10/07/2022
Uma ortodoxia dialética?
Comentários sobre o livro História
da liberdade religiosa, de Humberto Schubert Coelho
O Professor Alexander Moreira-Almeida publicou no
facebook a informação que foi publicado no jornal
"O Estado de São Paulo" (Estadão),
em 07/07/2022, uma excelente resenha do novo livro do amigo Humberto
Schubert Coelho, codiretor do NUPES e professor de filosofia da
UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora.
O livro "História da liberdade religiosa"
faz uma amplo panorama e análise histórica e filosófica
sobre como as conquistas atuais do livre pensamento e do pensamento
crítico surgiram em grande parte a partir da busca do Homem
pela Verdade e por Deus.
A resenha e o livro abordam, entre muitos outros, Dante, Francisco
de Assis, Giordano Bruno, Jan Huss, Newton, Agostinho, Tomás
de Aquino, Wycliffe, Joana D’Arc. Além da Reforma,
Revoluções Russa, Francesa e Americana e muito mais!

por Arthur Grupillo
A maior parte dos filósofos
parece defender a liberdade religiosa despotencializando a religião.
Não faz sentido brigar por qual marca de cerveja é
a melhor, a não ser que alguém esteja perigosamente
bêbado. Eles dizem “não briguem por religião,
afinal de contas ela não é nada tão importante”.
Mas, além de fácil, esse tipo de argumento parece
um tanto quanto inútil. Por outro lado, bem diferente é
quando alguém defende a liberdade de pensamento, opinião
e publicação, um procedimento que boa parte dos filósofos,
talvez a mesma parte que não dá muita importância
à religião, acredita ser essencial à verdade
científica ou filosófica. Neste caso, a liberdade
não está fundada na (em última análise)
irrelevância da coisa sobre a qual se exige liberdade; pelo
contrário, está fundada na sua extrema relevância.
Nenhuma contribuição razoável deve ser aqui
desconsiderada. Mas, por que este modo de colocar a questão
não é aplicado à liberdade religiosa? Por que
não dizer “não briguem por religião”
pois “precisamos que muitas vozes colaborem na empreitada
humana de compreender pra valer a si mesma”, em vez de “não
briguem por religião” simplesmente porque “isso
não importa mesmo”?
Nesse sentido, o recém-publicado livro de Humberto Schubert
Coelho, História da liberdade religiosa: Da Reforma ao
Iluminismo (Vozes, 2022) é
avis rara. É certamente um livro sobre liberdade religiosa
que não repete aquela atitude de defender que as pessoas
sejam livres para expressar sua religião ao mesmo tempo em
que pede a elas para não se levarem muito a sério.
Essa atitude, que teve seu auge no século XVIII, já
se tornou inclusive até um tanto enfadonha, nas variadas
conversas que temos ou livros que lemos por aí. Alguns se
espantam que “em pleno século XXI” (e que temerária
expressão!) ainda existam pessoas religiosas. Mais espantoso
me parece que, em pleno século XXI, ainda existam pessoas
que pensam que não deveriam existir pessoas religiosas. Mas
é notável, pelo estilo e pelos típicos problemas
que coloca, que Schubert Coelho tem uma profunda sensibilidade religiosa,
eu diria até “espiritual”. Ele é o tipo
de escritor que resolve escrever um livro sobre liberdade religiosa
não porque secretamente a religião não seja
para ele lá muito importante, ou até porque pensasse
abertamente, como fazem alguns, que seria melhor um mundo sem religião,
mas exatamente pelo motivo contrário.
O livro é difícil de classificar. Sem dúvida
é um livro de história, embora não de historiografia
apenas. Em algum momento se torna quase um livro de introdução
à história da filosofia, sobre o que falarei mais
adiante. Mas também é um livro que às vezes
ensaia, embora instigue e frustre um pouco o leitor toda vez que
o faz, um questionamento tipicamente teo-filosófico sobre
a natureza da “verdade” ou da “objetividade”
em matéria de religião. Se ele não pensa que
a religião é uma terra de ninguém, uma questão
de gosto, onde a liberdade deve vigorar porque afinal a questão
não é lá muito importante, então é
porque ele pensa que algum tipo de cerne, de núcleo essencial,
deveria ser resguardado. Mas o que é este núcleo?
