* * *
Um grupo de amigos e estudiosos
que conviveram com o médium Chico Xavier garante que uma
pesquisa identificou adulterações em 117 livros reeditados
pela Federação Espírita Brasileira (FEB), a
entidade máxima entre os espíritas. A avaliação
desse grupo é que os prejuízos doutrinários
com a leitura desses volumes são muito maiores do que as
perdas financeiras com o descarte das obras. A FEB não cogita
o descarte das obras, afirmando que não há razão
alguma para se desfazer das publicações.
O ponto chave no debate é saber se as mudanças descaracterizam
os textos originais. Geraldo Campetti, responsável pela editora
que imprime a obra de Chico Xavier, destaca que o trabalho editorial
da instituição é histórico.
— Atualizações ortográficas e correções
gramaticais e semânticas foram realizadas, naturalmente, no
decorrer das publicações, dentro dos critérios
de seriedade que uma editora deve adotar. Falar em "adulteração",
com a carga pejorativa do termo, evidentemente não cabe,
considerando o cuidadoso processo de edição das obras
psicografadas por Chico Xavier e publicadas pela FEB — pondera
Campetti, que garante ter sido mantido o pensamento e estilo dos
autores.
O pesquisador Nuno Emanuel diz que as mudanças adulteram
em termos literários e doutrinários. As mais graves
discrepâncias estariam na coleção “O Evangelho
por Emmanuel.”
— Em termos jurídicos são adulterações.
Basta consultar leis básicas de direito autoral e moral.
A FEB reuniu todos os livros, de várias editoras, em que
Emmanuel cita centenas de trechos evangélicos do Novo Testamento,
para em função da tradução que ele escolheu,
fazer os respectivos comentários. O que a FEB fez? Eliminou
a tradução de Emmanuel. Substituiu-a por duas traduções:
uma da FEB para cinco volumes e outra católica para outros
dois volumes. Ambas as traduções bem diferentes do
livro original de Emmanuel, com centenas de palavras diferentes.
Resultado: o que Emmanuel comenta perde todo o sentido — afirma
Nuno.
Advogados da família de Chico Xavier acionaram a FEB, em
2022, questionando as alterações. As partes chegaram
a um acordo, sob a condição de sigilo, em que as mudanças
realizadas nas republicações mais recentes passariam
pelo crivo de uma comissão constituída de representantes
da União Espírita Mineira e da própria FEB.
Quais mudanças foram feitas
O grupo de estudiosos da obra de Chico Xavier fez comparações
das edições originais com as edições
mais recentes, publicadas depois de 2012.
Na coleção "Fonte Viva", por exemplo, publicada
originalmente em 1950, há no capítulo 38, a frase
"...em dolorosos atritos, assumindo escabrosos débitos...".
A mesma frase, após 2012, passou a ser "...em dolorosos
atritos, provocando escabrosos débitos...".
Nesse caso, os pesquisadores defendem que "assumir" é
tomar para si. Já provocar é estimular, incitar alguém
a fazer algo. Haveria, portanto, uma alteração de
significado da frase.
Outro exemplo está na coleção "O evangelho
por Emmanuel", publicada em 1952. No capítulo 112, do
volume 7, lê-se: "E à ciência, a temperança;
à temperança, a paciência; à paciência,
a piedade." Após 2012, esse trecho passou a ser publicado
como: "Ao conhecimento o autodomínio, ao autodomínio
a perseverança, à perseverança a piedade."
Para os pesquisadores, houve uma troca de palavras que impede o
entendimento do raciocínio do autor.
Um terceiro exemplo está no capítulo 156, do volume
6 de "O evangelho por Emmanuel". No original de 1952 foi
publicado: "Que cada um de vós saiba possuir o seu vaso
em santificação e honra." Já nas edições
posteriores a 2012 a construção foi mudada para: "Que
cada qual saiba tratar a própria esposa com santidade e respeito."
Para os pesquisadores, trocar "vaso" por "esposa"
tira todo o sentido do comentário de Emmanuel.
Veja no quadro outras mudanças e os
comentários dos pesquisadores:
Chico Xavier: Denúncia de adulterações
em livros psicografados divide comunidade espírita
Responsável pelas reedições,
Federação Espírita Brasileira garante que obras
receberam apenas atualizações; críticos chegam
a defender a incineração dos exemplares
Se existir mesmo vida após a morte, Chico Xavier deve estar
muito preocupado no "Nosso lar", lugar para onde seguiriam
os bons espíritos e título do maior best-seller que
psicografou, sucesso também no cinema. Tudo porque parte
de sua obra está no centro de um acalorado debate entre estudiosos
e seguidores da doutrina de Allan Kardec. Um grupo de amigos e estudiosos
que conviveram com o médium garante que uma pesquisa identificou
adulterações em 117 livros reeditados pela Federação
Espírita Brasileira (FEB), a entidade máxima entre
os espíritas.
