Raymond Zhong -
Folha /SP - The New York Times
A linha do tempo oficial da história da Terra
– das rochas mais antigas aos dinossauros e à ascensão
dos primatas, do Paleozoico ao Jurássico e todos os pontos
anteriores e posteriores – poderá em breve incluir
a era das armas nucleares, das mudanças climáticas
causadas pelo homem e da proliferação de plásticos,
lixo e concreto em todo o planeta.
Em suma, o presente.
Dez mil anos depois que nossa espécie começou
a formar sociedades agrárias primitivas, um painel de cientistas
deu no último dia 17 um grande passo para declarar um novo
intervalo de tempo geológico: o Antropoceno, a era dos humanos.
Nossa atual época geológica, o Holoceno,
começou há 11,7 mil anos com o fim da última
grande era glacial. Os cerca de 35 estudiosos do painel parecem
estar perto de endossar que, na verdade, passamos as últimas
décadas em uma unidade de tempo totalmente nova, caracterizada
por mudanças em escala planetária induzidas pelo homem
que estão incompletas, mas em andamento.
"Se você estivesse nos anos 1920, sua
atitude seria: 'A natureza é muito grande para os humanos
influenciarem'", disse Colin N. Waters, geólogo e presidente
do Grupo de Trabalho do Antropoceno, o painel que tem deliberado
sobre o assunto desde 2009. O século passado mudou esse pensamento,
disse Waters. "Foi um evento de choque, um pouco como um asteroide
atingindo o planeta."
Os membros do grupo de trabalho completaram no dia último
17 a primeira de uma série de votações internas
sobre detalhes, incluindo quando exatamente eles acreditam que o
Antropoceno começou. Assim que essas votações
terminarem, o que poderá ocorrer no próximo trimestre,
o painel apresentará sua proposta final a três outros
comitês de geólogos cujos votos tornarão o Antropoceno
oficial ou o rejeitarão.
Sessenta por cento de cada comitê precisará aprovar
a proposta do grupo para que ela avance para o seguinte. Se falhar
em algum deles, o Antropoceno talvez não tenha outra chance
de ser ratificado durante anos.
Se chegar até o fim, porém, a linha do tempo alterada
da geologia reconheceria oficialmente que os efeitos da humanidade
no planeta foram tão importantes que encerraram o capítulo
anterior da história da Terra. Reconheceria que esses efeitos
serão perceptíveis nas rochas durante milênios.
"Eu ensino a história da ciência –você
sabe, Copérnico, Kepler, Galileu", disse Francine McCarthy,
cientista da Terra na Universidade Brock, no Canadá, e membro
do grupo de trabalho. "Estamos realmente fazendo isso",
disse ela. "Estamos vivendo a história da ciência."
Ainda assim, há críticas ao Antropoceno, embora todos
tenhamos uma familiaridade de primeira mão com ele, ou talvez
por isso mesmo.
Stanley C. Finney, secretário-geral da União Internacional
de Ciências Geológicas, teme que o Antropoceno tenha
se tornado uma forma de os geólogos fazerem uma "declaração
política".
Na vasta extensão do tempo geológico, observa ele,
o Antropoceno seria um pontinho ínfimo. Outras unidades de
tempo geológico são úteis porque orientam os
cientistas em trechos de tempo profundo que não deixaram
registros escritos, apenas observações científicas
esparsas. O Antropoceno, por outro lado, seria uma época
na história terrestre que os humanos já documentaram
extensamente.
"Para a transformação humana, não precisamos
dessas terminologias, temos os anos exatos", disse Finney,
cujo comitê seria o último a votar na proposta do grupo
de trabalho se ela chegar tão longe.
Martin J. Head, membro do grupo de trabalho e cientista da Terra
na Universidade Brock, argumenta que se recusar a reconhecer o Antropoceno
também teria repercussões políticas.
"As pessoas diriam: 'Bem, isso significa que a comunidade
geológica está negando que mudamos o planeta drasticamente?'",
disse ele. "Teríamos que justificar nossa decisão
de qualquer maneira."
Philip L. Gibbard, geólogo da Universidade de Cambridge,
é secretário-geral de outro dos comitês que
votarão a proposta do grupo de trabalho. Ele tem sérias
preocupações sobre como a proposta está se
moldando, preocupações que a comunidade geológica
mais ampla compartilha, na opinião dele.
"Não será fácil", disse.
'Um negócio confuso e controverso'
Como os zoólogos que regulam os nomes das espécies
animais ou os astrônomos que decidem o que conta como um planeta,
os cronometristas da geologia trabalham de forma conservadora, por
padrão. Eles estabelecem classificações que
serão refletidas em estudos acadêmicos, museus e livros
didáticos para as próximas gerações.