É muito provável que o livro deixe no leitor a impressão
de ser um crítico da ideia de ortodoxia, isto é, de
que uma determinada doutrina seja capaz de encerrar de maneira exclusiva
a verdade religiosa. Por outro lado, é pouco provável
que o livro seja uma apologia de heresias. Seria este núcleo
um tipo de visão mística negativa, onde o divino certamente
reside, mas sem que tenhamos o direito de devassá-lo e traduzi-lo
em palavras e doutrinas exclusivas? Este é um problema complicado
demais, então o livro às vezes prudentemente recua
diante dele. Mas é absolutamente certo que, qualquer que
seja a resposta a essa questão, o livro é um crítico
da ideia de que o silenciamento, a perseguição e a
violência sejam ferramentas justificáveis para lidar
com ela. É triste reconhecer que seja necessário,
mas dizer isto também não é uma coisa particularmente
difícil.
Assim, o leitor encontrará ali um vasto apanhado de casos,
episódios, teorias e personagens emblemáticos da história
da liberdade religiosa. Encontrará, por exemplo, os casos
de Francisco de Assis e Dante Alighieri, que o autor chama de “críticos
gentis” da Igreja, e que com sua força moral abriram
caminho à crítica da hipocrisia, tão central
nos chamados pré-reformadores. Esta, segundo Coelho, deve
ser diferenciada da crítica que tem maiores implicações
doutrinárias. Mas ele adverte sobre os perigos que Francisco
teria corrido, por exemplo, caso formulasse mais claramente certas
ideias em outro contexto, como o da Reforma. Entretanto, essa diferença
entre a crítica da hipocrisia e a crítica teológica
parece ser apenas instrumental. Quando os reformadores questionavam
a teologia da autoridade, alegando que um governante que contraria
a Deus não poderia ter poder sobre um cidadão justo,
pois isso equivaleria a dizer que o diabo tem direitos sobre Deus,
estavam mais uma vez unificando dois lados de uma mesma crítica.
Se pensamos, por exemplo, em uma parte do evangelicalismo contemporâneo,
fica mais evidente que os fundamentos morais da Reforma parecem
ter se perdido, restando apenas, e olhe lá, os motivos teológicos.
Mas é claro que a Reforma tinha duas motivações,
a moral e a doutrinária, e uma estava a serviço da
outra.
O livro dá detalhes do processo de condenação
e morte de Jan Huss, por exemplo, até a cena tenebrosa da
incineração de suas últimas vísceras.
Relata com cuidado o modo como muitas dissidências da Igreja
romana se tornaram, elas mesmas, ortodoxias protestantes, e até
teocracias conduzidas com mão de ferro, como na Genebra de
Calvino e possivelmente na Zurique de Zwinglio. Tudo isso compassado
entre comentários iluminadores sobre a natureza do problema
que dá sentido à obra, como nesta passagem: “Não
é possível negar, contudo, que as questões
centrais da liberdade de crença e consciência, e de
como as igrejas não sabiam lidar com ela na prática,
ainda que a reconhecessem na teoria, perpassam todos os movimentos
históricos elencados neste livro, e eram uma preocupação
consciente de todas as suas personagens” (p.70).
