transitam no centro
espírita. Muitas. Há uma forte circulação
de livros espíritas, e as pessoas leem sem necessariamente
se autodeclararem espíritas”, diz a pesquisadora.
"Tem o que a gente chama de simpatizantes
do espiritismo, e aí essa quantidade aumenta absurdamente,
não vai ficar só em 2%."
Bruno*, de 46 anos, é uma das
pessoas que está fora desses 2%, mas diz ter uma afinidade
com o espiritismo e conhecimento sobre a religião.
Ele cresceu em uma família
católica, deixou de seguir essa fé, mas afirma seguir
uma "crença cristã".
Em junho de 2023, o irmão de
Bruno se matou, aos 42 anos. Ele enfrentava uma depressão,
frustrações profissionais e a perda do pai e da mãe
em um curto período de tempo.
Bruno acredita que o irmão
não estava seguindo o tratamento para depressão corretamente.
Antes da morte, Bruno já tinha
se aproximado do espiritismo com a leitura de livros de Kardec, Chico
Xavier e do médium Divaldo Franco — mas nunca foi a um
centro espírita.
Foi então que, após
a perda, ele buscou na internet qual seria o destino de alguém
que se matou segundo o espiritismo.
"Quando ocorreu o problema com
meu irmão, fui procurar saber. Eu queria uma explicação",
diz Bruno.
Ele chegou então a um vídeo
com milhares de visualizações em que um influenciador
espírita fala das possíveis consequências para
a alma de um suicida.
Entre elas, a obrigação
de conviver por décadas, no plano espiritual, com o próprio
corpo em decomposição e, ao reencarnar, sofrer com doenças
debilitantes.
"Ele era uma pessoa boa, não
fazia mal a ninguém. Um cara totalmente do bem. Conheço
pessoas muito piores. Por que ele [meu irmão] sofreria tanto?",
questiona Bruno.
"Acho que se ele parasse para
pensar mais meia hora, talvez ele não tomaria aquela atitude",
diz.
"Será que por uma decisão
tomada de supetão, a pessoa pode ser condenada a passar por
um martírio após a morte?"
Bruno conta que, até hoje,
não está "lidando muito bem" com a perda.
"Penso nele todos os dias. Acho
que penso em todas as horas. Tenho muita pena dele, né? Queria
tanto que ele tivesse conversado comigo...”, lamenta.
Bruno relata frequentemente pedir
a Deus que dê algum "sinal" de como seu irmão
está.
"Queria sentir que ele tá
bem. Como está o espírito dele? Será que está
sofrendo? Está arrependido?", indaga.
Alento e dor
Celia Arribas cita que começaram
a surgir nos últimos anos autores e obras espíritas
que tratam do suicídio com "um pouco mais de sensibilidade".
Ela vê isso com bons olhos,
porque leituras como a de Memórias de um Suicida intensificaram
sua própria dor.
A mãe de Arribas se suicidou quando a
socióloga tinha 20 anos. Seu irmão fez o mesmo duas
décadas depois.
A pesquisadora procurou o espiritismo no final da
vida da mãe para entender melhor o adoecimento mental dela,
que tinha transtorno afetivo bipolar.
Hoje, Arribas sê vê mais como estudiosa
do que praticante do espiritismo.
Mas a socióloga diz que a religião teve
um papel misto no seu luto — em alguns momentos, trouxe alívio
e, em outros, dor.
"O espiritismo foi muito reconfortante para tentar
entender algum sentido para morte, para dar uma explicação
de que a vida continua e para eu não adoecer fisicamente."
"São princípios que me confortaram
e me confortam até hoje."
Por outro lado, Arribas conta ter
abandonado a leitura de Memórias de um Suicida quando
a morte da mãe ainda era recente.
"Eu falei: ‘Não, não tem condição’.
Mas foi por conta disso que pensei: 'Bom, será que é
só essa visão mesmo?'”, afirma a pesquisadora.
"Aí, fui tentando estudar,
entender, e não fiquei só nas explicações
espíritas."
Rosana Amado Gaspar, presidente da
União das Sociedades Espíritas do Estado de São
Paulo (USE-SP) e membro da Federação Espírita
Brasileira (FEB), cuja editora publica Memórias de um suicida,
não recomenda que a obra seja lida por quem tenha acabado de
perder uma pessoa por suicídio.
A editora tem outros livros que retratam
o sofrimento de espíritos suicidas, como O martírio
dos suicidas e Suicídio e vida após a morte:
amargura e remorso de poetas suicidas.
