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02/03/2024

 


Vaso ou esposa? Assumir ou provocar? Entenda as alterações na obra de Chico

 

Imbróglio entre estudiosos e a Federação Espírita Brasileira envolve edições da obra do médium publicadas a partir de 2012, incluindo 'O Evangelho por Emmanuel'

 

 

Por Élcio Braga
jornal O Globo

 

 

 

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Um grupo de amigos e estudiosos que conviveram com o médium Chico Xavier garante que uma pesquisa identificou adulterações em 117 livros reeditados pela Federação Espírita Brasileira (FEB), a entidade máxima entre os espíritas. A avaliação desse grupo é que os prejuízos doutrinários com a leitura desses volumes são muito maiores do que as perdas financeiras com o descarte das obras. A FEB não cogita o descarte das obras, afirmando que não há razão alguma para se desfazer das publicações.

O ponto chave no debate é saber se as mudanças descaracterizam os textos originais. Geraldo Campetti, responsável pela editora que imprime a obra de Chico Xavier, destaca que o trabalho editorial da instituição é histórico.

— Atualizações ortográficas e correções gramaticais e semânticas foram realizadas, naturalmente, no decorrer das publicações, dentro dos critérios de seriedade que uma editora deve adotar. Falar em "adulteração", com a carga pejorativa do termo, evidentemente não cabe, considerando o cuidadoso processo de edição das obras psicografadas por Chico Xavier e publicadas pela FEB — pondera Campetti, que garante ter sido mantido o pensamento e estilo dos autores. 

O pesquisador Nuno Emanuel diz que as mudanças adulteram em termos literários e doutrinários. As mais graves discrepâncias estariam na coleção “O Evangelho por Emmanuel.”

— Em termos jurídicos são adulterações. Basta consultar leis básicas de direito autoral e moral. A FEB reuniu todos os livros, de várias editoras, em que Emmanuel cita centenas de trechos evangélicos do Novo Testamento, para em função da tradução que ele escolheu, fazer os respectivos comentários. O que a FEB fez? Eliminou a tradução de Emmanuel. Substituiu-a por duas traduções: uma da FEB para cinco volumes e outra católica para outros dois volumes. Ambas as traduções bem diferentes do livro original de Emmanuel, com centenas de palavras diferentes. Resultado: o que Emmanuel comenta perde todo o sentido — afirma Nuno.

Advogados da família de Chico Xavier acionaram a FEB, em 2022, questionando as alterações. As partes chegaram a um acordo, sob a condição de sigilo, em que as mudanças realizadas nas republicações mais recentes passariam pelo crivo de uma comissão constituída de representantes da União Espírita Mineira e da própria FEB.

Quais mudanças foram feitas

O grupo de estudiosos da obra de Chico Xavier fez comparações das edições originais com as edições mais recentes, publicadas depois de 2012.

Na coleção "Fonte Viva", por exemplo, publicada originalmente em 1950, há no capítulo 38, a frase "...em dolorosos atritos, assumindo escabrosos débitos...". A mesma frase, após 2012, passou a ser "...em dolorosos atritos, provocando escabrosos débitos...".

Nesse caso, os pesquisadores defendem que "assumir" é tomar para si. Já provocar é estimular, incitar alguém a fazer algo. Haveria, portanto, uma alteração de significado da frase.

Outro exemplo está na coleção "O evangelho por Emmanuel", publicada em 1952. No capítulo 112, do volume 7, lê-se: "E à ciência, a temperança; à temperança, a paciência; à paciência, a piedade." Após 2012, esse trecho passou a ser publicado como: "Ao conhecimento o autodomínio, ao autodomínio a perseverança, à perseverança a piedade."

Para os pesquisadores, houve uma troca de palavras que impede o entendimento do raciocínio do autor.

Um terceiro exemplo está no capítulo 156, do volume 6 de "O evangelho por Emmanuel". No original de 1952 foi publicado: "Que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra." Já nas edições posteriores a 2012 a construção foi mudada para: "Que cada qual saiba tratar a própria esposa com santidade e respeito."

Para os pesquisadores, trocar "vaso" por "esposa" tira todo o sentido do comentário de Emmanuel.