O autor também dedica várias páginas às
diversas guerras religiosas, como a Guerra dos Trinta Anos e a Guerra
Civil Inglesa, e suas repercussões ou correspondências
na França e em outras partes da Europa. Não deixa
de dar a devida importância a processos paradigmáticos
como o de Giordano Bruno e tem um capítulo bastante interessante
sobre as ideias religiosas de Fénelon e Pierre Bayle. O leitor
vai se surpreender com a origem da palavra “Pennsylvania”,
que dá nome a um importante estado norte-americano, e como
está ligada à presença do jovem quaker William
Penn nos Estados Unidos. Entre as ideias religiosas, e não
tanto os acontecimentos, o livro tem a particular sensibilidade
de dar um justo espaço a Jacob Böhme, o místico
sapateiro alemão que alimentaria o puritanismo e o pietismo,
marcando de maneira decisiva a cena cultural e filosófica
germânica, uma influência muitas vezes menosprezada
por historiadores da filosofia. Ouso dizer que a presença
de Böhme é como um espectro que ronda o livro e faz
aparições repentinas aqui e ali, por exemplo, num
capítulo sobre Isaac Newton.
Em algum momento, contudo, o livro se torna uma introdução
à história da filosofia. Isso não é
exatamente um demérito, mas talvez ajude a lançar
luz sobre um problema em geral pouco enfatizado, isto é,
como a liberdade religiosa, uma questão social dramaticamente
onipresente no mundo moderno, pauta, motiva e configura a própria
filosofia. Este é um dos objetivos da narrativa de Schubert
Coelho, explícito em frases como “os manuais de história
da filosofia hipervalorizam o surgimento da ciência”
ou “a Reforma e as guerras religiosas são outros fatores
impossíveis de se ignorar, mas frequentemente olvidados em
favor de uma leitura mais linear, simplista e centrada no conhecimento”
(p.157). É nesse sentido, então, que seu livro também
pode ser lido, como uma história alternativa da filosofia,
na qual a religião, em suas faces políticas e metafísicas,
continua sendo uma questão humana central como sempre foi,
e na qual figuras como Erasmo de Roterdã, Jacob Böhme
e Emanuel Swedenborg podem ser tão importantes quanto Bacon,
Descartes e Hume. Esta sem dúvida não é uma
tese qualquer.
E, no entanto, estão lá Bacon, Descartes, Hume, Voltaire,
Rousseau e outros tantos nomes canônicos ao lado de alguns
nem tanto, sempre se mantendo a perspectiva da contribuição
de cada um desses “episódios”, e não só
ideias, para uma história de liberdade religiosa. É
verdade que muitas vezes o episódio vai para segundo plano,
e as ideias assumem a dianteira. De certa forma, o livro só
é uma história da liberdade religiosa, estritamente
falando, principalmente quando trata do movimento reformador, que
não foi só um movimento de intelectuais, mas também
um movimento popular e de complicadas marcações políticas.
O mesmo se pode dizer do capítulo dedicado à “mudança
geral de mentalidades”, de breves incursões pela história
russa e portuguesa, e do capítulo sobre a Revolução
Americana. Mas também é preciso reconhecer que a criação
de dissidências, heresias e inovações teológicas
é muito frequentemente um produto de mentes pensantes, mais
que de fígados convictos ou corações ambiciosos,
por isso essa história se converte, em determinado momento
da obra, em uma história da filosofia.
A liberdade é aqui menos liberdade de culto do que liberdade
de pensamento. Podemos dizer que a maioria das heresias são
filosofias. A grande exceção talvez seja a Reforma,
que foi mais um apelo à liberdade de interpretação
e culto do que à liberdade filosófica de conceber
a divindade. Isso torna, inclusive, questionável se ela merece
o nome de uma heresia ou se, pelo contrário, em muitos momentos
reivindicou uma ortodoxia que projetava sobre a própria Igreja
romana a imagem da heresia, o que explica também, em parte,
porque foi um movimento amplamente bem-sucedido, em comparação
com outros. A Reforma não era uma filosofia, como o espinosismo
ou o deísmo. Certamente essa tese pode ser problematizada,
uma vez que, na ausência de uma teologia oficial, o protestantismo
ficava, a cada vez, dependente de uma determinada filosofia para
elaboração da sua teologia, uma questão posteriormente
levantada pelo jovem Heidegger. Depois da Reforma, contudo, a liberdade
passa a ser mais enfaticamente liberdade de pensamento, e nesse
sentido confunde-se com a filosofia ela mesma.