"Todo mundo critica o Grupo de Trabalho do Antropoceno porque
eles demoraram muito", disse Lucy E. Edwards, cientista aposentada
do Serviço Geológico dos Estados Unidos. "Em
tempo geológico, isso não é muito."
Desenhar linhas no tempo da Terra nunca foi fácil. O registro
das rochas é cheio de lacunas, "um quebra-cabeça
com muitas partes faltando", como diz Gibbard. E a maioria
das mudanças em escala global acontece gradualmente, tornando
difícil identificar quando um capítulo termina e o
próximo começa. Não houve muitos momentos em
que o planeta inteiro mudou de uma vez só.
"Se um meteoro atinge a Península de Yucatán,
é um marcador muito bom", disse Edwards. "Mas,
fora isso, não há praticamente nada no mundo geológico
que seja a melhor linha."
O início do Período Cambriano, cerca de 540 milhões
de anos atrás, viu a Terra explodir com uma surpreendente
diversidade de vida animal, mas seu ponto de partida exato tem sido
contestado há décadas. Uma longa controvérsia
levou ao redesenho do nosso atual período geológico,
o Quaternário, em 2009.
"É um negócio confuso e controverso", disse
Jan A. Zalasiewicz, geólogo da Universidade de Leicester.
"E, claro, o Antropoceno traz toda uma nova gama de dimensões
para a confusão e as disputas."
Impressão digital da humanidade
Demorou uma década de debate –em emails, artigos acadêmicos
e reuniões em Londres, Berlim, Oslo e além–
para o Grupo de Trabalho do Antropoceno definir um aspecto fundamental
de sua proposta.
Em uma votação por 29 a 4 em 2019, o grupo concordou
em recomendar que o Antropoceno começasse em meados do século
20. Foi quando as populações humanas, a atividade
econômica e as emissões de gases de efeito estufa começaram
a disparar em todo o mundo, deixando vestígios indeléveis:
isótopos de plutônio de explosões nucleares,
nitrogênio de fertilizantes, cinzas de usinas de energia.
O Antropoceno, como quase todos os outros intervalos de tempo geológicos,
precisa ser definido por um local físico específico,
conhecido como "cavilha de ouro", onde o registro da rocha
claramente o diferencia do intervalo anterior.
Depois de anos de busca, o grupo de trabalho terminou no dia 17
de votar em nove locais candidatos para o Antropoceno. Eles representam
a gama de ambientes nos quais os efeitos humanos estão gravados:
uma turfeira na Polônia, o gelo da Península Antártica,
uma baía no Japão, um recife de coral na costa da
Louisiana (EUA).
Muitos estudiosos ainda não têm certeza se o limite
de meados do século 20 faz sentido. É desajeitadamente
recente, especialmente para arqueólogos e antropólogos
que teriam que começar a se referir aos artefatos da Segunda
Guerra Mundial como "pré-antropocênicos".
E o uso de bombas nucleares para marcar um intervalo geológico
parece abominável para alguns cientistas, ou pelo menos irrelevante.
Os radionuclídeos são um marcador global conveniente,
mas nada dizem sobre a mudança climática ou outros
efeitos humanos, disse Erle C. Ellis, ecologista da Universidade
de Maryland.
Usar a Revolução Industrial pode ajudar, mas essa
definição ainda deixaria de fora milênios de
mudanças causadas no planeta pela agricultura e pelo desmatamento.
Chamado à atenção
Canonizar o Antropoceno é um chamado à atenção,
disse Naomi Oreskes, membro do grupo de trabalho. Para a geologia,
mas também para o resto do mundo.
"Fui criada em uma geração em que fomos ensinados
que a geologia terminava quando as pessoas apareciam", disse
Oreskes, historiadora da ciência na Universidade Harvard.
O Antropoceno anuncia que "na verdade, o impacto humano faz
parte da geologia como ciência", disse ela. Exige que
reconheçamos que nossa influência no planeta vai além
do nível superficial.
Mas Gibbard, de Cambridge, teme que, ao tentar adicionar o Antropoceno
à escala de tempo geológico, o grupo de trabalho possa
na verdade estar diminuindo a importância do conceito. As
regras estritas da linha do tempo forçam o grupo a impor
um único ponto de partida em uma história extensa,
que se desenrolou em diferentes épocas em diferentes lugares.
Ele e outros argumentam que o Antropoceno merece um rótulo
geológico mais flexível: um evento. Os eventos não
aparecem na linha do tempo; nenhuma burocracia de cientistas os
regula. Mas eles têm sido transformadores para o planeta.