'As pessoas ficam amedrontadas, mas ele [o livro]
está contando a história de um
grupo de espíritos que estão naquela região',
diz Rosana Gaspar sobre 'Memórias de um suicida'
Gaspar destaca que Memórias
de um Suicida não retrata um destino único no mundo
espiritual — o Vale dos Suicidas — para quem se mata e
mostra, no final, o perdão divino para quem tira a própria
vida.
"As pessoas ficam amedrontadas, mas o livro
está contando a história de um grupo de espíritos
que estão naquela região", diz.
Gaspar ressalta que os livros de Kardec preveem destinos
variados para as almas de suicidas.
"A pessoa que está pensando no suicídio,
ao ler uma obra dessa [Memórias de um Suicida], fala
assim: 'Esse grupo teve essa experiência ruim. Então,
eu não vou ter essa mesma experiência'. Ele faz uma prevenção",
afirma.
"E o Memórias de um Suicida é interessante
porque, quando o espírito realmente se arrepende, ele conta
com a misericórdia divina."
Na doutrina espírita, explica Arribas,
Deus não é necessariamente uma figura personificada,
mas tem papel importante.
"No espiritismo, não há esse Deus
com barba branca, esse homem gigante. É uma força, é
algo que não tem forma, que seja. Mas é Deus: onipresente,
onipotente, onisciente", esclarece a socióloga.
"A figura de Cristo também é muito
central no sentido de uma moral. Tanto que a ideia de caridade se
espelha na vivência do Cristo."
Gaspar afirma que, para o espiritismo, o suicídio
é uma "transgressão à lei de Deus",
mas não existe o conceito de pecado.
"Nada no espiritismo é proibido",
diz ela, destacando que o que há são "consequências".
Gaspar afirma que iniciativas pela prevenção
ao suicídio de organizações espíritas
normalmente se juntam a "campanhas de valorização
da vida" que se colocam contra o aborto e a eutanásia.
Uma dessas iniciativas fez surgir, em 1962, uma das
organizações brasileiras mais conhecidas na prevenção
ao suicídio: o Centro de Valorização da Vida
(CVV).
A entidade, que atende gratuitamente em regime de
plantão pessoas que pensam em se matar, nasceu da iniciativa
de uma turma da Escola de Aprendizes do Evangelho da Federação
Espírita do Estado de São Paulo (Feesp).
Jacques Conchon (1942-2018), fundador do CVV, foi
quando jovem o responsável por mobilizar os colegas para a
iniciativa.
A ideia foi inspirada no trabalho da organização Samaritans
em Londres, comandado pelo sacerdote anglicano Chad Varah.
Assim, no início, a maioria dos primeiros voluntários
do CVV era espírita, mas isso foi mudando com o tempo.
Carlos Correia, voluntário do CVV desde 1992
e porta-voz da organização, conta à BBC News
Brasil que os voluntários usavam no começo um número
de telefone da própria Feesp.
Ele relata também que, por motivos naturais,
a iniciativa começou a circular primeiro no meio espírita.
"Claro, o espaço que eles tinham inicialmente
para divulgar o trabalho eram os meios de comunicação
espíritas, e naturalmente os leitores também eram."
Entretanto, Correia garante que a doutrina religiosa
nunca teve muito espaço no CVV.
"Não havia um lado espiritual, religioso,
no sentido da doutrina espírita, mas sim o princípio
de ajuda ao próximo", afirma.
Ele acrescenta que, com o passar do tempo, o vínculo
com o espiritismo foi desaparecendo.
"Eles perceberam que tinham que desvincular [da
religião] para ampliar o crescimento, para acolher a todos.
Isso [o caráter religioso] poderia ser uma barreira, porque
as pessoas poderiam pensar que teria uma doutrinação",
explica Correia.
Lidando com o luto e com a fé
Para a psicóloga Karen Scavacini, doutora pela
Universidade de São Paulo (USP), as religiões em geral
têm o potencial de ajudar na prevenção do suicídio
e nos cuidados com quem perdeu alguém que se matou, a chamada
posvenção.
"Quanto mais religiosos falando abertamente sobre
suicídio, sobre as questões de saúde mental,
e mostrando através da sua fala e de seus atos que essas pessoas
precisam ser cuidadas e acolhidas, cada vez mais a religião
se torna um fator de proteção", defende Scavacini,
fundadora e diretora do Instituto Vita Alere de Prevenção
e Posvenção do Suicídio.
A psicóloga diz que há muitas evidências
científicas de que a espiritualidade auxilia a prevenir o suicídio
por trazer esperança e sentimento de pertencimento a uma comunidade,
dentre outros fatores.