Mas tudo isso compõe, por assim dizer, o explícito
do livro. Sobre tudo isso o livro é diverso, rico em exemplos
históricos e doutrinários de todo tipo e de grande
valia para uma narrativa de como esses casos ajudaram a formar o
mundo de relativa liberdade que temos hoje, com todas as ressalvas
possíveis e imagináveis a essa afirmação.
Mas não é meu objetivo aqui fazer uma possível
resenha, e sim colocar questões para um possível debate,
e elas incidem precisamente sobre a parte implícita do livro,
sobre aquilo que eu suponho ser o motivo secreto e inconfesso da
obra. Se eu estiver errado, pelo menos terei provocado o autor,
se ele quiser, a tocar na ferida teórica mais difícil
de sarar.
O livro parece atingir certa culminância quando passa em revista
brevemente a correspondência entre Leibniz e Samuel Clarke,
este último um autêntico filósofo da moral ainda
por ser descoberto. Provavelmente, Clarke – aqui supostamente
defendendo uma metafísica com a qual Newton concordaria –
indignava-se com as críticas de Leibniz, as quais sugeriam
que o pensamento dos dois ingleses era materialista e espinosista
e, do ponto de vista religioso, herético, arianista ou socianista.
Para os próprios Clarke e Newton, isso não procedia
– Newton repudiou a associação do seu pensamento
com o arianismo –, pois o conceito de força atrativa
apontava para um aspecto não mecanicista, e sim metafísico,
do mundo físico. Clarke e Newton tomavam como absurdas as
críticas de Leibniz porque acreditavam estar formulando uma
metafísica de acordo com as Escrituras e sem intenções
heréticas, embora dificilmente conformista. Schubert Coelho
formula, então, uma passagem digna de nota, que reproduzo
aqui integralmente:
“Apesar de entenderem os ataques
como ofensivos, no entanto, Newton e Clarke, como o próprio
Leibniz, estavam muito à frente do comprometimento passional
com que quase qualquer pessoa de sua época ou épocas
anteriores discutiam assuntos de fé e os conceitos filosóficos
que os embasavam. Eram já homens de ciência entretidos
em uma acirrada disputa sem que nenhum deles imaginasse que as posições
do outro deveriam ser silenciadas. Chegar a esse ponto foi a conquista
de todos os autores que os precederam, e dos quais vimos algumas
contribuições. Estranho quanto possa parecer ao leitor
contemporâneo, ambos os grupos envolvidos na controvérsia
acreditavam estar defendendo o sistema cosmológico e metafísico
correto, o único harmônico com as Sagradas Escrituras
e diante do qual todo o leitor entendedor deveria ao final exclamar
“aleluia e amém”.” (p.197-8).
Ora, nesta passagem encontra-se in nuce tudo o que me parece
da maior importância na questão toda, isto é,
saber se podemos transpor não exatamente os procedimentos,
mas a disposição de ânimo dialógica e
dialética, típica do homem de ciência, para
a religião. Isso é algo que merece a mais cuidadosa
reflexão, e já insisti sobre o assunto em outros textos,
como quando sugeri que atualmente vivemos em circunstâncias
“pós-filosóficas” ou quando defendi que
um ortodoxo como Chesterton tinha, diante do seu objeto, a mesma
humildade de um homem de ciência como Darwin. A passagem destacada
indica, parece-me, que o problema central da liberdade religiosa
não está na mera ideia de ortodoxia ou de que haja,
em geral, alguma ortodoxia, mas sim em uma espécie de disposição
psicológica, que pode ser, por exemplo, o medo ou o ódio.
E o mais importante: nenhuma disposição psicológica
deriva imediatamente de uma ideia ou de uma concepção
filosófica. Nenhum afeto pertence essencialmente a um conceito.
Alguém pode defender uma visão pós-moderna
e relativista do mundo mais ferozmente do que outro faria com uma
metafísica realista, e este é o ponto que me parece
crucial.