Entre os pesquisadores e amigos de Chico que querem ver esses livros
fora das prateleiras estão expoentes do espiritismo como
o médium Carlos Baccelli e Sonia Barsante. A avaliação
desse grupo é que os prejuízos doutrinários
com a leitura desses volumes são muito maiores do que o financeiro.
— Defendo que as obras adulteradas, após 2012 com
maior intensidade, deveriam ser todas retiradas do mercado, para
que as pessoas não tenham mais acesso a elas e ninguém
mais possa ser enganado — observa Roberto Salgado Filho, presidente
do Lar Espírita Jarbas Leone Varanda, de Uberaba (MG), que
participou do levantamento.
Alguns defendem até mesmo a incineração dos
livros, como já ocorreu com outra publicação
considerada inadequada.
— Quando a anterior direção da União
Espírita Mineira (UEM) foi eleita, presidida por Henrique
Kemper Jr, querido amigo de Chico, a sua editora lançara
um livro de compilação dos prefácios de Emmanuel.
Assim que detectou adulteração em alguns dos trechos,
bem menos grave do que a FEB fez, mandou de imediato incinerar milhares
de exemplares já publicados e ordenou que as impressões
acabassem. O compromisso digno com a vida e obra de Chico Xavier
vale mais que muitos milhões — justifica o pesquisador
Nuno Emanuel, que mora em Lisboa.
No entanto, a FEB não cogita o descarte das obras. Para o
vice-presidente da entidade, Geraldo Campetti, responsável
pela editora que imprime a obra de Chico Xavier, não há
razão alguma para se desfazer das publicações.
— Isso evidentemente não vai acontecer. E é
um absurdo sem tamanho. A gente tem que ter, no mínimo, bom
senso para pleitear as coisas. Não tem cabimento as obras
serem retiradas do mercado. Evidentemente, elas beneficiam milhões
de pessoas no Brasil e no mundo — reage Campetti.
Gravidade
O ponto chave no debate é saber se as mudanças descaracterizam
os textos originais. Campetti destaca que o trabalho editorial da
instituição é histórico.
— Atualizações ortográficas e correções
gramaticais e semânticas foram realizadas, naturalmente, no
decorrer das publicações, dentro dos critérios
de seriedade que uma editora deve adotar. Falar em "adulteração",
com a carga pejorativa do termo, evidentemente não cabe,
considerando o cuidadoso processo de edição das obras
psicografadas por Chico Xavier e publicadas pela FEB — pondera
Campetti, que garante ter sido mantido o pensamento e estilo dos
autores.
O pesquisador Nuno Emanuel diz que as mudanças adulteram
em termos literários e doutrinários. As mais graves
discrepâncias estariam na coleção “O Evangelho
por Emmanuel.”
— Não são alterações. É
muito mais grave. Em termos jurídicos são adulterações.
Basta consultar leis básicas de direito autoral e moral.
A FEB reuniu todos os livros, de várias editoras, em que
Emmanuel cita centenas de trechos evangélicos do Novo Testamento,
para em função da tradução que ele escolheu,
fazer os respectivos comentários. O que a FEB fez? Eliminou
a tradução de Emmanuel. Substituiu-a por duas traduções:
uma da FEB para cinco volumes e outra católica para outros
dois volumes. Ambas as traduções bem diferentes do
livro original de Emmanuel, com centenas de palavras diferentes.
Resultado: o que Emmanuel comenta perde todo o sentido — afirma
Nuno, que mora em Lisboa.
Início do debate
A discussão não é de agora. Veio à tona
com o relançamento da coletânea “O Evangelho
por Emmanuel”, da FEB, a partir de 2014 e concluída,
com o sétimo volume, em 2019. Algumas alterações
despertaram a atenção. Um grupo de dez estudiosos
da doutrina resolveu se debruçar nos detalhes. O levantamento
compara trechos das primeiras edições com as impressas
a partir de 2012.
— Um trabalho minucioso de comparação, começando
a partir dos sete volumes de “O Evangelho por Emmanuel”,
em que já foram adulterados os versículos escolhidos
a dedo por Emmanuel. A partir dessa detecção, verificamos
que o conteúdo escrito por Emmanuel também estava
adulterado e depois os outros livros da FEB também. Um livro
possuía mais de 500 adulterações — diz
Roberto Salgado, neto de Jarbas Leone, um dos grandes amigos de
Chico e estudioso da doutrina.