 

Veja no quadro outras mudanças e os comentários dos pesquisadores:

 




 

Chico Xavier: Denúncia de adulterações em livros psicografados divide comunidade espírita

Responsável pelas reedições, Federação Espírita Brasileira garante que obras receberam apenas atualizações; críticos chegam a defender a incineração dos exemplares

 

Se existir mesmo vida após a morte, Chico Xavier deve estar muito preocupado no "Nosso lar", lugar para onde seguiriam os bons espíritos e título do maior best-seller que psicografou, sucesso também no cinema. Tudo porque parte de sua obra está no centro de um acalorado debate entre estudiosos e seguidores da doutrina de Allan Kardec. Um grupo de amigos e estudiosos que conviveram com o médium garante que uma pesquisa identificou adulterações em 117 livros reeditados pela Federação Espírita Brasileira (FEB), a entidade máxima entre os espíritas.

Entre os pesquisadores e amigos de Chico que querem ver esses livros fora das prateleiras estão expoentes do espiritismo como o médium Carlos Baccelli e Sonia Barsante. A avaliação desse grupo é que os prejuízos doutrinários com a leitura desses volumes são muito maiores do que o financeiro.

— Defendo que as obras adulteradas, após 2012 com maior intensidade, deveriam ser todas retiradas do mercado, para que as pessoas não tenham mais acesso a elas e ninguém mais possa ser enganado — observa Roberto Salgado Filho, presidente do Lar Espírita Jarbas Leone Varanda, de Uberaba (MG), que participou do levantamento.

Alguns defendem até mesmo a incineração dos livros, como já ocorreu com outra publicação considerada inadequada.

— Quando a anterior direção da União Espírita Mineira (UEM) foi eleita, presidida por Henrique Kemper Jr, querido amigo de Chico, a sua editora lançara um livro de compilação dos prefácios de Emmanuel. Assim que detectou adulteração em alguns dos trechos, bem menos grave do que a FEB fez, mandou de imediato incinerar milhares de exemplares já publicados e ordenou que as impressões acabassem. O compromisso digno com a vida e obra de Chico Xavier vale mais que muitos milhões — justifica o pesquisador Nuno Emanuel, que mora em Lisboa.

No entanto, a FEB não cogita o descarte das obras. Para o vice-presidente da entidade, Geraldo Campetti, responsável pela editora que imprime a obra de Chico Xavier, não há razão alguma para se desfazer das publicações.

— Isso evidentemente não vai acontecer. E é um absurdo sem tamanho. A gente tem que ter, no mínimo, bom senso para pleitear as coisas. Não tem cabimento as obras serem retiradas do mercado. Evidentemente, elas beneficiam milhões de pessoas no Brasil e no mundo — reage Campetti.

Gravidade

O ponto chave no debate é saber se as mudanças descaracterizam os textos originais. Campetti destaca que o trabalho editorial da instituição é histórico.

— Atualizações ortográficas e correções gramaticais e semânticas foram realizadas, naturalmente, no decorrer das publicações, dentro dos critérios de seriedade que uma editora deve adotar. Falar em "adulteração", com a carga pejorativa do termo, evidentemente não cabe, considerando o cuidadoso processo de edição das obras psicografadas por Chico Xavier e publicadas pela FEB — pondera Campetti, que garante ter sido mantido o pensamento e estilo dos autores.

O pesquisador Nuno Emanuel diz que as mudanças adulteram em termos literários e doutrinários. As mais graves discrepâncias estariam na coleção “O Evangelho por Emmanuel.”

— Não são alterações. É muito mais grave. Em termos jurídicos são adulterações. Basta consultar leis básicas de direito autoral e moral. A FEB reuniu todos os livros, de várias editoras, em que Emmanuel cita centenas de trechos evangélicos do Novo Testamento, para em função da tradução que ele escolheu, fazer os respectivos comentários. O que a FEB fez? Eliminou a tradução de Emmanuel. Substituiu-a por duas traduções: uma da FEB para cinco volumes e outra católica para outros dois volumes. Ambas as traduções bem diferentes do livro original de Emmanuel, com centenas de palavras diferentes. Resultado: o que Emmanuel comenta perde todo o sentido — afirma Nuno, que mora em Lisboa.

 

Início do debate

A discussão não é de agora. Veio à tona com o relançamento da coletânea “O Evangelho por Emmanuel”, da FEB, a partir de 2014 e concluída, com o sétimo volume, em 2019. Algumas alterações despertaram a atenção. Um grupo de dez estudiosos da doutrina resolveu se debruçar nos detalhes. O levantamento compara trechos das primeiras edições com as impressas a partir de 2012.

— Um trabalho minucioso de comparação, começando a partir dos sete volumes de “O Evangelho por Emmanuel”, em que já foram adulterados os versículos escolhidos a dedo por Emmanuel. A partir dessa detecção, verificamos que o conteúdo escrito por Emmanuel também estava adulterado e depois os outros livros da FEB também. Um livro possuía mais de 500 adulterações — diz Roberto Salgado, neto de Jarbas Leone, um dos grandes amigos de Chico e estudioso da doutrina.