O próprio Schubert Coelho o reconhece quando, comentando
o Terror em que a Revolução Francesa se meteu, destaca
como filósofos e filósofas, a exemplo de Madame de
Staël, mudam de percepção sobre os progressos
do movimento. Ele lembra bem como “Benjamin Constant, E. Burke
e W. von Humboldt não deixavam de pasmar com o fato de que
ideias tão boas poderiam ter estimulado tamanhas atrocidades”
(p.323). O autor não permite passar despercebido o fato de
que, uma vez que a religião estava associada ao Antigo Regime,
a revolução inspirada radicalmente por ideias antirreligiosas
matou em poucos anos mais pessoas “do que em 300 anos de Inquisição
Espanhola” (p.318). Qual seria, portanto, de fato o cerne
da questão?
Ao tratar da controvérsia entre Agostinho e Pelágio,
por exemplo, Schubert Coelho parece tão preocupado em assinalar
os perigos envolvidos na ideia de ortodoxia quanto em mostrar o
que a própria ortodoxia perde, quando um zelo excessivo produz
uma imagem hipertrofiada de uma determinada visão doutrinária
que, vista mais de perto, poderia ser considerada mais uma questão
de ênfase, no fundo perfeitamente ortodoxa. O autor está
convencido de que os opositores de Pelágio hiperdimensionaram
o que seria uma produtiva disputa teológica, transformaram
um ajuste enfático em um “grave erro doutrinal”,
tornando-se assim míopes para o que de fato se estava dizendo,
o que poderia ser de valor para a própria ortodoxia. Em exemplos
como este, não é própria ideia de ortodoxia
que parece incomodar, mas antes os dispositivos de poder que estão
sempre à espreita na sua aplicação. Isso empobrece
a própria Igreja. Neste caso, parece-me que o autor quase
sugere uma concepção dialógica ou dialética
de ortodoxia, em vez de simplesmente repudiá-la. Mas pode
ser também que eu esteja mirando um espelho.
Por excesso de zelo em se apontar o que seria um grave erro, pequenos
erros são sobrevalorizados e outras formulações,
que nem sequer seriam erros, são vistas como tais. Com isso
uma parte importante da verdade se perde. Além disso, a instalação
de uma ortodoxia exige frequentemente uma “condenação”
e tem até o poder de converter-se no seu contrário,
como quando os professores alemães repudiam as teses de Jan
Huss de maneira ilógica e indiscriminada, abdicando de discutir
se eram realmente ortodoxas ou heréticas. Em outras palavras,
o problema poderia estar menos no próprio conceito do que
no seu uso como selo, como estigma, o que poderia inclusive infringir
o próprio sentido do conceito.
Só a Providência pode explicar porque Francisco de
Assis não foi condenado como herege quando enfrentou o conservadorismo
monástico e lembrou que os frades deviam andar no meio do
povo, ou quando Tomás de Aquino sugeriu que a teologia cristã
mais se beneficiava da filosofia de Aristóteles, naquele
momento lido pelos árabes, do que da de Platão. Ambos
estavam ajustando a rota da teologia cristã em poucos centímetros,
o que não significa que Agostinho fosse pura e simplesmente
um herege – e lavo a boca com sabão só de mencionar
uma coisa dessas –, mas sim que de fato havia ali um pequeno
ajuste a ser feito. Isso talvez indique que o conceito de ortodoxia
seja mais comparativo que superlativo. Que não podemos dizer,
a rigor, e de uma vez por todas, o que é a ortodoxia, mas
certamente podemos dizer que uma formulação é
mais ortodoxa do que outras. Isso ajuda muito a redefinir as coisas.
Pelágio poderia deixar de ser um herege para ser um teólogo
menos ortodoxo do que Agostinho, como este é menos ortodoxo
do que Tomás. Mas isso não significa que gnosticismo
e maniqueísmo deixariam de ser heresias por um passe de mágica.