A obra psicografada por Chico Xavier é valiosíssima,
não só pelo aspecto doutrinário. Entre as obras
nas mãos da FEB está o best-seller “Nosso Lar”,
lançado em 1944. O título já vendeu mais de
2,3 milhões de exemplares em 80 anos, o maior fenômeno
editorial do médium mineiro. Na versão para o cinema,
lançada em 2010 pelo diretor Wagner de Assis, alcançou
4,1 milhões de espectadores. Com streaming e TV, o público
total passou de 40 milhões em todo o mundo. A sequência
“Nosso Lar 2”, lançada em janeiro, baseada em
outro livro psicografado por Chico, "Os Mensageiros",
arrastou mais de 1 milhão de espectadores em dez dias.
O debate desperta grande interesse por envolver o trabalho daquele
que muitos consideram o maior médium de todos os tempos.
Chico Xavier morreu aos 92 anos, em 2002, após lançar
439 livros. Outros 98 títulos inéditos foram publicados
post-mortem. Os textos são atribuídos a espíritos,
como o de Emmanuel, mentor do médium e que teria sido um
senador romano, entre tantas reencarnações, que buscou
a cura da filha com Jesus, na Judeia. Chico doou todos os direitos
de comercialização dos livros à caridade. Grande
parte desta produção, a mais fértil e famosa,
ficou com à FEB, fundada em 1884, no Rio, que reúne
15 mil centros espíritas.
A temperatura subiu no início deste mês de fevereiro,
quando o ator Fernando Peron postou vídeo em resposta a uma
postagem do vice-presidente da FEB chamando de boatos as acusações
de adulterações. Peron mantém o Projeto Saber
e Mudar, voltado ao estudo da doutrina espírita.
— Vocês têm coragem de chamar de boatos todo
trabalho sério de pesquisa que foi realizado por várias
pessoas espíritas? Existem provas abundantes sobre essas
adulterações — disparou Peron.
Ação na Justiça
O imbróglio já chegou à Justiça. Advogados
da família de Chico Xavier acionaram a FEB, em 2022, questionando
as alterações. As partes chegaram a um acordo, sob
a condição de sigilo, em que as mudanças realizadas
nas republicações mais recentes passariam pelo crivo
de uma comissão constituída de representantes da União
Espírita Mineira e da própria FEB. O compromisso selado
prevê a retomada dos textos originais, adotando-se as necessárias
correções ortográficas. A comissão,
sustenta o ator Fernando Peron, comprova que a FEB mente ao negar
as adulterações.
— A atitude de agora dizerem que há tempos estão
resolvendo o problema, republicando obras de acordo com a primeira
edição, prova que os dirigentes dessa instituição
faltaram com a verdade mais uma vez. Não foi dias atrás
que eles lançaram um vídeo afirmando que as adulterações
são boatos, criados sem fundamento? Ora, se são boatos,
se eles não adulteraram nada, então estão resolvendo
o quê? — dispara Peron.
Geraldo Campetti nega que a entidade tenha aceitado fazer a revisão
apenas por conta da ação na Justiça. Segundo
ele, as revisões fazem parte da rotina da editora.
— Esta ação veio a somar esforços, coincidindo
com esse grupo de intelectuais. Duas pessoas vinculadas à
família, uma delas que até fez parte dessa ação,
integra a equipe que faz esse trabalho de cotejamento — rebate.
Entre as obras que passarão pela revisão está
a coleção "O Evangelho por Emmanuel", a
que gerou maior revolta entre os pesquisadores. Campetti argumenta
que a equipe organizadora da coleção havia optado,
como método de trabalho, por registrar os versículos
da Bíblia de Jerusalém, a mais utilizada nos meios
acadêmicos. Mas que, mais recentemente, optou-se por retomar
a tradução da primeira edição.
O presidente da União Espírita Mineira, Alisson Pontes
de Souza, procura acalmar os ânimos. Para ele, não
há litígio judicial.
— Nosso objetivo não é julgar o que aconteceu,
mas sim encontrar uma solução para manter esse trabalho
vivo preservado e progredindo para alcançar mais corações.
Estamos comparando os livros da primeira edição com
os mais recentes, identificando possíveis diferenças
e fazendo os devidos ajustes para manter a originalidade das obras.
Neste curto período de tempo, esta parceria resultou em 15
livros cotejados de acordo com a primeira edição e
18 livros em revisão — comemora.