 

A obra psicografada por Chico Xavier é valiosíssima, não só pelo aspecto doutrinário. Entre as obras nas mãos da FEB está o best-seller “Nosso Lar”, lançado em 1944. O título já vendeu mais de 2,3 milhões de exemplares em 80 anos, o maior fenômeno editorial do médium mineiro. Na versão para o cinema, lançada em 2010 pelo diretor Wagner de Assis, alcançou 4,1 milhões de espectadores. Com streaming e TV, o público total passou de 40 milhões em todo o mundo. A sequência “Nosso Lar 2”, lançada em janeiro, baseada em outro livro psicografado por Chico, "Os Mensageiros", arrastou mais de 1 milhão de espectadores em dez dias.

O debate desperta grande interesse por envolver o trabalho daquele que muitos consideram o maior médium de todos os tempos. Chico Xavier morreu aos 92 anos, em 2002, após lançar 439 livros. Outros 98 títulos inéditos foram publicados post-mortem. Os textos são atribuídos a espíritos, como o de Emmanuel, mentor do médium e que teria sido um senador romano, entre tantas reencarnações, que buscou a cura da filha com Jesus, na Judeia. Chico doou todos os direitos de comercialização dos livros à caridade. Grande parte desta produção, a mais fértil e famosa, ficou com à FEB, fundada em 1884, no Rio, que reúne 15 mil centros espíritas.

A temperatura subiu no início deste mês de fevereiro, quando o ator Fernando Peron postou vídeo em resposta a uma postagem do vice-presidente da FEB chamando de boatos as acusações de adulterações. Peron mantém o Projeto Saber e Mudar, voltado ao estudo da doutrina espírita.

— Vocês têm coragem de chamar de boatos todo trabalho sério de pesquisa que foi realizado por várias pessoas espíritas? Existem provas abundantes sobre essas adulterações — disparou Peron.

 

Ação na Justiça

O imbróglio já chegou à Justiça. Advogados da família de Chico Xavier acionaram a FEB, em 2022, questionando as alterações. As partes chegaram a um acordo, sob a condição de sigilo, em que as mudanças realizadas nas republicações mais recentes passariam pelo crivo de uma comissão constituída de representantes da União Espírita Mineira e da própria FEB. O compromisso selado prevê a retomada dos textos originais, adotando-se as necessárias correções ortográficas. A comissão, sustenta o ator Fernando Peron, comprova que a FEB mente ao negar as adulterações.

— A atitude de agora dizerem que há tempos estão resolvendo o problema, republicando obras de acordo com a primeira edição, prova que os dirigentes dessa instituição faltaram com a verdade mais uma vez. Não foi dias atrás que eles lançaram um vídeo afirmando que as adulterações são boatos, criados sem fundamento? Ora, se são boatos, se eles não adulteraram nada, então estão resolvendo o quê? — dispara Peron.

 

 

Geraldo Campetti nega que a entidade tenha aceitado fazer a revisão apenas por conta da ação na Justiça. Segundo ele, as revisões fazem parte da rotina da editora.

— Esta ação veio a somar esforços, coincidindo com esse grupo de intelectuais. Duas pessoas vinculadas à família, uma delas que até fez parte dessa ação, integra a equipe que faz esse trabalho de cotejamento — rebate.

Entre as obras que passarão pela revisão está a coleção "O Evangelho por Emmanuel", a que gerou maior revolta entre os pesquisadores. Campetti argumenta que a equipe organizadora da coleção havia optado, como método de trabalho, por registrar os versículos da Bíblia de Jerusalém, a mais utilizada nos meios acadêmicos. Mas que, mais recentemente, optou-se por retomar a tradução da primeira edição.

O presidente da União Espírita Mineira, Alisson Pontes de Souza, procura acalmar os ânimos. Para ele, não há litígio judicial.

— Nosso objetivo não é julgar o que aconteceu, mas sim encontrar uma solução para manter esse trabalho vivo preservado e progredindo para alcançar mais corações. Estamos comparando os livros da primeira edição com os mais recentes, identificando possíveis diferenças e fazendo os devidos ajustes para manter a originalidade das obras. Neste curto período de tempo, esta parceria resultou em 15 livros cotejados de acordo com a primeira edição e 18 livros em revisão — comemora.

O trabalho realizado em conjunto entre a UEM e a FEB é visto com desconfiança pelos que elaboraram o estudo sobre as mudanças nas obras. Para eles, a UEM está sendo ludibriada.