Mas e quanto aos perigos da própria ideia de que haja uma
ortodoxia? Sobre isso vale a pena aludir a alguns casos. No movimento
de interpretar livremente as Escrituras, iniciado por Ockham e que
explode com Wycliffe e Huss, observa o autor, “o que está
em jogo é o retorno ao que é dito (…) e, principalmente,
a introdução de uma noção filosófica
de liberdade de juízo, compreensão e interpretação”
(p.42). Isso configura uma dialética realmente produtiva.
Não se trata da liberdade pura e simples, da diversidade
pela diversidade, mas da liberdade de ser ortodoxo quando a própria
teologia oficial se torna herética. É um movimento
da teologia contra a política! E não é esta
a essência do profetismo, tanto judaico quanto cristão?
O processo da maioria dos reformadores mostra o quanto eles estavam
convencidos de estar na verdade, uma verdade independente de si
próprios; não podiam negá-la sem “mentir
perante Deus”. A mesma disposição, parece-me,
anima igualmente Clarke, Newton e Leibniz. O verdadeiro problema
parece estar em alguma outra parte.
O controverso processo de Joana D’Arc, que o autor descreve,
termina com sua reabilitação pela Igreja, “que
nela não viu nenhuma heresia e tomou o julgamento por politicamente
motivado” (p.48). Quantos casos não poderiam ser reconsiderados
assim? Quantos processos, perseguições e condenações
contêm a religião apenas como o seu invólucro,
mas no cerne são acontecimentos da história política?
O que eu quero dizer, obviamente, não é que as guerras
religiosas, por exemplo, não foram religiosamente motivadas.
Certamente foram! Seria temerário e errôneo dizer o
contrário. O que eu me pergunto é se a disposição
para silenciar, perseguir e assassinar segue-se imediatamente de
uma ideia religiosa ou se, em grande medida, é a ânsia
do poder secular que está sempre disposta a instrumentalizar
as ideias religiosas. Não acho, sinceramente, que seja uma
questão fácil, mas é pelo menos uma questão
legítima.
Ortodoxia e heresia compõem um par conceitual poderoso, essencial
em assuntos teológicos, mas que se torna perigoso precisamente
num contexto de promiscuidade entre Igreja e os poderes mundanos.
É um par conceitual sobre o qual os olhos crescem, presente
inclusive em muitos movimentos seculares, como o marxismo ou a psicanálise.
É razoável para qualquer pessoa interessada seriamente
na vida esperar que um movimento baseado em ideias, ao qual venha
eventualmente a se associar, requeira uma determinação
plausível do seu centro e dos seus limites, o que é
completamente diferente de procurar na política a força
de sua imposição. Não por acaso, Schubert Coelho,
na esteira do brilhante historiador americano Brad Gregory, reconhece
que a secularização só alterou os motivos dos
conflitos entre grupos religiosos, que hoje entram em choque não
mais por questões doutrinárias, mas sim por questões
essencialmente políticas, externas à religião.
Eu acrescentaria que membros de um mesmo grupo religioso estão
hoje brigando por esses mesmos motivos. As últimas eleições
dividiram irmãos na fé de uma mesmíssima igreja.
Desde que Walter Bauer publicou o seu clássico “Ortodoxia
e heresia no cristianismo mais antigo” (Rechtgläubigkeit
und Ketzerei im ältesten Chistentum), de 1934, o debate sobre
este par de conceitos tornou-se enevoado. A tese segundo a qual
a “ortodoxia” nada mais é do que uma heresia
que venceu e suprimiu rivais contém duas implicações
aparentemente incompatíveis. De um lado, o par não
é abandonado, mas apenas invertido. Então ele de certa
forma permanece. A heresia suprimida era a ortodoxia. E, por outro
lado, suscita desconfianças e um clima de conspiração,
na medida em que faz tudo recair sobre questões de poder.
Disso o cinema, a literatura popular de curiosidade e mais recentemente
a internet estão repletos.