Mas Scavacini afirma que, quando as religiões
trazem "vergonha e exclusão" relacionadas ao suicídio,
elas se tornam prejudiciais.
O impacto da religião em quem perdeu uma pessoa
por suicídio pode ser particularmente "devastador",
diz a psicóloga.
É uma situação que ela diz já
ter testemunhado muitas vezes no consultório.
"Os enlutados trazem muitas experiências.
A própria fala de que foi 'Deus que quis'. Que Deus é
esse que quer que alguém que se mate? Não faz sentido.”
As famílias compartilham com Scavacini muitas
histórias de falas inapropriadas em velórios e cerimônias
religiosas.
"São falas que colocam na família,
que já está passando por essa perda absurda, a culpa
de ter ocorrido esse suicídio."
Outra fonte de sofrimento é justamente o destino
que terão as almas das pessoas que se suicidaram.
"Primeiro, lógico, há um acolhimento,
mas depois [o estímulo a] um pensamento mais crítico
do que faz sentido para ela. O que pode acalmar o seu coração?
O que vai te ajudar nesse processo de luto?", exemplifica.
"Então muitas famílias chegam à
conclusão de que aquela crença ainda não conseguiu
entender exatamente o que é o suicídio e que não
pode falar que aquela pessoa está em sofrimento."
No espiritismo, essa pergunta sobre o destino de uma
pessoa que se suicidou muitas vezes encontra alívio nas cartas
psicografadas — mensagens enviadas por um espírito por
meio de um médium.
Scavacini relata ser muito comum pessoas enlutadas
pelo suicídio buscarem essas cartas, mesmo quem não
é espírita.
"Na maioria das vezes, elas recebem mensagens
de que a pessoa está bem. Para o enlutado, é um alívio
enorme", diz a psicóloga.
Ela destaca que, na terapia, não importa tanto
o questionamento sobre a veracidade dessas cartas e sim como isso
vai ajudar no processo de luto.
Mas ela diz ser preocupante quando há a cobrança
de valores muito altos em dinheiro para receber cartas psicografadas.
"Tem locais onde não se cobra nada e tem
pessoas que cobram valores absurdos. Aí também é
nosso papel olhar e trazer um pouco de reflexão", diz.
"Como psicóloga, sempre vou tentar entender
qual é o papel da espiritualidade, da religiosidade na vida
daquela pessoa. Se perceber que tem um valor positivo, isso vai estar
dentro do meu tratamento", conclui.
O caminho que inclui refletir e às vezes superar
o que diz uma religião sobre o suicídio, citado pela
psicóloga, foi exatamente a trilha pela qual Bruno passou depois
da morte do irmão.
"Tá certo que [o suicídio] é
uma atitude antinatural. Mas a gente vê que Deus é misericordioso.
Jesus na cruz falou para o ladrão: 'Se se arrependeu de coração,
eu te digo hoje, estarás comigo no paraíso'", diz
Bruno.
"Então, essa fala de Jesus é contraditória
com essa afirmação do Vale dos Suicidas. Sempre me pauto
por Cristo, as ações dele no Evangelho, e me pergunto:
'Como ele lidaria com esse assunto hoje?'"
*Nome fictício, a pedido do entrevistado
**Esta reportagem faz parte da série "Suicídio
& Fé", que aborda o tabu religioso com o ato, com
foco nas religiões com mais adeptos no Brasil. Leia mais aqui.
***Caso seja ou conheça alguém que
apresente sinais de alerta relacionados ao suicídio, confira
alguns locais para pedir ajuda:
- O Centro
de Valorização da Vida (CVV), por meio do telefone
188, oferece atendimento gratuito 24h por dia; há também
a opção de conversa por chat, e-mail e busca por postos
de atendimento ao redor do Brasil;
- Para jovens de 13 a 24 anos, a Unicef oferece também
o chat Pode
Falar;
- Em casos de emergência, outra recomendação
de especialistas é ligar para os Bombeiros (telefone 193) ou
para a Polícia Militar (telefone 190);
- Outra opção é ligar para o
SAMU, pelo telefone 192;
- Na rede pública local, é possível
buscar ajuda também nos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS), em Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades
de Pronto Atendimento (UPA) 24h;
- Confira também o Mapa
da Saúde Mental, que ajuda a encontrar atendimento
em saúde mental gratuito em todo o Brasil.
Leiam também de Pedro
Camilo Figueiredo
"Espiritismo
em xeque: Em torno da reportagem da BBC Brasil sobre a visão
espírita do suicídio"