— Trata-se de mais uma manobra para ganhar tempo e fugir de um julgamento justo, tanto por parte do público, que vem se esclarecendo sobre a gravidade da questão, quanto da Justiça dos homens, que precisa interceder rigorosamente — pontua Fernando Peron.

Para os pesquisadores, haveria uma intenção de confundir o público. Assim, as vendas dos livros fora dos padrões originais prosseguem.

— A FEB, para evitar prejuízo financeiro, teve a audácia de lançar a Coleção Fonte Viva, de acordo com eles, já retificada conforme as primeiras edições, mas com a mesma capa dos livros adulterados. Ou seja, quem comprar pode acabar sendo enganado se não olhar a contracapa e as informações — pondera Roberto Salgado.

Geraldo Campetti explica que a manutenção das capas faz parte de um novo projeto, mas que o leitor recebe a informação adequadamente.

— É uma questão de projeto editorial. A gente vai modernizando de tempos em tempos. Isso é natural que aconteça. Veja a seriedade institucional da federação, da FEB Editora. Estamos colocando, inclusive, a imagem da capa da primeira edição, seja na quarta capa, seja na orelha — alega.


Chico x FEB

Os pesquisadores afirmam que o próprio Chico questionava mudanças nos originais entregues à FEB. O problema o teria levado a romper com a instituição máxima do espiritismo no Brasil.

— A FEB pressionou o Chico várias vezes e o envergonhou muito até que na década de 60 romperam definitivamente e não mais lançou livros pela FEB — critica Roberto.

O vice-presidente da FEB nega o rompimento. Observa que é compreensível que o médium tenha ofertado títulos a outras editoras. O objetivo seria favorecer a divulgação do espiritismo. Segundo Campetti, desta forma, surgiram a Comunhão Espírita Cristã (CEC), em Uberaba/MG, e o Grupo Ideal Espírita André Luiz (IDEAL) e o Centro Espírita União (CEU), ambos em São Paulo, as três parceiras editoriais da FEB em mais de 130 títulos desde 2014.

Geraldo Campetti cita carta enviada por Chico ao então presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, em março de 1960. O médium escreveu que era ‘um grande sossego’ saber que os livros entregues à FEB, estavam ‘carinhosamente amparados’.

— Em outra carta, Chico trouxe uma indagação profundamente relevante para os dias atuais: "Se muitos dos nossos companheiros de crença não podem compreender a amizade de um médium a uma instituição venerável como a federação, o que esperar dos nossos inimigos gratuitos?” — pondera Campetti, citando trechos do livro “Testemunhos de Chico Xavier”, de Suely Caldas Schubert.

Amigo de Chico e palestrante, Geraldo Lemos Neto, procurado pela reportagem, preferiu não se manifestar. Mas postou no Facebook uma carta manuscrita do médium, de 25 de março de 1976, endereçada à União Espírita Mineira, na qual descreve as razões para o rompimento com a FEB, em 1971. O estopim havia sido o desvio dos originais do livro "Ceifa de Luz", dentro da própria instituição.

Novo processo

O médium Divaldo Franco, de 96 anos, considerado o maior orador vivo da doutrina e influente na FEB, também foi procurado para opinar. Mas a assessoria da Mansão do Caminho, em Salvador, obra social fundada pelo médium, informou que Divaldo disse nada saber sobre a questão.

O debate está longe de acabar. Para o médium Carlos Baccelli, a saída deverá ser uma nova ação na Justiça.

— O processo judicial pode ser movido por qualquer espírita que assim o entenda e que tenha a devida coragem, e condição financeira, para enfrentar a situação, porque há, inclusive, um poder político, também nas hostes espíritas, influenciando em tais decisões nos tribunais, aliás, como quase tudo que, infelizmente, acontece em Brasília — afirma Baccelli.

O responsável pela página do Projeto Saber e Mudar, Fernando Peron, defende que o público seja alertado.

— Os danos são extensos e gravíssimos, considerando a qualidade literária e o tesouro filosófico, científico e doutrinário das obras de Chico Xavier. Os responsáveis terão muitas encarnações para acertarem as contas com a Justiça Divina, mas aqui no plano terreno é preciso que eles também aprendam a lição, respondendo integralmente pelo que fizeram — acentua Peron.

 


Fonte:
> https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2024/02/29/vaso-ou-esposa-assumir-ou-provocar-entenda-as-alteracoes-na-obra-de-chico-xavier-que-foram-> parar-na-justica.ghtml
> https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2024/02/29/denuncia-de-adulteracoes-em-livros-psicografados-por-chico-xavier-divide-comunidade-espirita.ghtml

 

 

 

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