Schubert Coelho é cuidadoso ao afirmar, logo de início,
que “é importante não confundir a constatação
de que houve supressão de doutrinas por parte de um partido
que se assume como ortodoxia com uma tese conspiratória sobre
a “verdade oculta”” (p.22). Ele reconhece que
se trata de um processo universal e inevitável, mas enfatiza
o caráter “relativamente autoritário de todos
os processos de estabelecimento de ortodoxias”. Embora isso
seja verdade em muitos casos, sobretudo para o recorte do livro
(Da Reforma ao Iluminismo), é
possível que o problema seja bem mais complicado na história
antiga.
O renovado interesse pelo tema das ortodoxias e heresias, provavelmente
estimulado por uma cultura antiautoritária mas também
pelo ambiente de desconfiança e conspiração
criado por tendências filosóficas desconstrucionista
empenhadas em “desmascarar” verdades em último
caso instaladas por mecanismos de poder, tem produzido, por outro
lado, uma pesquisa mais recente bastante perturbadora – posso
mencionar aqui pelo menos o interessante texto do teólogo
galês Rowan Williams intitulado “Faz sentido falar
de ortodoxia pré-nicena?”
(Does it make sense to speak of pre-Nicene orthodoxy?). Para
essa pesquisa mais recente, a diversidade não emergiu repentinamente
do enfrentamento a uma ortodoxia poderosa, mas esteve presente desde
o início. Temos de lembrar – o que muitas vezes é
esquecido – que o cristianismo primitivo era marginal, destituído
de poder e influência, mas que suas diversas comunidades espalhadas
lutaram pela unidade visitando-se frequentemente e mantendo regular
correspondência epistolar. Assim, temos o exemplo do estabelecimento
de uma ortodoxia que não encaixa no modelo rígido
de vencedores poderosos contra perdedores silenciados, mas que se
parece a uma busca mais ou menos dispersa, porém esforçada,
de autenticidade.
Isto porque essa busca visava dar uma formulação conceitual
mais ou menos sólida a um “saber de fé”
ou experiência anterior mais básica, isto é,
o cristianismo como forma de vida. Nesse sentido, as formulações
conceituais nem sempre estavam à altura do esplendor daquela
experiência e maravilhamento iniciais. Neste caso, o teólogo
contemporâneo – assim como o cristão contemporâneo
– surpreende-se reencontrando o filósofo no seu “amor
à verdade”, mais do que possuindo essa verdade. Até
mesmo um teólogo como Tomás nos adverte, logo nos
começos da Summa, ao tratar da questão sobre se a
vontade é um poder superior ao intelecto, que isso depende
do objeto considerado. Assim, quando o objeto da vontade é
menos nobre do que a alma, então neste caso o intelecto é
superior à vontade, mas quando o objeto da vontade é
mais nobre do que a própria alma, então neste caso
a vontade é superior ao intelecto. Donde se segue que o conhecimento
das coisas corpóreas é superior ao amor por elas,
mas, em sentido contrário, “o amor de Deus é
melhor do que o conhecimento de Deus”.
Ora, o cristão contemporâneo tem tudo para estar mais
ciente das suas limitações e dos riscos que corre.
Possui uma imensidade de casos na história com os quais pode
aprender, a fim de não se enganar sobre as aproximações
diabólicas com o poder. Mas o seu amor não se tornou
menor. Ele não abdicou ainda de dar uma formulação
conceitual àquilo em que verdadeiramente acredita. Se colocada
desta maneira, a partir de um estado de ânimo amoroso, a ideia
de ortodoxia sobrevive, mas se afasta sabiamente dos mecanismos
de poder com os quais, é bem verdade, andou demasiadas vezes
de mãos dadas, mãos nas quais havia muitos desastres.

A morte de Jan Hus no Jenský kodex,
c. 1500
Arthur Grupillo é jornalista, professor
de filosofia da Universidade Federal de Sergipe, autor do livro
O homem de gosto e o egoísta lógico: uma introdução
crítica à estética de Kant.
Fonte: https://estadodaarte.estadao.com.br/ortodoxia-dialetica-schubert-coelho-grupillo/?fbclid=IwAR26XjxsE_M5Up_Ten0K6StebT8em2ajY4_EWbx3KfCJyiYqpTrfpDy7nfs
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