O trabalho realizado em conjunto entre a UEM e a FEB é visto
com desconfiança pelos que elaboraram o estudo sobre as mudanças
nas obras. Para eles, a UEM está sendo ludibriada.
— Trata-se de mais uma manobra para ganhar tempo e fugir
de um julgamento justo, tanto por parte do público, que vem
se esclarecendo sobre a gravidade da questão, quanto da Justiça
dos homens, que precisa interceder rigorosamente — pontua
Fernando Peron.
Para os pesquisadores, haveria uma intenção de confundir
o público. Assim, as vendas dos livros fora dos padrões
originais prosseguem.
— A FEB, para evitar prejuízo financeiro, teve a audácia
de lançar a Coleção Fonte Viva, de acordo com
eles, já retificada conforme as primeiras edições,
mas com a mesma capa dos livros adulterados. Ou seja, quem comprar
pode acabar sendo enganado se não olhar a contracapa e as
informações — pondera Roberto Salgado.
Geraldo Campetti explica que a manutenção das capas
faz parte de um novo projeto, mas que o leitor recebe a informação
adequadamente.
— É uma questão de projeto editorial. A gente
vai modernizando de tempos em tempos. Isso é natural que
aconteça. Veja a seriedade institucional da federação,
da FEB Editora. Estamos colocando, inclusive, a imagem da capa da
primeira edição, seja na quarta capa, seja na orelha
— alega.
Chico x FEB
Os pesquisadores afirmam que o próprio Chico questionava
mudanças nos originais entregues à FEB. O problema
o teria levado a romper com a instituição máxima
do espiritismo no Brasil.
— A FEB pressionou o Chico várias vezes e o envergonhou
muito até que na década de 60 romperam definitivamente
e não mais lançou livros pela FEB — critica
Roberto.
O vice-presidente da FEB nega o rompimento. Observa que é
compreensível que o médium tenha ofertado títulos
a outras editoras. O objetivo seria favorecer a divulgação
do espiritismo. Segundo Campetti, desta forma, surgiram a Comunhão
Espírita Cristã (CEC), em Uberaba/MG, e o Grupo Ideal
Espírita André Luiz (IDEAL) e o Centro Espírita
União (CEU), ambos em São Paulo, as três parceiras
editoriais da FEB em mais de 130 títulos desde 2014.
Geraldo Campetti cita carta enviada por Chico ao então presidente
da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, em março de 1960.
O médium escreveu que era ‘um grande sossego’
saber que os livros entregues à FEB, estavam ‘carinhosamente
amparados’.
— Em outra carta, Chico trouxe uma indagação
profundamente relevante para os dias atuais: "Se muitos dos
nossos companheiros de crença não podem compreender
a amizade de um médium a uma instituição venerável
como a federação, o que esperar dos nossos inimigos
gratuitos?” — pondera Campetti, citando trechos do livro
“Testemunhos de Chico Xavier”, de Suely Caldas Schubert.
Amigo de Chico e palestrante, Geraldo Lemos Neto, procurado pela
reportagem, preferiu não se manifestar. Mas postou no Facebook
uma carta manuscrita do médium, de 25 de março de
1976, endereçada à União Espírita Mineira,
na qual descreve as razões para o rompimento com a FEB, em
1971. O estopim havia sido o desvio dos originais do livro "Ceifa
de Luz", dentro da própria instituição.
Novo processo
O médium Divaldo Franco, de 96 anos, considerado o maior
orador vivo da doutrina e influente na FEB, também foi procurado
para opinar. Mas a assessoria da Mansão do Caminho, em Salvador,
obra social fundada pelo médium, informou que Divaldo disse
nada saber sobre a questão.
O debate está longe de acabar. Para o médium Carlos
Baccelli, a saída deverá ser uma nova ação
na Justiça.
— O processo judicial pode ser movido por qualquer espírita
que assim o entenda e que tenha a devida coragem, e condição
financeira, para enfrentar a situação, porque há,
inclusive, um poder político, também nas hostes espíritas,
influenciando em tais decisões nos tribunais, aliás,
como quase tudo que, infelizmente, acontece em Brasília —
afirma Baccelli.
O responsável pela página do Projeto
Saber e Mudar, Fernando Peron, defende que o público
seja alertado.
— Os danos são extensos e gravíssimos, considerando
a qualidade literária e o tesouro filosófico, científico
e doutrinário das obras de Chico Xavier. Os responsáveis
terão muitas encarnações para acertarem as
contas com a Justiça Divina, mas aqui no plano terreno é
preciso que eles também aprendam a lição, respondendo
integralmente pelo que fizeram — acentua Peron.